A
produção da Casterman é imparável, não se tratasse esta de uma
das principais casas editoras da banda desenhada francófona, se não
mesmo a mais importante editora belga da actualidade em termos de
presença no mercado. No entanto, para que essa máquina esteja
sempre alimentada, essa produção precisa de ser mais intensa e
diversificada em quantidade, o que leva também a que nem todos os
seus momentos sejam particularmente fortes. De quando em vez, porém,
existem projectos que mesmo no interior dos seus territórios
comerciais ou de negociação entre o alternativo e o genérico, o
contemporâneo e o convencional, conseguem conquistar algum espaço
crítico. É o caso deste volume de Marion Laurent, o seu primeiro
livro longo a solo. (Mais)
A
narrativa tem lugar nos Estados Unidos dos anos 1990, os quais já
parecem suficientemente distantes e cristalizados num certo ambiente
para se tornarem matéria de desfamiliarização ou nostalgia,
conforme o grau de experiencialidade dos leitores. No entanto, esse
olhar retrospectivo parece apenas estar preocupado com um certo aceno
para a cultura “slacker”, e num ponto ou outro, as negociações
raciais que isso permite na pequena cidade em que se desenvolve a
história, envolvendo uma jovem estudante e bailarina branca, uma sua
colega negra, e uma mulher mais velha que é vista como a “bêbada”
da cidade. Ou seja, a contextualização poderia ser qualquer outra,
pois com a excepção de referências específicas, o foco estará na
tensão que se cria entre estas personagens, num primeiro momento
distantes e desligadas uma das outras, senão mesmo em relações
antagónicas, e que aos poucos se vão aproximando graças a uma rede
que aperta, contracção essa espoletada por razões que lhes são
externas. Essas referências permitem que criemos algumas
associações, do grunge à Barbarella, que a
personagem masculina emula), mas não e trata de forma alguma de uma
pesquisa da época.
É
a estrutura do livro aquilo que lhe dá alguma substância. Dividida
em capítulos centrados em cada uma das personagens, vamos navegando
não apenas perspectivas diferentes, mas mundos sociais bem diversos,
e que expandem não apenas a matéria diegética do livro como
tornando mais substancial a aproximação última das três mulheres.
Não se trata daqueles mecanismos de narrativas “anti-naturais”
(agora expectáveis) de termos um evento central e depois de o
revisitarmos a partir de três olhares distintos. Cada capítulo tem
o seu próprio caminho não-coincidente, a vida das protagonistas. O
que importa neles é escavara a vida de Alice, Isadora e Billie,
sobretudo escavar os mundos interiores e emocionais de cada uma, para
que quando são levadas a conviver e partirem juntas numa espécie de
road trip se compreendam as linhas com que cada uma delas se
cose às outras, e que nem sempre são idênticas nem na força nem
na razão.
E
se
num momento pensamos ver na constelação, a trídade, feminina o
cerne da questão, a presença de Dwight corrigirá essa ideia, e
também providencia a potencialidade da fuga ou abertura do ciclo
vicioso em que as personagens se parecem encontrar. Poderíamos
encontrar aí um sinal cínico, uma vez que se Dwight afinal de torna
o objecto agregador da viagem – desejada por Alice, acompanhada
pelas outras duas mulheres -, dificilmente passaria o “teste
Bechdel”, mas a verdade é que podemos também afirmar que essa
viagem, ou esse objecto, não é mais do que uma desculpa (inclusive
para a própria narrativa) de colocar a acção em movimento. O facto
de haver “objectivos falhados” revelar-se-á não uma falha, uma
perda, mas antes a circunstância precisa para um outro tipo de
conquistas: de autonomia, felicidade, independência, maturidade
emocional, etc.
Em
termos artísticos, estamos perante uma daquelas abordagens onde
reina a simplificação e redução de “ruído”. Não se trata
propriamente de uma redução pelo traço caligráfico, tantas vezes
falado neste espaço, ou daquela abordagem à la “mangá
informativa”, em que se procura uma linguagem quase sígnica,
muitas vezes capazes de capacidades redentoras. A ausência de
cenários num grupo demasiado extenso de vinhetas, a redução dos
objectos a linhas sumárias, a simplificação das personagens a uma
espécie de Clip Art melhorado e um trabalho de cor algo deficiente,
claramente abusando do magenta (de propósito, mas sem propósito, se
assim se pode dizer) torna a camada visual algo pobre, quase mesmo
desinteressante. Porém, ela é “suficiente” no sentido de criar
a matéria sólida na qual a história se ergue, numa lentidão
sofrida e nos momentos de maior tensão e crise. Existem momentos de
inventabilidade de composição e até de fuga da realidade, pela
introdução de cenas oníricas, interrupções por memórias curtas,
vislumbres de algo fora da acção principal, e até mesmo alguma
preocupação em explorar as famílias cromáticas (apesar da pobreza
geral) nalguns sentidos simbólicos. Há mesmo alguma inteligência
na gestão das cenas dos diálogos, em termos de transição,
elegante, fluida e diversa, assim como de desenquadramentos que nos
preparam para a falta de segurança interna das personagens mesmo no
interior dos seus próprios mundos.
Todavia,
é de facto a “faixa narrativa” aquilo que torna esta novela, no
pleno sentido da palavra, num objecto de interesse. A distribuição
da atenção quase individualizada e isolada, e a responsabilização
no leitor ou leitora em acordar-lhes a importância devida, torna
Comment naissent les araignées num pequeno ensaio de co-escrita na
banda desenhada. Não há qualquer mistério a resolver, nem enigma
insondável, mas mesmo assim há como que uma completação da vida
destas personagens que teremos de “completar”, sobretudo numa
atitude de maturidade, precisamente descentrada dessa recompensa
fácil do “final completo e feliz”.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; todas as
imagens foram colhidas da internet.
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