Jacques
Tardi é um dos autores que, nos anos 1970, ajudou ao desenvolvimento
do que seria visto depois como a “veia literária” da banda
desenhada. O seu trabalho teve, quase desde o início, contornos
explicitamente políticos, de esquerda, em que procura estudar os
fenómenos de injustiça, sobretudo aqueles que têm repercussões na
construção da identidade nacional. Em parte, é isso o que
justifica a sua particular atenção para com períodos precisos
históricos da França. (Mais)
Se
é a 1ª Guerra Mundial aquela que parece ter ocupado a maior parte
da sua obra (na qual o seu avô participara), Tardi não negligenciou
a 2ª. Já Nestor Burma, personagem de Malet que Tardi adaptara para
a banda desenhada, tinha tecido nos seus livros comentários sobre a
sua experiência nos “Stalag”, os campos de prisioneiros de
guerra. Mas este novo projecto trata da experiência do próprio pai
de Tardi, René, o que o torna mais pessoal, potencialmente dramático
(mas veremos como isso não acontece), ms também permitirá,
quiçá, rever a obra anterior à luz desta nova prestação.
Almejando contar toda a experiência e as suas consequências, o
primeiro volume trata desde a captura até ao fim da guerra, e a
preparação para a marcha de saída, mas ainda prisioneiros, o
segundo sobre toda a travessia da Alemanha até à chegada junto aos
americanos e chegada ao solo francês, ao passo que o terceiro volume
(final?) discorrerá sobre a experiência em França – que se
adivinha problemática – e regresso à Alemanha.
Se
os elementos narrativos estão dispostos para apresentar um relato
contundente, a abordagem formal deixa algumas questões em aberto.
Como
sabem os leitores de longa data de Tardi, o autor tem vivido uma cada
vez maior estilização do seu desenho por via de um traço cada vez
mais livre, em que as personagens têm ganho formas líquidas,
bulbosas, e que, até certo ponto, em informado também os outros
objectos à vista. Ainda assim, mantém-se uma diferença entre uns e
outros suficiente para que Tardi ainda possa ser visto como um
herdeiro de um dos mecanismos de representação mais típicos da
pós-“linha clara” (cenários realistas versus personagens
estilizadas), particularmente notável aqui pela atenção que o
autor tem para com o equipamento militar (sobretudo tanques, perdão,
corrigidos pelo pai de Tardi, “diz-se 'carros de combate'", do qual ele era condutor). Esta
divisão, de resto, é uma opção formal que tem apoiado todos
aqueles investigadores de banda desenhada que têm defendido que a
abordagem caricatural e estilizada atinge um grau especial de
realismo, por oposição à utilização do foto-realismo ou ao
realismo clássico da literatura. É o caso de Lecigne e Tamine, com
o seu conceito de “Novo Realismo”, estratégia a qual
encontraremos noutros autores, tais
como Shigeru Mizuki, que também tratou do mesmo “tema” em
Onwards Towards Our Noble Deaths, de que falaremos em
breve.
Como
já havíamos citado há pouco, Ann Miller, discutindo precisamente
este aspecto da obra de Tardi, explicita que o envolvimento crítico
do autor é visível não apenas por essa aliança ao realismo como a
“questões políticas contemporâneas”. Ora, se a palavra
“contemporânea” parece desadequada em relação a episódios sobre
a 2ª Guerra Mundial, é importante sublinhar que o que está no
cerne deste livro é a negociação da herança desses episódios nos
nossos dias. René Tardi combateu pouco, tendo entrado na guerra logo
em 1939, e sendo capturado em 1940, ficando prisioneiro do campo de
Hammerstein, perto das margens do Báltico, durante todo o conflito.
Ou seja, não participaria de nenhuma das dramáticas “narrativas”
que se tornariam as mais prementes na memória da Guerra, a saber a
dos valentes combatentes, os corajosos resistentes, ou a terrível
calamidade das vítimas, mas tampouco as dos infames colaboradores ou
carrascos. Apanhado portanto num campo quase “desinteressante”, e
que teria graves consequências na sua reintegração (sem glória,
sem simpatia) na sociedade francesa quando do regresso, René Tardi
faz parte de um grupo de pessoas cuja história está, em larga
medida, por fazer. É aí que reside o poder deste gesto de Tardi,
ainda que, pelo menos nos dois primeiros volumes (o “período no
campo” e o “período do regresso lento”), não haja qualquer
integração ou negociação com as narrativas dominantes deste
conflito – ou muito, muito pontual de forma quase a
secundarizá-las. Voltaremos a este ponto adiante.
O
autor, em muitas das suas obras, quer as ficcionais quer as
históricas (baseadas em investigação própria ou adaptações),
utiliza estratégias de composição por camadas, empregando objectos
(ou suas representações) como artigos de jornais, cartas,
fotografias, etc. Isso não deixa de ser também aplicável neste
projecto, já que os paratextos (introduções, folhas de guarda,
etc.) apresentam documentos originais e transformados, mas eles não
são propriamente integrados no “texto” central, o que leva a uma
certa homogeneidade, à qual voltaremos. Esses paratextos mostram
fotos do pai no tempo do campo ou em seu torno, desenhos do mesmo, a
pequena agenda preta onde ia apontando locais e datas de forma
sumária, material arquivístico, fotos de repérages, mapas
do percurso, etc. Essa dimensão permitiria, talvez, um diálogo entre este livro - feito por outra pessoa que não o "experienciador", como ocorrera em La guerre d'Alan, de E. Guibert - e todos aqueles em que autores criaram objectos gráficos em torno de experiências similares: Citizen 13660, de Miné Okubo, To the Kwai and Back, de Ronald Searle, Drawings From the Gulag, de Danzig Baldaev, entre outros que desconheceremos.
Se
a 2ª G.M. levanta questões particulares sobre a relação entre o
realismo e a recepção das suas representações (pense-se na
abordagem de Claude Lanzmann com Shoah, por exemplo), é
curioso notar como a inexorabilidade do discurso de Tardi se mantém
inalterada ao longo das páginas destes livros (quase duzentas
pranchas por livro), subsumindo toda a “informação” desses
documentos a uma matéria homogénea.
Se
a “função-autor” ganha no jovem Jacques Tardi um “fato de
ficção”, para falar como Grant Morrison, quer dizer, se esse é
um mecanismo que serviria para criar a ideia de interlocutor do
discurso do pai, espelhar as conversas reais que terão tido lugar
entre Tardi pai e Tardi filho, ou entre o autor e todo o material
arquivístivo e relatos deixados pelo pai, isso não leva a que se
construa uma estrutura narrativa e temporalmente complexa como aquela
verificada em Maus. Se na obra de art spiegelman há uma
complexificação e interacção directa entre as unidades
espácio-temporais (a Polónia em 1940 e Nova Iorque em 1980) e os
dois narradores (Vladek e Artie, ainda que o primeiro seja veiculado
pelo segundo), levando ao que S. Horstkotte e N. Pedri chamam de
“enredamento intricado de vozes narrativas” (“Focalization in
Graphic Narrative”), no caso de Stalag IIB essa negociação
praticamente não existe, e apesar da metaforização do Tardi-puto a
acompanhar o pai ao longo de todo o seu percurso, não há
verdadeiramente uma criação de um espaço do narrador do presente
em relação ao passado, mas antes uma fraca função narrativa, que
apenas satisfaz a necessidade de ter alguém a colocar perguntas para
que o protagonista vá explicando/expondo as coisas...
O
autor mostra algumas páginas dos tais caderninhos onde o pai
apontara locais e datas. Sabemos também que parte da narrativa se
baseia em conversas (entrevistas) que o autor fez com o pai (até
esse ponto, num processo muito similar ao de Maus). E são
bastas as vezes em que, na narrativa, o autor-enquanto-criança é
explícito sobre as contradições internas ou os “buracos” de
informação em relação a um ou outro ponto (sobre uma passagem a
utilização de uma ponte, uma paisagem, a condição de uma pequena
vila, etc.). O que é notório é que a listagem do pai tem uma
tradução quase imediata e formal na estrutura das pranchas. Esta
são sempre, sem excepção, constituídas por três vinhetas
oblongas. Esta estrutura já tinha sido empregue em C'était la
guerre des tranchées [publicada
há relativamente pouco tempo na colecção Novela Gráfica].
Analisada por Michael Hein, nessa obra tal estrutura é
“simples e austera”, sublinhando a paisagem das trincheiras de
modo quase literal, mas deixando espaço para intervenções textuais
das mais diversas fontes.
Há
um certo tom hipnótico e inexorável nessa apresentação, que
traduz as informações sumárias dos caderninhos. Esse avanço, esse
ritmo inalterado torna-se prevalecente e dominador, até mesmo
esmagador depois de um certo número de páginas. Não se procura
nenhum tipo de fluidez, estrutura de facilitação de legibilidade,
momentos diferenciados de acção-inacção, pausa e avanço, recuos
e dramas, emoção, enfim, mas apenas um martelar sem cessar da voz
de René Tardi, apenas de quando em quando interrompido, ou na
verdade apenas momentaneamente entrecortado, pela voz do filho
metafórico e de brevíssimas, pontuais intervenções de terceiros.
O que tem como resultado um certo vogar entendiante, que não tem os
mesmos contornos de negociação interpessoal, temporal e ontológico
até que encontraríamos noutras obras, com Maus à cabeça,
mas não apenas.
Sendo
uma obra a preto-e-branco, ou melhor, com gradações de cinzentos,
mas aplicados a computador, a intervenção da cor tem um papel que
se deseja dramático: no primeiro volume nos céus vermelhos a ferro
e fogo, nas bandeiras nazis penduradas numa vila, no segundo volume
começando em alguns apontamentos para assinalar mortes violentas
(nas quais o próprio René esteve envolvido ou teve
responsabilidade), as bandeiras dos aliados, dos nazis, da Cruz
Vermelha, um objecto ou outro isolado, até regressar paulatinamente
no final. Mas essas intervenções, se podem recordar discussões que
tiveram lugar no cinema, não servem nem para diferenciar dois mundos
opostos e distintos (como ocorre, de forma invertida, em The
Wizard of Oz ou Pleasantville), nem para permitir uma
maior subjectivização dos protagonistas (como é o caso nos filmes
Rumble Fish ou Shindler's List): estão apenas como
“efeitos” de melodrama, o que em pouco abona à economia
emocional de Moi, René Tardi, prisonnier de guerre au Stalag IIB.
Todavia,
admitamos que essa é uma estratégia que poderá eventualmente ser
vista de outra perspectiva, levando a outra compreensão da
construção da subjectividade das personagens. Eis um estudo
comparativo interessante: a recriação da identidade dos pais
através do trabalho dos filhos em Maus, Fun Home, A
arte de voar, e Kraut, de P. Pontiac, e Stalag IIB, entre outros títulos. Uma
leitura aturada dos mecanismos narrativos e formais de cada uma
dessas obras revelaria diferenciações de tratamento, objectivos e
resultados.
Por
outro lado, essa escolha de inexorabilidade e inflexibilidade formal
poderá ser uma maneira de dar corpo à experiência traumática do
pai, que não é uma “mudez” - afinal, ele conta a
história – mas um tom empedernido, inamovível e impermeável aos
desejos de entretenimento e moldagem literária expectáveis de
abordagens mais convencionais (precisamente “novelescas”,
“romanceadas”, “literárias”, etc.). segue apenas o ritmo do
dia-a-dia, ou melhor, o dia a dia a dia...
Como
dissemos, não há propriamente uma re-integração desta história
pessoal com as histórias dominantes ou até normativas da 2º Guerra
Mundial. Isso poderá ocorrer no próximo volume. Ou poderá não vir
a ter lugar, tratando-se somente, ou precisamente, na abertura de um
espaço diferente de expressão, para uma personagem, em nome de
muitos outros homens, cuja história não havia tido esse mesmo
espaço até agora. Seja qual for o caso, não deixa Tardi de
demonstrar como a sua contínua obra, de interpelação em relação
à história e identidade francesas, continua a viver em linhas
fracturantes.
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