Se
bem que prometêramos seguir o exercício de ler, aqui, cada um dos
comic
books
que comporiam esta concentrada saga (ver aqui para os números 1 e 2), a verdade é que à medida que
eles surgem, há inevitavelmente uma diminuição do que há a dizer.
Pois pouco nos importa uma interpretação página-a-página, ora
tentando adivinhar pistas futuras ora desvendando rotas de
influências e fontes intermináveis. É desde logo uma certeza que
Sandman
tem de ser forçosamente uma rede densa de intertextualidade, já que
é essa a sua própria razão de ser, enquanto produto de ficção e,
no interior da sua diegese, é ele a fonte de todos os textos... (Mais)
Sobre
este terceiro número, talvez o mais surpreendente seja a sua
fraqueza quer a nível da intriga central quer também em termos de
complexificação psicológica do protagonista. Como já havíamos
indicado, Overture desenvolve-se num momento diegético
anterior às “lições” da série principal, por isso este
Sandman encontra-se ainda antes de ter aprendido alguma coisa sobre
humildade – apesar de se demonstrar aqui uma tentativa gorada – e
se aproximar do seu papel final martirizado. Um dos efeitos dessa
posição é encontrarmos, com mais presença, um soberano sem
grandes dúvidas e mais decidido nas suas acções, mas em outros
aspectos acaba também por simplesmente repetir dimensões já
consabidas. Até mesmo a parte em que ele dá a sua gargalhada repete
algo que já havia ocorrido numa das primeiras histórias (quanto ele
luta com o Sandman de Kirby).
Portanto,
uma boa pergunta a colocar na leitura desta história é: o que
aprendemos de novo em relação à personagem? A resposta é,
infelizmente, pouco.
Quer
dizer, Gaiman aproveita-se da matéria já disponível na saga
original para recuperar alguns desses elementos – personagens e
eventos – e fazer avançar, ou pelo menos criar a ilusão de
avanço, na intriga de Overture.
No entanto, é de notar que tendo atingido já meio-caminho desta
narrativa, ainda não se construiu um arco narrativo perfeito, ou uma
tensão central, mas apenas uma discussão (consigo mesmo) e uma
viagem. Além do mais, não adiantaria discutir que nem todas as
histórias precisam de ser lineares ou concentradas, pois não
estamos aqui no território do experimentalismo ou na fabricação de
novas formas, mas no seio de um determinado mainstream.
É
por isso que surgem as três Euménides, e se fazem referências a
várias das forças cósmicas pertencentes ao universo da DC (os
Lanterna Verdes, por exemplo) mas também à Marvel (de forma subtil
no texto e nas imagens, citam-se Galactus, o Surfista Prateado e o
contributo geral de Kirby), de maneira a ancorar a possibilidade de
spin-offs
futuros (ou uma qualquer coesão cósmica interna, como já foi
tentada noutras histórias curtas de Sandman
por Gaiman, ou em TheEternals).
Mas há mesmo uma maior procissão em que os autores citam brevemente
entidades que atravessam o universo alargado de que aqui se trata, e
que não deixa de ser uma estratégia típica de Gaiman: através de
um elenco, de uma listagem curta que surge como uma espécie de
epigrama textual, expande-se rapidamente as implicações e
personagens envolvidas no evento que, aparentemente, estaria no
centro da narrativa. Mas o mais importante nestas citações e
re-integrações é precisamente provocar junto aos leitores um
enquadramento mais ou menos familiar, de histórias anteriores,
diferentes e maiores, para depois inscrever a “diferença”.
Como
convém nestas narrativas, também são explicadas as “origens”
de alguns dos elementos que já eram conhecidos, mas cuja fundação
estava oculta. É o caso dos portões de marfim e de corno, de que
Homero falara, que são associadas aqui a dois inimigos de Morfeu.
Por ocasião de um conto contado pelo Rei dos Sonhos a uma jovem
personagem encontrada na viagem, permite-se uma das favoritas
estratégias de Gaiman, e apropriadas a esta personagem, que é a
“história dentro da história”, ou nível hipodiegético, num
termo mais científico. Em quatro páginas, esse episódio de um
pretérito mais-que-perfeito em relação à história principal é
“despachado”, assim como se reduz a uma só frase a origem do
conhecido capacete de combate de Sandman. Na verdade, é uma pequena
desilusão que esses pormenores sejam tratados desta forma demasiado
célere e elíptica, desejando-se antes que Gaiman seguisse
precisamente aquela forma magnífica da “descrição em acção”
de Homero, em que um qualquer objecto é descrito enquanto ele é
feito (como a cena famosa do escudo de Aquiles)...
A
construção das coisas é, assim, pouco tamisada.
No
que diz respeito à camada visual, é inevitável, mais uma vez,
recordar os vários episódios de Promethea.
Mas onde a enciclopédia de magia de Moore dirigia os instrumentos de
Williams de uma forma evidentemente simbólica e funcional, em que
cada elemento (forma, composição, estrutura, geometria, cor,
figura, atributos, etc.) seguia regras iconográficas, talvez até a
um ponto de ruptura da subtileza, mas por isso reforçando a ideia de
enciclopédia, no caso de Overture
essa concatenação de elementos acaba por apenas se revestir de um
papel decorativo. Recordemos o que Renaud Chavanne escreveu em
Composition sobre algumas pranchas aparentemente idênticas: “O que
emana destas construções é uma imensidade, uma desmesura que
difunde o sentimento do desaparecimento da tira [a “banda”
desenhada] em proveito de uma construção global, de uma organização
de vinhetas liberta da tira [strip],
parecendo que elas foram colocadas antes de mais na óptica de
ocuparem a páginas, ou mais exactamente a dupla página”. Mas
acrescenta o autor, antes de partir para a análise dos seus exemplo,
“Todavia, essa impressão, fortíssima, não resiste ao estudo da
composição e às modalidades da leitura” (173-174).
Aquilo
que “salta à vista” é que com a excepção da primeira e última
páginas do comic
book,
necessariamente isoladas, todas as outras são duplas páginas, e
organizam as vinhetas das mais variadas formas, ora em estruturas
geométricas ora em construções mais orgânicas. Mas desarrumarão
ou abrirão elas a protocolos de leitura mais complexos? Irmanados
com a história contada? Ou é simplesmente uma estratégia de
“encher o olho” em relação a uma intriga em que pouco se
desenvolve, independentemente do número de elementos que se vão
empilhando?
Em
termos estruturais, a verdade é que se estão a seguir convenções
bastante familiares. Voltaremos a este ponto já de seguida.
Por
agora importa dizer que neste número, existem ainda, como nos casos
anteriores, toda uma série de citações visuais, sendo talvez a de
Moebius (por uma via mesclada entre Arzach
e Blueberry)
a mais gritante. Conforme o nível diegético desejado, Williams
segue um estilo mais naturalista, cheio de traços para criar
detalhes nos rostos, mostrando um Sandman quase digno de um Alex
Raymond ou Milton Caniff (não fossem os elementos fantásticos), ora
retira as linhas a negro para deixar estruturas coloridas e vítreas,
ora espalha feéricas aguarelas nebulosas, ou subsume as figuras a um
enquadramento limitado a um conjunto de cores. Desta forma, não
apenas se cria uma estrutura mais ou menos clara entre presente
narrativo, passado, passado corrigido, isto é, os tempos diegéticos,
como também entre acções e citações, ou seja, já a um nível de
representação ontológica em relação à intriga central. Não
deixa esta diversidade de incutir alguma beleza, talvez excessiva, ao
livro, mas é mais discutível se estamos perante uma estrutura
propriamente elegante ou se apenas um exercício hiperbólico de
capacidades, como vimos.
As
“molduras” ou as estruturas que subjazem as duplas páginas (uma
mão nas pranchas 6 e 7, o mapa nas 12 e 13, as composições de
triângulos encaixados um pouco por todo o lado) não são nada mais
do que ornamentos. Poder-se-ia esperar, por exemplo, que estas formas
e molduras pudessem cumprir um papel de elucidação da acção ou
dos espaços, ou que até incutissem algum dinamismo às acções
mostradas (como o artista fazia em Batwoman),
mas elas acabam por exercer mais um fascínio centrífugo, do que de
focalização do que está representado no “interior”. Como
as molduras de vinhetas em forma de pedras coloridas que fariam parte
da paisagem desértica atravessada pelas personagens, que acabam por,
neste caso em particular, não tanto “abrir” precisamente a ideia
de deserto, mas enclausurar esse espaço que imaginamos imenso em
parcelas diminutas. E as formas geométricas livres da “história
da princesa”, opondo os azuis (a parte “boa” da história) e os
cinzentos (a parte “má”) é demasiado óbvia.
Talvez,
em retrospectiva, toda esta travessia de matérias várias venha a
fazer sentido num crescendo.
Por agora, sigamos.
Nota
final: mais uma vez, foi utilizada uma cópia digital para colher as
imagens.
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