A
leitura e recepção do livro anterior de Bergting, Domovoi,
foi feita com algumas expectativas e cumprida também na ignorância
deste segundo livro. Se tivéssemos lido os dois livros e apenas
depois escrevêssemos sobre eles, é certo que a estrutura dos nossos
textos seria bem diferente. Pois se um livro esconde outro, como os
comboios, quase sempre, e repetimos esta ideia, a leitura de um leva
a que a leitura de outro seja executada de forma distinta. Tendo em
conta a ordem da sua produção, e a sua leitura, todavia, o que
ocorre em relação a The
Portent
é uma espécie de desilusão. (Mais)
O
autor persegue uma constelação temática de grande proximidade, e
que encontra um território bem consolidado na banda desenhada
contemporânea, norte-americana e europeia. Voltamos a ter uma
protagonista feminina, neste caso Lin, uma espécie de guerreira
mágica, que combate demónios num plano de existência alternativo
ao mundo “real”, e que regressa passado um longo hiato paradoxal
de tempo, para descobrir que o mundo de que partira está
profundamente alterado, e que lhe cabe a ela tentar repor o
equilíbrio original. Se se reduzisse The
Portent
a um esquema de episódios ou partes, à la narratemas de Propp,
seria quase idêntico a Domovoi:
situação inicial, passagem de mundos paralelos, reunião de
coadjuvantes, desafios sucessivos, falsos aliados, combate final,
vitória, preparação para novo desafio.
Isto
não quer dizer que este respeito por fórmulas narrativas ou mesmo
alguma previsibilidade leve a uma necessária falta de qualidade, ou
que seja um problema em termos críticos. Bem pelo contrário, a
fortuna de um autor ou autora que opte por um género determinado
(isto é, reconhecido como tal) reside na forma como ele ou ela
sabiamente volta a baralhar os seus elementos centrais, os mistura
com outras fontes, provoca pequenos mas curiosos ou mesmo
surpreendentes desvios, o eleva a um grau inovador, os coloca em
crise, etc. É essa mestria e processo de des/estabilidade que torna
uns autores “originais” (se se quiser empregar essa palavra de um
modo algo superficial e fraco, como é corrente) e outros
“formulaicos”. Infelizmente, estamos em crer que o Bergting de
The
Portent
pertencerá à segunda categoria.
Em
relação ao título anterior, porém, em muitos aspectos há uma
prestação inferior. A figuração parece mais apressada, o que leva
a grandes flutuações ou mesmo falta de coerência na continuidade
das personagens (o que é um problema na banda desenhada deste
género). Em termos de dinamismo de composição de páginas, gestão
dos planos e focalizações, tudo parece mais constrito, sem grande
assertividade ou definição. As próprias cores, ainda que continuem
naquela forma decidida de criar ambientes diferenciados, episódios
temporais distintos, e apontamentos de brilho e destaque pontuais e
significativos, não tem o mesmo tipo de elegância tranquila de
Domovoi.
E há claramente menos diálogos, o que pode debilitar as forças
principais de The
Portent,
que veremos de seguida.
Estas
residem, acima de tudo, a nível da intriga. Contudo, a própria
narrativa sofre de certa forma com o excesso de ideias e de
“world-building”. O autor apresenta-nos quatro páginas iniciais
que servem logo à partida de introdução, prólogo ou premissa.
Através de cenas que depois nos apercebemos pertencerem a uma
analepse, e na presença de toda uma série de legendas na primeira
pessoa, chegamos como que depois
de uma imensa saga, rapidamente expressa de forma nítida. É como
se, por um lado, o autor compreendesse bem todos os ingredientes
desse tipo de narrativa (já exploradas em Domovoi,
de certa forma), mas em vez de a colocar no centro do livro, a
apresentasse sumariamente de forma concentrada para explorar antes
quais as consequências ou preço a pagar por essa aventura.
Deslocando, então, por outro lado, a atenção em relação ao ponto
nevrálgico desse tipo de narrativas (usualmente, um conflito maximal
entre as duas forças opostas).
Porém,
esse desvio é somente deslocado ligeiramente, para a “próxima”
etapa de uma ventura maior. Lin, chegada ao seu mundo, apercebe-se de
que este está dividido entre três clãs de magos, e vê-se tentada
a tomar partido entre as partes litigantes. Além disso, existem
ainda vários problemas por resolver associados às duas raízes da
sua formação e poder: o da bruxa Kaspara, que a formara nas artes
mágicas negras, e o do paladino Alkuin, que a treinara nas artes
marciais. Entre essas duas forças ainda se encontrará Milo, um
outro guerreiro que perdera a vida para salvar a de Lin, e que é
também o objecto dos afectos perdidos da protagonista. Todas estas
personagens estabelecem uma configuração geométrica complexa de
interrelações que terão um papel preponderante na história,
instigado pelo regresso de Lin. Sem revelar em demasia a trama,
bastar-nos-á indicar que o final do livro é na verdade um ponto de
preparação para a nova próxima etapa. Ou seja, no cômputo final,
podíamos imaginar que The
Portent, Ashes
seria como que o volume intermédio de uma possível trilogia, mas
cujos primeiro e terceiro volumes seriam apenas projecções
fantasmáticas do segundo, único real.
Isso
em si mesmo é desde logo uma opção extremamente curiosa, produtiva
e espoletadora em termos imaginativos – na óptica da suposta
“participação” do leitor. E tal como no caso de Domovoi,
portanto, apercebemo-nos de que Bergting está mais preocupado com as
consequências emocionais e a construção psicológica das
personagens na interacção umas com as outras do que propriamente
num encadeamento de eventos e acções. Um rápido contraste com a
estrutura narrativa da série recente Baltimore.
The Witch of Harju,
escrito por Mike Mignola e Christopher Golden, para nos apercebemos
que, sob uma outra direcção de intriga, Bergting emprega os seus
instrumentos visuais de modo bem diferente.
O
problema está – ou assim o julgamos – no facto das personagens
não se consolidarem de forma suficiente, e quando se entregam aos
momentos de maior embate emocional entre si, ainda o leitor está a
tentar compreendê-las. E as formas de exposição explícita,
através das legendas na primeira pessoa ou em tiradas directas, em
vez de contribuir para um esclarecimento, acaba por surgir antes como
um excesso de informação que não se agarra à superfície dos
elementos da história, e as coisas surgem como que desagregadas.
E as próprias cenas de acção
(na economia já usual do autor?) não procuram nem a
espectacularidade mais costumeira nem ocupam os pontos fulcrais
narrativos do costume. Acabam mais por surgir como pontuais “Worf
effect” do que necessários à intriga, e menos ainda consequentes
na construção da personalidade das personagens. Será este um caso
de falta de intervenção editorial mais eficaz?
The
Portent, Ashes
seria um livro a inscrever na mesma classe que Domovoi,
se bem que este segundo seja algo mais “negro” no seu tom (e
também na construção do mundo, que parece viver somente entre o
crepúsculo e a noite, sem madrugadas ou sol a pino). Menos ancorado
no mundo real, para depois criar um desvio mágico, mas tendo lugar
totalmente num mundo maravilhoso – mesmo que exista um mundo dos
mortos e dos demónios e outro dos vivos - ele acaba por cair numa
série de elementos-feitos algo sobre-expostos: a existência de
clãs, guerreiros decalcados de toda uma cultura visual (distorcida,
claro está, reificada) japonesa (vejam-se os chapéus de verga dos
cavaleiros), a existência de um palacete-pousada quase emprestado de
Mizayaki, os deuses anciãos de Lovecraft-por-via-de-Mignola, etc. A
meio-caminho, então, entre a literatura para um público mais jovem
e obras mais sofisticadas do género, mas sem conseguir ganhar
terreno e raízes suficientemente fortes num desses campos.
Nota
final: foram empregues, novamente, imagens de ficheiros digitais.
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