Como
já havíamos indicado a propósito do livro de Ph. Tomblaine, 2013
foi o “ano Spirou” ou o “ano groom”
na Bélgica, para comemorar os 75 anos desta personagem famosa, e
também indicáramos brevemente a existência deste projecto
monumental. Estando, paralelamente a estes textos no lerbd, a
escrever um artigo de análise de alguns dos novos livros com esta
personagem, e utilizando este volume como referência incontornável,
é ocasião para uma sua (“breve”, como de costume) apresentação. (Mais)
Este
livro fará parte daquela tendência que para Pierre Huard compõe a
abordagem “enciclopédica” do eixo “arquivístico”, se bem
que se possa confundir com outras esferas. No seu artigo “Questions
de méthode”, o teórico explica como estes trabalhos se debruçam
menos em autores singulares do que em obras e textos, e como é
“particularmente útil aos colecionadores nostálgicos e
fanáticos”, não se negligenciando a dimensão económica e de
merchandising
que decorre das editoras reempregarem os seus próprios arquivos –
pelo que não precisam de pagar uma segunda vez - para criarem novos
produtos apetecíveis a esse público especial. Escreve Huard, “não
nos devemos surpreender pelo carácter comercial dessas obras e da
ausência de uma reflexão crítica a favor de um trabalho de
arquivismo, por vezes sem grande envergadura”. Ora, se bem que se
possa considerar que o projecto de La
véritable histoire de Spirou
tem um carácter comercial claro, e se a sua dimensão crítica não
é particularmente vincada, não se pode negar que “envergadura”
tem. Compreendendo-se
este primeiro volume de cerca de 300 páginas entre os anos de 1937 e
1946, há basto espaço para algum tipo de exaustividade (impossível
na sua plenitude, mas possível de ser moldada numa ilusão de
finitude e finalidade, como é o caso presente). Além disso, a
dimensão comercial é ligeiramente atenuada por um design sóbrio e
elegante, que apresenta os documentos como tais, e não tanto como
“ícones” para alimentar o imaginário dos fãs (se bem que esse
resultado também tenha lugar).
Os
autores ["spirólogos", segundo o documentário televisivo - ver abaixo], que trabalham como editores e providenciando dossiers
e trabalhos de arquivismo de rigor e exaustão noutras frentes, mas
destacando-se em relação a Spirou,
têm neste volume um corolário dos seus esforços, e, quer já neste
volume, quer na imaginada colecção completa futura, também uma
obra de referência à qual importará regressar bastas vezes. Mas
não se trata de uma obra “seca” (ainda que necessária) como,
por hipótese, a Chronologie
d'une oeuvre,
em relação a Hergé, ainda que com os comentários iluminadores de
Philippe Godin. Esta última trata-se de uma obra a consultar à
medida que se necessite dela, ao passo que véritable
histoire
é antes um compêndio de pequenas histórias que se podem ler de
forma fluida, construindo uma ideia dinâmica de uma família em
diálogo.
Os
autores, para além de curtas introduções ou enquadramentos feitos
numa linguagem maravilhada e impressionista, “colam” frases de
muitos intervenientes: os editores e artistas originais, os filhos
destes, colaboradores, autores mais tardios, historiadores e
investigadores, testemunhas, quer bebendo de fontes epistolares,
publicadas ou entrevistas, a esmagadora destas recolhidas por eles
mesmos. Depois elegem temas particulares que se tornam os agregadores
dessas frases, rememorações, considerações, ideias soltas. Não
é, portanto, muito diferente da matéria de que usualmente se tece
um documentário televisivo [e escrevemos estas palavras antes de ter entendido da participação dos autores no documentário indicado no fim do post], em que se elegem pequenas porções de
várias perspectivas pessoais em torno de um objecto, coordenam-se
essas porções entre si, de maneira a que possa emergir, no olho
interior do leitor, uma visão pluridimensional sobre esse mesmo tema
ou objecto, com todas as complexidades e até mesmo contradições
que daí possam advir. No entanto, como dissemos, o cômputo geral é
a de uma alargada família de intervenientes, de várias gerações,
unidos em torno de um amor comum.
Estando
cada grande capítulo dedicado a um ano, prevê-se que se siga a
história na sua ordem cronológica. E, como explicam os
investigadores logo ao início, “relatar o percurso de uma
personagem como Spirou começando pelo lançamento da revista
[journal]
com o seu nome acabaria por ser como abrir um livro bem no meio da
história”. Por isso a primeira parte estende-se de 1898 a 1937
para contar a história do fundador da companhia e editora, Jean
Dupuis. Uma contextualização histórica, social e biográfica
serve, menos para criar o cadinho sócio-económico em que surgirá a
revista, mas antes para se compreender o papel imaginário da revista
e da personagem no programa de Dupuis. Através de testemunhos,
cartas, documentos, fotografias da época, constrói-se um retrato
deste homem que servirá para ancorar o surgimento da revista e,
posteriormente, de um pequeno império editorial da banda desenhada
belga.
Este
mecanismo estrutural ocorrerá várias vezes ao longo do livro, em
larga ou menor escala conforme as personalidades visadas, todas elas
vistas como, naturalmente, decisivas nas transformações sucessivas
da personagem: Rob-Vel, o artista original, Jijé, o artista que lhe
incutiria maior “corpo”, Franquin, que traria a primeira
consolidação actancial ao universo do personagem, Jean Doisy, o
incansável editor que iria nutrindo toda a máquina ficcional e
editorial, etc. Para além da revista em si, os autores colocam na
mesa de trabalho todo e qualquer documento suplementar, desde as
revistas anteriores de Dupuis (Le
Moustique,
Humouradio)
aos materiais promocionais de
Le Journal de Spirou,
dos calendários aos postais oferecidos ao clube (“Amis de Spirou”,
ou “AdS”), os quais cumpriram um papel particularmente
preponderante durante o período em que, sob a administração
militar nazi na Bélgica, Spirou
não pôde ser publicado. Num dos calendários de 1944, e num postal
do mesmo ano, circulava uma imagem de Spirou, desenhada por Jijé, em
que a personagem parecia descansar na relva, enquanto Spip segura um
pequeno painel declarando estarem “no desemprego”. Porém, a
ideia de um sol novo a nascer, o pequeno passarinho a cantar sobre
uma amendoeira em flor, e a frase do personagem - “Durmo... mas o
meu coração vela” - projectava a ideia de uma presença e atenção
continuadas durante a guerra que, mesmo não se podendo exprimir em
acções concretas, de resistência – a não ser a ideia de não
colaborar, de não pactuar com as regras administrativas -, reforçava
um elo especial, patriótico, com os seus leitores.
Como
é natural, surgem aqui muitas curiosidades, algumas das quais já
eram consabidas dos estudantes de Spirou, mas também esclarecendo
novos pontos e descobrindo novidades. Como se imagina, vemos os
esboços de Rob-Vel em busca da personagem, a origem dos nomes
“Spirou”, “Robbedoes” (a versão flamenga), “Fantasio”,
são explicadas, contextualizações são feitas para compreender
quais as possíveis origens das ideias e das opções – o uniforme
de Spirou, a cor, o papel dos companheiros, etc. Por exemplo, a parte
do livro dedicada à companhia de teatro de marionetas Farfadet, de
André Moons, é muito curiosa, sobretudo por dar a ver a origem de
um corpo de Fantasio que nada terá a ver com a figura que depois
seria desenvolvida e com que os leitores actuais estão
familiarizados, mas cuja importância ou peso se relaciona mais
imediatamente com as implicações que teve com a resistência
política aos nazis, à política de manter “acesa a chama”
durante a ausência do jornal, e por aí fora. Na verdade, este
episódio, como outros, trazido desta forma a lume e transformando-se
num elemento do arquivo disponível, viria a tornar-se um ingrediente
pronto a usar por vários autores contemporâneos, que têm procurado
“re-historicizar” Spirou,
de formas bem distintas entre si, como Émile Bravo, Yann e Olivier
Schwartz e Al Séverin, e que mereceriam abordagens individuais.
O
que é o mais surpreendente, ao ler esta documentação histórica,
mas também acompanhando-se pela leitura de todo o material que se
encontra disponível ou mesmo utilizando os fundos bibliotecários, é
que, ao contrário da imagem criada posteriormente, Spirou, em total
contraste com Tintin, não foi durante largos anos uma personagem
moldada. Na verdade, como Franquin diria anos mais tarde, seria uma
espécie de envelope vazio, a preencher à vontade do autor que o
tivesse em mãos. Hergé, ainda que de forma gradual até atingir a
fase Moulinsart, havia criado uma personagem com suficientes
contornos actanciais para ter uma “vida autónoma de papel”.
Spirou não. Nascido como mascote ou símbolo do jornal que tinha o
seu nome, ele era tão-somente uma cifra que servia de marca
registada, com histórias curtas francamente derivativas e pouco
desenvolvidas. Numa primeira fase, a revista tinha em Valhardi,
personagem de Doisy e Jijé, o grande ponto de interesse entre a
esmagadora maioria dos seus leitores na época.
Os
papéis actanciais – herói, adjunto, fonte de humor, companheiro,
etc. - nas histórias de Spirou flutuaram em demasia: Spip surgiu
imediatamente, mas as suas capacidades eram aumentadas ou diminuídas
conforme o momento; nalgumas primeiras histórias de Rob-Vel, Spirou
surge como amigo de um lutador negro, La Puce, que depois se eclipsa;
Fantasio nasceu também como uma assinatura icónica de uma coluna,
depois passou a marioneta, depois a boneco ilustrativo, finalmente a
personagem, mas bufa, nas histórias de Spirou, e cuja “seriedade”
só assentaria com a invenção de Gaston LaGaffe; mas mesmos os
papéis de inventor de Fantasio seriam “usurpados” pelo Conde de
Champignac, etc. Ou seja, os papéis e valores não eram certos, e
duraram muito tempo a ficarem assegurados, o que se explica pela vida
editorial particular desta personagem. Ou melhor dizendo,
precisamente por
não ter nascido tanto enquanto personagem mas como mascote.
Mas o desenvolvimento é bem mais complexo e de forma alguma linear e
paulatino, mas feito antes de recuos e avanços que, de alguma forma,
são expostos ao longo destas páginas, com todas as ferramentas
documentais possíveis da parte dos seus autores.
Uma
das possíveis consequências desta comemoração, e deste trabalho
de arquivo, é que talvez provoque interesse suficiente para se
lançarem edições integrais de trabalhos que, até à data, apenas
surgiram de forma parcelar, como o Spirou
de Rob-Vel e de Jijé, por exemplo, ou mesmo as histórias curtas de
Franquin. É também possível que o interesse dessas edições seja
drasticamente mais limitado do que o das “histórias comuns”, mas
essa é a sorte de toda e qualquer edição textual de elementos
históricos, arquivísticos, obscuros, etc. É bem possível, ainda,
que o projecto continue não apenas na linha cronológica como na sua
expansão lateral, descobrindo-se novos originais, recordando-se
melhor certos detalhes, esclarecendo um nome, uma filiação de uma
imagem, enquadrando-se uma recordação, etc. Existindo desde logo umblog no qual surgem notícias e os
autores vão abrindo canais de contacto com possíveis colaboradores,
imagina-se que, a longo prazo, possam formar-se em todos estes passos
um modelo muito curioso de trabalho arquivístico e memorativo a
seguir por outros quadrantes da banda desenhada.
Como complemento, eis um documentário da Arte feito por ocasião do aniversário da personagem:
Como complemento, eis um documentário da Arte feito por ocasião do aniversário da personagem:
Nota
final: agradecimentos a Gert Meesters, pelo empréstimo do livro. Todas as imagens retiradas do livro.
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