Este
livro é uma aventura leve, envolvendo fantasia, uma literal fuga do
mundo real, passagens por entre ingredientes clássicos da literatura
infanto-juvenil, e uma abordagem artística e técnica totalmente
devotada à legibilidade máxima. De certa forma, poderíamos dizer
que não é “nada de novo”, mas essa asserção não é em si
mesma suficiente enquanto leitura e muito menos como juízo de valor. (Mais)
A
protagonista deste livro de umas 130 páginas é Jeannie, uma jovem
mulher, a qual descobrimos viver num mundo “normal”, dos seres
humanos e da vigília, mas que tem uma forte relação com um mundo
fantástico, de animais falantes, criaturas mágicas e espíritos. As
“passagens” possíveis não são tanto abordadas de forma directa
e expositiva, como através de subtis pistas visuais espalhadas
sobretudo no início do livro, mas que se tecem com outros momentos
igualmente. Herdeira de um objecto mágico da parte da avó, uma
poderosa feiticeira cuja morte desencadeia as acções de perigo que
impulsionam o evento mecânico no centro do livro, Jeannie vê-se
obrigada a tomar o caminho da aventura. De certo modo, é a maneira
que ela tem de reclamar o legado da linhagem a que pertence. O
objecto em si é uma espécie de semi-MacGuffin: são ossos, e
colocam-na numa rivalidade contra outro poderoso feiticeiro, Bolshoi
Korol. No final, descobriremos até que ponto eles são centrais em
relação à trama e à forma como colocam estas personagens num
mesmo caminho, mas esse aspecto é bem dirigido pelo autor.
Nesses
sentidos, então, a estrutura narrativa e mesmo a inscrição de
género é clássica, clara e óbvia. Todos os ingredientes da
literatura fantástica encontram-se presentes, desde o animal
adjuvante, o sábio companheiro (o tio), que vai expondo e explicando
o mundo desconhecido no qual a protagonista penetra, até mesmo aos
esbirros do vilão que se tornam numa espécie de guias e ajudantes,
e muitas vezes fonte de humor (de base linguística, de acção, de
atitudes, etc.). Assim sendo, Domovoi é um excelente texto de
banda desenhada para jovens que se interessem por estes temas em
geral. Não atingindo os níveis épicos de Tolkien, Lewis, Rowling,
mas devedor do campo literário composto por esses autores, Domovoi
deseja claramente cotejar esses imaginários.
Mas
Bergting tem algumas facetas menos comuns e que o tornam
relativamente interessante. Apontar o facto de se tratar de uma
heroína feminina, apesar de não ser algo de totalmente original
(nem contrastante, como o foram nas suas respectivas épocas os
papéis de Alice, Dorothy, Anne of the Green Gables, Pippi
Meias-Altas, e Merida “Brave”), ainda é necessário, mas não,
felizmente, com a mesma intensidade de há uns anos, inclusive, ou
sobretudo, no campo da banda desenhada de aventura mainstream.
Talvez a principal característica diferenciadora seja a ausência
de conflitos físicos directos ou pelo menos explorados em pormenor.
Existem embates, sim, e até mesmo com alguma violência – armas de
fogo, atropelamentos, ferimentos, sangue e mesmo “mortes” -, mas
eles não se encontram no centro de cada episódio, como matéria
fetichista que vai pontuando a estrutura da história. Digamos que
estão presentes por serem necessários – seriam escusados, claro
está, e é possível imaginar uma narrativa sem conflitos violentos
mas construídos de formas alternativas, bastando O vento nos
salgueiros ou O feiticeiro de Oz como exemplos -, mas não
tomam grande parte da atenção do leitor. Esta centra-se sobretudo
nos diálogos e relações entre Jeannie e as demais personagens, e
as consequências no seu crescimento interior, psicológico, emotivo,
intelectual e existencial. Não se tratando de um complexo
Bildungsroman, ainda assim há claramente essa ideia no nervo
do livro.
Já
seria discutível se existe alguma aliança intrínseca entre a
escolha de uma personagem principal feminina e esta outra forma de
resolução dos conflitos que não passe necessariamente pela esfera
física e violenta. Existem casos disso, claro está, mas as mais das
vezes pertencem essas opções a fantasias masculinas (Tomb
Raider, a Alice de Tim Burton, na banda desenhada Rat
Queens, etc.). Estamos em crer que Domovoi tenta
inscrever-se numa maneira de agregar e manipular estes elementos
clássicos de uma forma ligeiramente mais progressiva.
Sistematicamente
debatemo-nos com termos como poleviki, psoglav, o
“décimo reino” [thrice-tenth kingdom],
etc., o que faz apontar para toda uma série de contos tradicionais
russos e mitologias do leste europeu. Apesar de jamais ser indicado
textualmente, várias informações extra-textuais (e as paisagens
urbanas?) mostram como a acção se inicia na cidade de Estocolmo,
por isso poderemos entender Domovoi
(uma palavra que não apenas remete a uma classe particular de
espíritos, idênticos aos lares
latinos, como à noção de, precisamente, “lar”) como um ponto
de encontro entre duas culturas que nem sempre viveram nos mais
pacíficos dos termos. Essa dimensão, porém, tem de ser suspensa,
pela ignorância que temos sobre esse assunto. Fica, todavia, uma
impressão de conto tradicional em toda a narrativa, ou pelo menos
dos ecos que sobreviveram desses contos tradicionais e que conseguem
sobreviver na cultura contemporânea. Pois Domovoi
pertence ainda a essa tendência contemporânea de tecer os ecos de
um pretenso mundo mágico tradicional na textura mais banal do mundo
actual.
O
final da história é algo acelerado, até mesmo a um ponto quase de
incompreensão. Não apenas existem alguns fios por apanhar e
concluir, como há uma certa insatisfação na resolução narrativa,
mas a força do autor estará mais na criação de ambientes e
situações gerais do que numa atenção pormenorizada para a
tessitura e geometria da narrativa. Até a relação entre a capa e o "miolo", depois de lido, não deixará de suscitar perguntas sobre a sua exactidão. O autor não está
particularmente interessado em criar mecanismos metatextuais, se bem
que a segunda página mostra na última vinheta um jornal (?) aberto
que revela uma página de banda desenhada, possivelmente, composta da
precisa maneira do que aquela que a contem: tratar-se-á de uma forma
de criar uma ilusão em mise en abîme, uma revelação do
carácter fantástico e auto-referencial da aventura que se seguirá?
As
influências, ou pelo menos forte diálogo e afinidades, de Mike Mignola e toda a constelação de artistas relacionados com o
universo expandido desse autor, são patentes de forma bastante
clara. E isso não surpreenderá ao se saber que o artista está
envolvido nos novos desenvolvimentos em torno da saga Baltimore e
outros títulos mais ou menos fantásticos da editora. Com destaque especial para The Portent, Ashes, do mesmo autor, de que daremos conta já de seguida. Apesar do
autor ter já publicado outros trabalhos de forma mais independente
no seu país natal, aquela filiação é notória em várias
dimensões. Não apenas na figuração, entre opções
realistas e mais estilizadas, a pender para o cartoonesco,
como a nível da cor, de limitadas mas coerentes famílias tonais,
com súbitos apontamentos mais expressivos (seguindo lições de Dave
Stewart?), a nível da presença do texto, com esparsos diálogos e
ritmados, a forma como deixa respirar as personagens ou objectos nos
seus enquadramentos, até mesmo ao ponto de espargir cenas de acção
mais intensas com vinhetas silenciosas e de pormenor de objectos,
espaços ou atitudes das personagens. O uso equilibrado entre
composições de páginas mais cheias e dinâmicas e outras com
splash images de maior tranquilidade, a fabricação de espaços
diegéticos claramente apresentados, o que reforça a facilidade com
que o leitor se vai deslocando entre as várias paisagens geográficas
e os saltos temporais que lhes estão associados, e a forma geral
como o autor emprega os instrumentos gráficos e convencionais da
banda desenhada tornam este texto muito legível, reforçando aquela
ideia de ser algo particularmente criado para um público mais jovem,
e que poderá partilhar com a protagonista algumas das preocupações,
aqui transfiguradas num contexto de fantasia.
Entre
o livro ilustrado infantil e a banda desenhada, Domovoi é um
daqueles trabalhos leves que, ao lado de This One Summer,
Battling Boy ou Spiral-Bound demonstra que ainda
existem autores a explorar de que maneira estes métodos
convencionais podem ser articulados para um público mais jovem, não
se escusando de problemas mais complexos mas abordando-os de formas
mais simplificadas.
Nota final: imagens de ficheiros digitais.
Nota final: imagens de ficheiros digitais.
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