Os fanzines estão de viva saúde e recomendam-se. A Feira Morta – tal como Festival de Beja e outros momentos - continua a ser um excelente ponto de partida e de encontro para a produção actual, e é curioso notar o surgimento de novos projectos quer de novos agentes quer de veteranos, mas onde a circulação tem o mesmo peso. Existem outros canais de distribuição destes objectos, é claro, sendo a correspondência um dos principais, mas estamos em crer que a organização de certames específicos leva as coisas a melhor porto. Remetendo a experiências anteriores neste espaço, faremos aqui algumas considerações sobre alguns títulos que nos chegaram às mãos, ora na Feira Morta, ora por outras vias. Diferentes entre si, criam também uma comunidade alargada que explicitará o que antes já expuséramos (há muito!) em “Um fanzine é…” (Mais)
Vial
e sem título. Sofia Neto. Apesar de ambos estas publicações já
rondarem a praça há algum tempo, apenas pela circunstância da
publicação anterior é que abordamos estas. Sofia Neto é uma
autora nova cuja produção se aproxima de uma abordagem que vemos
cotejar artistas como Matt Madden, Pierre Maurel e uns quantos
outros, cuja característica máxima é provocar uma sucinta, rápida
e simples legibilidade do desenho através de um baixo mas sólido
número de linhas para debuxar os corpos e os objectos. A autora
parece também interessada em explorar várias linhas possíveis de
desenvolvimento das narrativas. Vial parece ser um episódio de uma
saga maior passada num hipotético e tétrico futuro, onde a
sobrevivência dos seres humanos parece estar agarrada por um fio.
Mas a lâmina que poderá cortar esse fio encontra-se num número de
misteriosos frascos contendo uma substância ainda menos
compreensível. Nada desta sinopse nasce, porém, de uma completa e
decisiva apresentação dos “factos” em Vial. As coisas
são apresentadas in media res, são deixadas por resolver de
modo final e tudo é mostrado vagamente, concentrando-se num único
“episódio” em que duas personagens interagem de forma dramática.
O
outro livrinho colecciona como que um conjunto de tiras formalmente
clássicas, de três vinhetas, e, se não tomássemos atenção aos
eventos representados e textos, julgaríamos estar perante unidades
completas e coesas. Todavia, mais uma vez estamos perante intervalos
de hipotéticos universos diegéticos a que jamais teremos acesso
senão nestes súbitos relampejos. Se bem que várias comparações
fossem possíveis, existindo vários autores que criarão
dispositivos narrativos similares, ficar-nos-emos pela comparação a
Daniel Blancou, cuja série Samuel Limpiski (publicadas na
Lapin) se aproximavam à da Neto pela sua autonomia absoluta a
uma narrativa maior, mas criando as prerrogativas suficientes para a
sua expansão conceptual. Um dos curiosos resultados é que a tira
aqui é empregue para uma efeito bem distinto ora do cómico ora do
aventureiro, por hipótese as duas maiores forças desse formato em
particular. Não quer dizer que não haja humor no trabalho de Neto,
mas será um humor “negro”, “cínico” que nasce do prazer de
encontrarmos estas personagens em situações dramáticas, trágicas,
terríveis. A dimensão “aventureira”, claro, não poderá
ocorrer, uma vez que esse conceito remete a um futuro que nunca tem
lugar.
Uma
última nota ficará para um aspecto formal, no qual a autora tenta
“transportar” a realidade diegética para a materialidade da
publicação ao ofertá-la com uma cinta vermelha, que mimará o
melhor que pode a cinta desses tais frascos, que de resto se encontra
representado na capa com um tamanho suficiente a se “encaixar” na
cinta.
Tierra
de Nadie. Rodolfo Mariano. Curiosamente, Gato Mariano
conta com a participação no site de alguns companheiros, entre o
quais o autor de Coimbra que publica finalmente um fanzine em nome
próprio e autonomamente. [Já tínhamos feito referência ao autor numa anterior colaboração] Esta publicação reúne duas histórias do
autor, que sendo distintas, vão reunir-se em temas idênticos.
Elaboradas pacientemente com linhas finas, sobrepostas, que criam
tramas extremamente densas e irregulares, o autor parece vogar em
torno de um universo visual de referências próximas a todo um
historial do heavy metal: a morte na sua aparição mais clássica,
princesas e bruxas góticas, esqueletos ambulantes, luas sangrentas,
corvos mórbidos, lobos maléficos, florestas negras, talismãs
mágicos… porém, em vez de criar histórias realmente negras, o
autor parece estar interessado em criar situações similares a
contos tradicionais onde o humor e o absurdo encontram lugares
bastante confortáveis. Com mais ou menos texto, estamos perante uma
espécie de composições poéticas, em que a impressão tem maior
destaque do que a decisiva narrativa. Algo criado ao som do doom,
sem dúvida, mas que revela antes contornos divertidos.
Hightower.
Bruno Martins e Gonçalo Duarte. Escrito pelo primeiro e
desenhado pelo segundo (também formandos do Ar.Co, tal como no caso
de Mariano), esta publicação com uma história completa vai
ligar-se àquela ideia apresentada acima sobre a weird
sci-fi/fantasy, por via de alguns projectos da Nobrow. Altamente
estilizado, versando as aventuras de um mortal transformado num
semi-deus e que atravessa várias etapas de expansões de poder
paulatinas, estamos perante um conto breve sobre uma hierarquia que
une todas as criaturas e entes do universo, das mais modestas às
mais gloriosas e centrais no seu funcionamento. Elaborado num
encontro entre a experimentação formal e geométrica, por um lado,
e um traço minimal quase mecânico, por outro, Hightower
explora um bem-sucedido mas algo intempestivo encontro de abordagens
gráficas. O conto, ou melhor, a matéria verbal apresentada ao longo
das páginas, cria uma relação de alguma redundância, mas o seu
tom de drama cósmico quase pede por essa inexorável apresentação.
Primeiro passo público de uma dupla, também o futuro mostrará se
este é um projecto com continuidade narrativa ou se apenas uma
exploração da linguagem.
Freak
Scene #2. André Pereira. Não tendo ideia de que o
primeiro número o era, este novo “episódio” era
inesperado, se bem que a relação entre ambas as publicações possa
ser pouco estreita. Estamos de novo perante construções
mecha-biológicas, personagens insondáveis, seres semi-divinos e
forlas telúrico-cósmicas em oposição e permanente conflito,
jogando-se o destino, provavelmente, de esferas de existência
bastante elevadas. Mas ao mesmo tempo há espaço para deslizes quase
ridículos que levam a reviravoltas narrativas inesperadas e que
jogam todos estes níveis supernos na mais baixa das resoluções.
Como nos tem habituado Pereira em toda a sua obra, há uma exploração
bastante forte em termos de composição, em que se estudam
desarranjos da mais habitual das ortogonias para dar a ver estes
estranhos cruzamentos.
A
maioria dos resultados nascem, pelo menos aparentemente, de um desejo
que nasce da “mão”, e por isso ganha uma dimensão muito livre,
desligada até da mais imediata das lógicas.
Mesinha
de cabeceira # 26. Marcos Farrajota (Chili Com Carne).
Com a excepção da capa, pelo Dr. Urânio, todo o conteúdo deste
último número do mais resistente fanzine do país é criado pelo
seu editor, Marcos Farrajota, dando continuidade ao seu projecto de
descrição da temporada que passou na residência artística na
Finlândia. Podendo ser lido como extensão do seu projecto
(semi)autobiográfico, que havia já começado em Duprês e Bubas, ao
mesmo tempo recorda-nos por demais o trabalho de Fabrice Neaud
intitulado “Petit
archivage d'une culture quotidienne ”, uma vez
que Farrajota alista nestas páginas várias aquisições dessa
natureza: livros, cassetes, DVDs, revistas, livros, etc. Integrados
porém na participação do autor no projecto brasileiro do
calendário Pindura – em que vários artistas foram
convidados a “desenharem dois objectos que enterrariam no quintal
para serem descobertos no futuro” -, esses mesmos objectos, os
não-enterrados mas pelo contrário acumulados e arquivados com
cuidado, ganham um peso irónico. O autor tece comentários sobre a
sua natureza de respingador e de acumulador, e fala mesmo sobre
dimensões da sua vida pessoal e íntima, que também terão os seus
fluxos de guardas e desligamentos. Em que medida são os objectos que
enterra - “mais global não podia ser!”, escreve o autor, “Um
bumerangue.../Uma faca de vila nova de Poiares.../Enterrados na
Finlândia...//Por um português.../Por causa de um calendário
brasileiro!” - uma espécie de testamento da natureza humana, cuja
retenção material é inócua? E onde o diálogo intercultural
apenas se consegue fortalecer pela via da indiferença em relação
aos objectos que os outros cultivam? No seu estilo conhecidamente
tosco, a exposição franca da banalidade dos nossos desejos é mais
uma vez posta a cru.
Nota
final: agradecimentos a Rodolfo Mariano, Sofia Neto, Gonçalo Duarte
e Marcos Farrajota, pela oferta dos respectivos fanzines.
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