6 de maio de 2015

Moi, René Tardi, prisonnier de guerre au Stalag II B, Vols. 1 e 2. Jacques Tardi (Casterman)


Jacques Tardi é um dos autores que, nos anos 1970, ajudou ao desenvolvimento do que seria visto depois como a “veia literária” da banda desenhada. O seu trabalho teve, quase desde o início, contornos explicitamente políticos, de esquerda, em que procura estudar os fenómenos de injustiça, sobretudo aqueles que têm repercussões na construção da identidade nacional. Em parte, é isso o que justifica a sua particular atenção para com períodos precisos históricos da França. (Mais)

Se é a 1ª Guerra Mundial aquela que parece ter ocupado a maior parte da sua obra (na qual o seu avô participara), Tardi não negligenciou a 2ª. Já Nestor Burma, personagem de Malet que Tardi adaptara para a banda desenhada, tinha tecido nos seus livros comentários sobre a sua experiência nos “Stalag”, os campos de prisioneiros de guerra. Mas este novo projecto trata da experiência do próprio pai de Tardi, René, o que o torna mais pessoal, potencialmente dramático (mas veremos como isso não acontece), ms também permitirá, quiçá, rever a obra anterior à luz desta nova prestação. Almejando contar toda a experiência e as suas consequências, o primeiro volume trata desde a captura até ao fim da guerra, e a preparação para a marcha de saída, mas ainda prisioneiros, o segundo sobre toda a travessia da Alemanha até à chegada junto aos americanos e chegada ao solo francês, ao passo que o terceiro volume (final?) discorrerá sobre a experiência em França – que se adivinha problemática – e regresso à Alemanha.
Se os elementos narrativos estão dispostos para apresentar um relato contundente, a abordagem formal deixa algumas questões em aberto.
Como sabem os leitores de longa data de Tardi, o autor tem vivido uma cada vez maior estilização do seu desenho por via de um traço cada vez mais livre, em que as personagens têm ganho formas líquidas, bulbosas, e que, até certo ponto, em informado também os outros objectos à vista. Ainda assim, mantém-se uma diferença entre uns e outros suficiente para que Tardi ainda possa ser visto como um herdeiro de um dos mecanismos de representação mais típicos da pós-“linha clara” (cenários realistas versus personagens estilizadas), particularmente notável aqui pela atenção que o autor tem para com o equipamento militar (sobretudo tanques, perdão, corrigidos pelo pai de Tardi, “diz-se 'carros de combate'", do qual ele era condutor). Esta divisão, de resto, é uma opção formal que tem apoiado todos aqueles investigadores de banda desenhada que têm defendido que a abordagem caricatural e estilizada atinge um grau especial de realismo, por oposição à utilização do foto-realismo ou ao realismo clássico da literatura. É o caso de Lecigne e Tamine, com o seu conceito de “Novo Realismo”, estratégia a qual encontraremos noutros autores, tais como Shigeru Mizuki, que também tratou do mesmo “tema” em Onwards Towards Our Noble Deaths, de que falaremos em breve.

Como já havíamos citado há pouco, Ann Miller, discutindo precisamente este aspecto da obra de Tardi, explicita que o envolvimento crítico do autor é visível não apenas por essa aliança ao realismo como a “questões políticas contemporâneas”. Ora, se a palavra “contemporânea” parece desadequada em relação a episódios sobre a 2ª Guerra Mundial, é importante sublinhar que o que está no cerne deste livro é a negociação da herança desses episódios nos nossos dias. René Tardi combateu pouco, tendo entrado na guerra logo em 1939, e sendo capturado em 1940, ficando prisioneiro do campo de Hammerstein, perto das margens do Báltico, durante todo o conflito. Ou seja, não participaria de nenhuma das dramáticas “narrativas” que se tornariam as mais prementes na memória da Guerra, a saber a dos valentes combatentes, os corajosos resistentes, ou a terrível calamidade das vítimas, mas tampouco as dos infames colaboradores ou carrascos. Apanhado portanto num campo quase “desinteressante”, e que teria graves consequências na sua reintegração (sem glória, sem simpatia) na sociedade francesa quando do regresso, René Tardi faz parte de um grupo de pessoas cuja história está, em larga medida, por fazer. É aí que reside o poder deste gesto de Tardi, ainda que, pelo menos nos dois primeiros volumes (o “período no campo” e o “período do regresso lento”), não haja qualquer integração ou negociação com as narrativas dominantes deste conflito – ou muito, muito pontual de forma quase a secundarizá-las. Voltaremos a este ponto adiante.

O autor, em muitas das suas obras, quer as ficcionais quer as históricas (baseadas em investigação própria ou adaptações), utiliza estratégias de composição por camadas, empregando objectos (ou suas representações) como artigos de jornais, cartas, fotografias, etc. Isso não deixa de ser também aplicável neste projecto, já que os paratextos (introduções, folhas de guarda, etc.) apresentam documentos originais e transformados, mas eles não são propriamente integrados no “texto” central, o que leva a uma certa homogeneidade, à qual voltaremos. Esses paratextos mostram fotos do pai no tempo do campo ou em seu torno, desenhos do mesmo, a pequena agenda preta onde ia apontando locais e datas de forma sumária, material arquivístico, fotos de repérages, mapas do percurso, etc. Essa dimensão permitiria, talvez, um diálogo entre este livro - feito por outra pessoa que não o "experienciador", como ocorrera em La guerre d'Alan, de E. Guibert - e todos aqueles em que autores criaram objectos gráficos em torno de experiências similares: Citizen 13660, de Miné Okubo, To the Kwai and Back, de Ronald Searle, Drawings From the Gulag, de Danzig Baldaev, entre outros que desconheceremos.

Se a 2ª G.M. levanta questões particulares sobre a relação entre o realismo e a recepção das suas representações (pense-se na abordagem de Claude Lanzmann com Shoah, por exemplo), é curioso notar como a inexorabilidade do discurso de Tardi se mantém inalterada ao longo das páginas destes livros (quase duzentas pranchas por livro), subsumindo toda a “informação” desses documentos a uma matéria homogénea.

Se a “função-autor” ganha no jovem Jacques Tardi um “fato de ficção”, para falar como Grant Morrison, quer dizer, se esse é um mecanismo que serviria para criar a ideia de interlocutor do discurso do pai, espelhar as conversas reais que terão tido lugar entre Tardi pai e Tardi filho, ou entre o autor e todo o material arquivístivo e relatos deixados pelo pai, isso não leva a que se construa uma estrutura narrativa e temporalmente complexa como aquela verificada em Maus. Se na obra de art spiegelman há uma complexificação e interacção directa entre as unidades espácio-temporais (a Polónia em 1940 e Nova Iorque em 1980) e os dois narradores (Vladek e Artie, ainda que o primeiro seja veiculado pelo segundo), levando ao que S. Horstkotte e N. Pedri chamam de “enredamento intricado de vozes narrativas” (“Focalization in Graphic Narrative”), no caso de Stalag IIB essa negociação praticamente não existe, e apesar da metaforização do Tardi-puto a acompanhar o pai ao longo de todo o seu percurso, não há verdadeiramente uma criação de um espaço do narrador do presente em relação ao passado, mas antes uma fraca função narrativa, que apenas satisfaz a necessidade de ter alguém a colocar perguntas para que o protagonista vá explicando/expondo as coisas...

O autor mostra algumas páginas dos tais caderninhos onde o pai apontara locais e datas. Sabemos também que parte da narrativa se baseia em conversas (entrevistas) que o autor fez com o pai (até esse ponto, num processo muito similar ao de Maus). E são bastas as vezes em que, na narrativa, o autor-enquanto-criança é explícito sobre as contradições internas ou os “buracos” de informação em relação a um ou outro ponto (sobre uma passagem a utilização de uma ponte, uma paisagem, a condição de uma pequena vila, etc.). O que é notório é que a listagem do pai tem uma tradução quase imediata e formal na estrutura das pranchas. Esta são sempre, sem excepção, constituídas por três vinhetas oblongas. Esta estrutura já tinha sido empregue em C'était la guerre des tranchées [publicada há relativamente pouco tempo na colecção Novela Gráfica]. Analisada por Michael Hein, nessa obra tal estrutura é “simples e austera”, sublinhando a paisagem das trincheiras de modo quase literal, mas deixando espaço para intervenções textuais das mais diversas fontes.

Há um certo tom hipnótico e inexorável nessa apresentação, que traduz as informações sumárias dos caderninhos. Esse avanço, esse ritmo inalterado torna-se prevalecente e dominador, até mesmo esmagador depois de um certo número de páginas. Não se procura nenhum tipo de fluidez, estrutura de facilitação de legibilidade, momentos diferenciados de acção-inacção, pausa e avanço, recuos e dramas, emoção, enfim, mas apenas um martelar sem cessar da voz de René Tardi, apenas de quando em quando interrompido, ou na verdade apenas momentaneamente entrecortado, pela voz do filho metafórico e de brevíssimas, pontuais intervenções de terceiros. O que tem como resultado um certo vogar entendiante, que não tem os mesmos contornos de negociação interpessoal, temporal e ontológico até que encontraríamos noutras obras, com Maus à cabeça, mas não apenas.

Sendo uma obra a preto-e-branco, ou melhor, com gradações de cinzentos, mas aplicados a computador, a intervenção da cor tem um papel que se deseja dramático: no primeiro volume nos céus vermelhos a ferro e fogo, nas bandeiras nazis penduradas numa vila, no segundo volume começando em alguns apontamentos para assinalar mortes violentas (nas quais o próprio René esteve envolvido ou teve responsabilidade), as bandeiras dos aliados, dos nazis, da Cruz Vermelha, um objecto ou outro isolado, até regressar paulatinamente no final. Mas essas intervenções, se podem recordar discussões que tiveram lugar no cinema, não servem nem para diferenciar dois mundos opostos e distintos (como ocorre, de forma invertida, em The Wizard of Oz ou Pleasantville), nem para permitir uma maior subjectivização dos protagonistas (como é o caso nos filmes Rumble Fish ou Shindler's List): estão apenas como “efeitos” de melodrama, o que em pouco abona à economia emocional de Moi, René Tardi, prisonnier de guerre au Stalag IIB.

Todavia, admitamos que essa é uma estratégia que poderá eventualmente ser vista de outra perspectiva, levando a outra compreensão da construção da subjectividade das personagens. Eis um estudo comparativo interessante: a recriação da identidade dos pais através do trabalho dos filhos em Maus, Fun Home, A arte de voar, e Kraut, de P. Pontiac, e Stalag IIB, entre outros títulos. Uma leitura aturada dos mecanismos narrativos e formais de cada uma dessas obras revelaria diferenciações de tratamento, objectivos e resultados.

Por outro lado, essa escolha de inexorabilidade e inflexibilidade formal poderá ser uma maneira de dar corpo à experiência traumática do pai, que não é uma “mudez” - afinal, ele conta a história – mas um tom empedernido, inamovível e impermeável aos desejos de entretenimento e moldagem literária expectáveis de abordagens mais convencionais (precisamente “novelescas”, “romanceadas”, “literárias”, etc.). segue apenas o ritmo do dia-a-dia, ou melhor, o dia a dia a dia...

Como dissemos, não há propriamente uma re-integração desta história pessoal com as histórias dominantes ou até normativas da 2º Guerra Mundial. Isso poderá ocorrer no próximo volume. Ou poderá não vir a ter lugar, tratando-se somente, ou precisamente, na abertura de um espaço diferente de expressão, para uma personagem, em nome de muitos outros homens, cuja história não havia tido esse mesmo espaço até agora. Seja qual for o caso, não deixa Tardi de demonstrar como a sua contínua obra, de interpelação em relação à história e identidade francesas, continua a viver em linhas fracturantes.

Nota final : agradecimentos a Rik Spanjers, pela troca de impressões, e à editora, pela oferta do livro.

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