Como
já havíamos discutido a propósito dos seus trabalhos anteriores,
Francisco Sousa Lobo parece ser um daqueles autores que, como Baudoin
e Marco Mendes, entre outros, transforma todo e qualquer passo do seu
percurso em pequenas partes de um todo perfeitamente integrável.
Para repetirmos as mesmas ideias anteriormente esboçadas, não se
trata somente de agregar os trabalhos num conceito quantitativo como
“obra”, muito menos o de reduzir cada título a “episódios”
de uma “série”, etc. É compreender que existe um pulso e uma
intensidade em continuidade em cada trabalho, seja ele um livro (e
seja que género formal for, “novela”, “romance”,
“autobiografia”, “ensaio”), revista ou curta numa antologia.
No caso de Lobo, aquilo se verifica é uma exploração em torno de
questões de identidade, sobretudo uma identidade em crise por
assaltos de ordem psicológica, muitas vezes clínica, e que se
endereça às questões levantadas pelo projecto do momento. (Mais)
Estes
três títulos que trazemos à leitura conjunta são todos frutos, se
não de encomendas somente, a interpelações directas com
circunstâncias externas, digamos assim, ao movimento de criação
autónoma. O que queremos dizer com isto é que, paralelamente aos
trabalhos que o autor vai produzindo e preparando por si mesmo,
surgem-lhe de quando em vez momentos em que é convidado a produzir
trabalho para se integrar num contexto maior, mas Lobo aproveita-os
para regressar ao cerne das suas próprias questões, inflectindo-as
à luz desses pedidos.
O
andar de cima [Ar.Co/Chili Com Carne] é fruto de uma colaboração entre a escola Ar.Co
e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova: a
propósito da conferência “A Modulação da Tomada de Decisão:
Pode o cérebro ser influenciado?”, reunindo especialistas e outros
participantes para discutirem as fronteiras do cognitivismo,
neurologia, dimensões sociais, etc. associadas ao órgão mais
“misterioso” (de acordo com as palavras dos organizadores) do
corpo humano. Pode-se mesmo compreender os momentos em que o autor
integra os apontamentos da assistência das conferências. I Like
Your Art Much [auto-edição, adquirível através da Chili Com Carne, presumimos] é uma mescla entre carta aberta e ensaio em torno
da obra do artista português Hugo Canoilas, que trabalha actualmente
no Reino Unido, e lançado numa sua exposição deste ano. Inclui
apontamentos e representações das obras de Canoilas e conversas com
o artista. “O problema Francisco” [Fundação Calouste Gulbenkian] é um ensaio autobiográfico
publicado por ocasião do programa Próximo Futuro deste ano, que
serve de balanço e auto-apresentação, no jornal respectivo, e que
nasceu pela circunstância de um painel dedicado à banda desenhada,
no ciclo “Outras Literaturas”, a decorrer daqui a uns dias, e
co-organizado por nós.
A
leitura concomitante destes três trabalhos, todos eles curtos
(respectivamente de 20, 37 e 14 pranchas), revelará muitos pontos de
passagem, coincidências e até mesmo repetições temáticas ipsis
verbis (como a metáfora do banco de três pernas para descrever
a arte contemporânea, ou a forma como a operação da decisão, no
centro de Andar, vai ter presença em Your Art), e
mesmo as claríssimas diferenças narratológicas – O andar de
cima segue uma personagem ficcional, ainda que fale na primeira
pessoa, I like Your Art Much segue as regras clássicas da
autobiografia, procurando a coincidência entre autor, protagonista e
narrador, “O problema Francisco” parece tratar-se de uma
autobiografia mas usa a terceira pessoa do singular para provocar um
simultâneo desdobramento e distância – acabam por criar um
vórtice (regressaremos a este ponto adiante) de força centrípeta.
Não que estejamos “sempre a ler a mesma coisa”, mas sentimo-nos
regressar às mesmas forças.
É
muito raro que haja autores de banda desenhada que conheçam bem o
mundo das artes plásticas sem um posicionamento irónico e
anedótico, e muito menos aqueles que possuem os instrumentos
críticos necessários para, em primeiríssimo lugar, um diálogo
sapiente e equilibrado, e em seguida, uma distância que lhes
assegure um discurso sustentado e interpelante. As mais das vezes –
é o que sucede com The Sculptor, de Scott McCloud, que
leremos em breve - o mundo as artes visuais é visto com desconfiança
e até inveja, reduzido a meia-dúzia de anedotas e perfis de cartão
que em pouco correspondem à realidade do mundo mais musculado dessas
disciplinas, para depois jogar contra eles uma mão-cheia de
platitudes sobre “domínio técnico”, “ser-se genuíno”,
“honestidade”, e por aí fora. A estratégia é quase sempre a
mesma: contra a suposta pretensão intelectual e vazia das artes
visuais (a imagem da “nudez do rei” é uma recorrente forma de
ataque), ergue-se a honestidade e desempoeirada atitude da banda
desenhada. O problema é que essa é a primeira atitude pobre e
patética do mundo da banda desenhada, a pedir desculpas de forma
arrogante contra um mundo que desejaria compreender e penetrar, e
orgulhando-se da sua falta de educação e maneiras. Como é que se
pode compreender o que é um dito “pseudo-intelectual” se não se
é desde logo um “intelectual”? Como é que se sabe que
determinada composição, objecto de arte, discurso tecido em seu
torno, etc., é “falso” ou “vazio”, se não se oferece sequer
um qualquer passo em relação à “verdade” ou ao “cheio”
desses mesmos territórios?
Este
longo desvio deve-se ao facto de que Francisco Sousa Lobo tem criado
no seu trabalho contínuo, aturado e produtivo um diálogo constante
com esse outro mundo, mesmo quando de forma oblíqua. E não se
trata somente através das referências semi-veladas e
autobiográficas da sua formação académica (arquitectura, artes
visuais) ou do seu “consumo cultural”, mas através de uma
exploração dos instrumentos da banda desenhada para criar questões
e diálogos fortes com esse outro campo social. I Like Your Art
Much, em primeira instância uma carta aberta ao artista Hugo
Canoilas em banda desenhada, é apenas o corolário visível e
explícito desse trabalho. [Devemos aqui acrescentar que o autor criou duas páginas, intituladas "A Private View", sobre o seu próprio trbaalho mas num diálogo com Canoilas, na Art Review de Maio do ano passado] Endereçada a Canoilas, este livro não é
apenas um diálogo entre amigos, que colhe mesmo de um projecto de
gravação das suas conversas e em torno de uma sua exposição (com
os galeristas, espectadores, amigos comuns, etc.), logo posto de
lado, para canalizar-se numa interrogação sobre o papel da arte no
mundo contemporâneo e a sua ontologia própria. Procurando menos as
questões sociológicas, os jogos económico-políticos ou até mesmo
tentando tipologias formais e disciplinares, Lobo parte de um
conceito, que lhe é caro: o da “crise”.
A
crise não se encontra aqui no seu mais habitual significado. A crise
é, para o autor, um ponto de suspensão do tempo, uma sensação
eterna de duração, na curva da decisão. Isto é dito verbalmente.
Tratar-se-á da duração bergsoniana? Lobo diz que é aí que
a arte encontra o seu tempo. No que diz respeito à prática da banda
desenhada, à sua estrutura formal, é simples descobrir onde se
encontra essa suspensão: no intervalo entre as vinhetas. Entre uma
vinheta e a seguinte encontra-se aquilo que teóricos chamaram de
intervalo intericónico (Groensteen), ou mais prosaicamente, a
“sarjeta” (McCloud) onde depois ocorreria o fenómeno da Gestalt
conhecido por “fechamento” (closure). Existem
variadíssimas tentativas de teorizar através de várias disciplinas
os mecanismos desse intervalo. Nós próprios tentámos, noutro
lugar, compreender o que chamáramos de Ponto Nulo, menos através de
uma ideia de completação pela informação oferecida pelas
vinhetas, do que agregar todas as potencialidades advindas do
processo de leitura às “pequenas percepções” de Leibniz, à
ideia de que existem átomos livres que apenas na sua “aterrissagem”
nos elementos concretos da próxima vinheta encontra uma decisão,
tal qual o autor parece seguir. Hugo Canoilas, no blurb do livro que
se desenvolve em torno da sua obra e da amizade com o autor, fala das
alianças mas também de falha [gap] “entre palavra e
desenho”, assim como “entre a realidade a ficção” e entre os
corpos dele mesmo e do autor da banda desenhada. Esta última arte
contém mais elementos do que “a palava e o desenho”, sabemo-lo,
acima de mais, a própria estruturação de toda a matéria
disponível. É nos seus intervalos que penetra o trabalho de
interpretação (discordamos de Canoilas quando este fala de
“projecção”, que se aproxima da ideia de “identificação”,
julgamos nós; a “interpretação” é um conceito que mantém a
distância necessária, e não cria a ilusão da sua eliminação que
se promete nesses outros termos) do leitor. É aí que se provoca a
crise, e Francisco Sousa Lobo cria momentos de metalinguagem quando
fala dos processos da banda desenhada (ou outras dimensões, sociais
e políticas) na sua banda desenhada. Matéria visível pelas marcas
“deixadas” do próprio processo, sem “limpeza”.
Uma
outra camada de diálogo entre os trabalhos de Canoilas e Lobo
poderia ser escavada através do conceito de “moldura”, tal qual
tem sido pensado transdisciplinarmente, sobretudo no seu sentido dúplice de criar um espaço liminar entre a obra de arte (a ficção,
a construção, a representação) e o mundo fenoménico (a
realidade, a vida, etc.) - aqui seguindo-se ideias que remontam a
Georg Simmel – e também nos termos de criar um enquadramento
cognitivo preparando a interpretação do leitor, espectador,
utilizador, etc. Hugo Canoilas, antropofágico universal por razões
de geração e inclinação, cria algumas obras que abandona nas
ruas. Objectos, portanto, sem qualquer espécie de moldura (pedestal,
porta de galeria ou museu, data de vernissage, cartografia
cultural); Lobo comenta-as falando de como a cultura existe para nos
popular do esforço do pensamento, e como a beleza, sobretudo aquela
súbita de objectos abandonados à sua sorte e à deriva da
intempestiva interpretação de quem os encontrar, obriga ao regresso
a essa tarefa. No fundo, isto é profundamente benjaminiano, para
quem a obra de arte é um objecto que nos devolve o olhar que lhe
dedicamos. Lobo isola estas ideias através de imagens centradas em
objectos singulares, alguns “traduções” das obras de Canoilas,
noutros casos intervenções interpretativas suas, noutros casos,
talvez, metáforas íntimas que aumentam o grau de estranheza e
distância. A banda desenhada é por excelência uma arte de
emolduramentos sucessivos, e é curioso notar como este autor, que
repete tanto redes rectilíneas e ortogonais na composição das suas
páginas, explora descentramentos a outros níveis, como veremos.
Em
dois destes títulos, o autor cita a ideia da crise tríplice da
arte: crise da forma, de conteúdo e da relação entre uma e outra.
Talvez seja uma maneira demasiado arrumada de ver as questões (pois
também se poderia falar de crise institucional, política,
financeira, educativa, mediática, etc.), mas ela é eficaz de modo
suficientemente para criar uma estrutura não-simétrica,
periclitante e em desequilíbrio permanente. Tal qual o banquinho de
três pés, objecto que pode ser lido de forma literal e extremamente
dramática se for associada a uma outra dimensão, quiçá
autobiográfica, apresentada na história curta do jornal de Próximo
Futuro.
Francisco
Sousa Lobo tem explorado essa crise sistematicamente para procurar
também os intervalos que se instalarão na sua própria tarefa de
criador e, tendo em conta o estranho e descentrado projecto
autobiográfico, a sua própria vida. Em todas as escalas da sua vida
pessoal descobertas ou citadas (a infância, a vida familiar,
académica, profissional, cultural, a dimensão psicológica,
religiosa, criativa) instalam-se momentos de dúvida, por vezes em
que cada uma dessas escalas é jogada contra a outra, por outras
vezes no seio de uma delas. Daí a máquina orientar-se para o
problema baptizado, de modo explícito, na curta do jornal de Próximo
Futuro: “O problema Francisco”. Eis um excelente título para
toda a obra do autor (tal como independentemente do trabalho que
Marco Mendes venha a criar se agregará num “Diário Rasgado” ou
o de Baudoin num “Elogio da Poeira”, a cada autor o seu próprio
“Poema Contínuo”).
Esse
problema é o centro invisível e sistematicamente desviado, mas que
por isso mesmo incute o movimento da sua obra. É por essa razão que
falámos de “vórtice” acima, e encontraremos nestas histórias
formas visuais que a mimam, imitam ou à qual se tentam aproximar: os
círculos concêntricos que se encontram quase no centro de I Like
Your Art Much (e numa série de outras referências, centrais ou
oblíquas, do livro), o ponto negro e auréolas que nimbam o
protagonista de O andar de cima, e os variadíssimos jogos de
simetria e concentralidade em “O problema Francisco” (formas
centralizadas, redes de losangos, auréolas, “X”, etc., quase
sempre sublinhados pelos jogos de cor limitada [O andar de cima
é impresso a uma cor, diferente das imagens em grayscale aqui
empregues]). Se podemos encontrar graus distintos de pormenorização
do desenho no interior de um mesmo título, a assinatura do estilo é
suave, optando ora por formas minimais ora por intensas e quase
hipergráficas tramas obsessivas que aumentam a intensidade e
expressão, ou mesmo nervosismo, das personagens. Em termos
compositivos, “O problema Francisco” e O andar de cima são
mais regulares, ao passo que I Like Your Art Much é menos
confinando a uma maneira, procurando, talvez, na sua diversidade de
organização interna das imagens, uma homogenia e ritmo próximo da
natureza cambiável da arte do próprio Canoilas.
Essas
formas prometem uma força centrífuga, diametralmente oposta à
centripetidade dos esforços do autor. É no paradoxo desses
movimentos que encontramos a “crise”. No modo como colocam sempre
tudo descentrado, inclusive a própria centralidade do “eu” dos
protagonistas, em que a agência não é roubada, mas é esmagada por
se tornar centro da atenção de outros: a ideia revisitada do
“síndrome de Truman”, que faz as personagens viver episódios
esquizofrénicos nos quais acreditam que todo o mundo comenta e
observa a sua vida. Exemplos simétricos desses descentramentos é a
ideia de que Deus derrota a arte, mas a da arte a de Deus. Pudera que
o anjo da História de Walter Benjamin, de olhos postos nas ruínas
do passado mas incapaz de regressar para as fazer regressar ao estado
prístino original, seja uma imagem citada, ainda que em forma quase
de nota fugaz.
Não
será com estas bandas desenhadas que o autor conseguirá restaurar
as próprias ruínas a que tem direito, seguramente.
Cartografando-as, todavia, é possível que consiga redimir essa
mesma entropia.
Nota
final: agradecimentos ao artista, pela oferta das publicações,
envio das imagens, e à equipa do Próximo Futuro pelo desafio e
trabalho.
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