Tal qual em Deserto/Nuvem, mas também o poderíamos dizer de alguns outros projectos do autor, as circunstâncias do fabrico deste pequeno volume são expostas de forma clara na sua própria textualidade, tornando-se tópico, matéria e enquadramento do que ele oferta ao leitor. Fruto de uma residência associada ao legado literário de Eça de Queiroz, o título Cartas Inglesas difunde desde logo um elo intertextual que se pretende o mais transparente possível. Diria que de tão transparente que a rima estrutural – Eça escreveu uma meia-dúzia de crónicas para o jornal A Actualidade, do Porto, em 1877, sobre a vida social, cultural, política e relações diplomáticas de Inglaterra enquanto foi membro do consulado português naquele país, Lobo providencia-nos como um número similar de ensaios a partir da sua posição também enquanto emigrante no Reino Unido – desvanece-se de imediato pelas atitudes distintas. O território de Lobo não é o da pequena observação mundana pautada pela ironia, que tenta corrigir um mar de ignorância através de descobertas inesperadas para os seus leitores, mas bem pelo contrário remolda todo um rol de sentidos de familiaridade variada para criar reflexões incisivas.
Eles estão organizados de uma forma lógica, começando pelas circunstâncias precisas da construção do livro, depois uma repescagem da sua história pessoal publicamente tecida ao longo dos últimos livros, e finalmente as experiências em Inglaterra enquanto estudante, artista, docente, cidadão, emigrante, utente do sistema de saúde, português, europeu, crente cristão, leitor de filosofia. Todos estes círculos com relações entre si nem sempre necessariamente concêntricas, mas criando uma ideia fantasmática de alargar o escopo a cada capítulo.
A dado momento, o autor faz uma afirmação em relação à sua vida pessoal e à sua própria obra que constrói uma espécie de estratigrafia, ou pelo menos uma bruta periodização das obras presididas pelas consequências de um seu acidente psicótico e um outro conjunto como que “liberto” desse peso, e ao qual estas Cartas pertencerão. Dessa forma, poderemos entender quase todos os livros de auto-ficção como O cuidado dos pássaros, O desenhador defunto, como formas de enfrentar as camadas (níveis de análise) ou etapas (níveis de desenvolvimento) dessa “situação”, e outros volumes como “O problema Francisco” ou O andar de cima como pequenos gestos de uma ponderação mais cerebral do mesmo. De uma forma, portanto, mais descontraída na primeira pessoa, Cartas estará ainda na mesma senda de outros títulos em que o autor expõe mais a sua veia ensaística e de abordagem de temas complexos: a arte, a linguagem e espaço social da banda desenhada, a autoria própria, como víramos em I Like Your Art Much, ou mesmo o interrompido “40 ladrões” (integrados na série Palácio).
Os temas aqui abordados são variados, como já dissemos, e nesse sentido com efeito poder-se-iam adivinhar como crónicas num semanário qualquer, pautados pelas preocupações du jour: migrações, Brexit, identidades nacionais, o papel social da arte (ou mero pião do jogo comercial e cultural-comercial). Com uma contundência bem mais forte que muitas dessas mesmas crónicas, cujo intuito é muitas vezes um desprendimento das classes (uma maleita de muitos dos intelectuais da nossa praça, que almejam ser anjos acima da plebe, de que muitas vezes emanam com vergonha clara). Lobo não é um cínico, atenção. O cinismo depreeende pelo menos duas atitudes que não se encontram de forma clara no trabalho deste autor: o humor e o desprendimento. O seu engajamento é por dentro. As observações que faz são súbitas e iluminadoras (mas de uma maneira à la Bergson, em que é a revelação repentina do obscurecimento humano em que participamos que mais importa). Sofre num mesmo nível. Poder-se-ia dizer que é a canga do cristianismo. Poderíamos dizer que é tão-somente a condição da “compaixão” (termo discutido). Eu diria que é a consciência de não termos alguma vez saído do rés-do-chão.
Olá Pedro,
ResponderEliminarSe calhar já estivemos no rés-do-chão, mas, se saímos fora do nosso espaço natural, terá sido para a cave, ou, platonicamente, para a caverna?
Talvez o Francisco seja um cínico com sentido de humor, também tem esse direito, o que não desfaz o activismo que lhe deve ser reconhecido.
Obrigado por ajudares a entender a obra dele, que admiro cimeiramente, mais do que a minha visão encara ou alcança.
Aquele Abraço
josé