18 de maio de 2015

Comment naissent les araignées. Marion Laurent (Casterman)

A produção da Casterman é imparável, não se tratasse esta de uma das principais casas editoras da banda desenhada francófona, se não mesmo a mais importante editora belga da actualidade em termos de presença no mercado. No entanto, para que essa máquina esteja sempre alimentada, essa produção precisa de ser mais intensa e diversificada em quantidade, o que leva também a que nem todos os seus momentos sejam particularmente fortes. De quando em vez, porém, existem projectos que mesmo no interior dos seus territórios comerciais ou de negociação entre o alternativo e o genérico, o contemporâneo e o convencional, conseguem conquistar algum espaço crítico. É o caso deste volume de Marion Laurent, o seu primeiro livro longo a solo. (Mais) 

A narrativa tem lugar nos Estados Unidos dos anos 1990, os quais já parecem suficientemente distantes e cristalizados num certo ambiente para se tornarem matéria de desfamiliarização ou nostalgia, conforme o grau de experiencialidade dos leitores. No entanto, esse olhar retrospectivo parece apenas estar preocupado com um certo aceno para a cultura “slacker”, e num ponto ou outro, as negociações raciais que isso permite na pequena cidade em que se desenvolve a história, envolvendo uma jovem estudante e bailarina branca, uma sua colega negra, e uma mulher mais velha que é vista como a “bêbada” da cidade. Ou seja, a contextualização poderia ser qualquer outra, pois com a excepção de referências específicas, o foco estará na tensão que se cria entre estas personagens, num primeiro momento distantes e desligadas uma das outras, senão mesmo em relações antagónicas, e que aos poucos se vão aproximando graças a uma rede que aperta, contracção essa espoletada por razões que lhes são externas. Essas referências permitem que criemos algumas associações, do grunge à Barbarella, que a personagem masculina emula), mas não e trata de forma alguma de uma pesquisa da época.

É a estrutura do livro aquilo que lhe dá alguma substância. Dividida em capítulos centrados em cada uma das personagens, vamos navegando não apenas perspectivas diferentes, mas mundos sociais bem diversos, e que expandem não apenas a matéria diegética do livro como tornando mais substancial a aproximação última das três mulheres. Não se trata daqueles mecanismos de narrativas “anti-naturais” (agora expectáveis) de termos um evento central e depois de o revisitarmos a partir de três olhares distintos. Cada capítulo tem o seu próprio caminho não-coincidente, a vida das protagonistas. O que importa neles é escavara a vida de Alice, Isadora e Billie, sobretudo escavar os mundos interiores e emocionais de cada uma, para que quando são levadas a conviver e partirem juntas numa espécie de road trip se compreendam as linhas com que cada uma delas se cose às outras, e que nem sempre são idênticas nem na força nem na razão.

E se num momento pensamos ver na constelação, a trídade, feminina o cerne da questão, a presença de Dwight corrigirá essa ideia, e também providencia a potencialidade da fuga ou abertura do ciclo vicioso em que as personagens se parecem encontrar. Poderíamos encontrar aí um sinal cínico, uma vez que se Dwight afinal de torna o objecto agregador da viagem – desejada por Alice, acompanhada pelas outras duas mulheres -, dificilmente passaria o “teste Bechdel”, mas a verdade é que podemos também afirmar que essa viagem, ou esse objecto, não é mais do que uma desculpa (inclusive para a própria narrativa) de colocar a acção em movimento. O facto de haver “objectivos falhados” revelar-se-á não uma falha, uma perda, mas antes a circunstância precisa para um outro tipo de conquistas: de autonomia, felicidade, independência, maturidade emocional, etc.

Em termos artísticos, estamos perante uma daquelas abordagens onde reina a simplificação e redução de “ruído”. Não se trata propriamente de uma redução pelo traço caligráfico, tantas vezes falado neste espaço, ou daquela abordagem à la “mangá informativa”, em que se procura uma linguagem quase sígnica, muitas vezes capazes de capacidades redentoras. A ausência de cenários num grupo demasiado extenso de vinhetas, a redução dos objectos a linhas sumárias, a simplificação das personagens a uma espécie de Clip Art melhorado e um trabalho de cor algo deficiente, claramente abusando do magenta (de propósito, mas sem propósito, se assim se pode dizer) torna a camada visual algo pobre, quase mesmo desinteressante. Porém, ela é “suficiente” no sentido de criar a matéria sólida na qual a história se ergue, numa lentidão sofrida e nos momentos de maior tensão e crise. Existem momentos de inventabilidade de composição e até de fuga da realidade, pela introdução de cenas oníricas, interrupções por memórias curtas, vislumbres de algo fora da acção principal, e até mesmo alguma preocupação em explorar as famílias cromáticas (apesar da pobreza geral) nalguns sentidos simbólicos. Há mesmo alguma inteligência na gestão das cenas dos diálogos, em termos de transição, elegante, fluida e diversa, assim como de desenquadramentos que nos preparam para a falta de segurança interna das personagens mesmo no interior dos seus próprios mundos.

Todavia, é de facto a “faixa narrativa” aquilo que torna esta novela, no pleno sentido da palavra, num objecto de interesse. A distribuição da atenção quase individualizada e isolada, e a responsabilização no leitor ou leitora em acordar-lhes a importância devida, torna Comment naissent les araignées num pequeno ensaio de co-escrita na banda desenhada. Não há qualquer mistério a resolver, nem enigma insondável, mas mesmo assim há como que uma completação da vida destas personagens que teremos de “completar”, sobretudo numa atitude de maturidade, precisamente descentrada dessa recompensa fácil do “final completo e feliz”.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; todas as imagens foram colhidas da internet

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