11 de maio de 2015

Fanzines e outros animais.



Os fanzines estão de viva saúde e recomendam-se. A Feira Morta – tal como Festival de Beja e outros momentos - continua a ser um excelente ponto de partida e de encontro para a produção actual, e é curioso notar o surgimento de novos projectos quer de novos agentes quer de veteranos, mas onde a circulação tem o mesmo peso. Existem outros canais de distribuição destes objectos, é claro, sendo a correspondência um dos principais, mas estamos em crer que a organização de certames específicos leva as coisas a melhor porto. Remetendo a experiências anteriores neste espaço, faremos aqui algumas considerações sobre alguns títulos que nos chegaram às mãos, ora na Feira Morta, ora por outras vias. Diferentes entre si, criam também uma comunidade alargada que explicitará o que antes já expuséramos (há muito!) em “Um fanzine é…” (Mais) 

Carne e osso. AAVV. Das cinzas do projecto Buraco nasce algo novo. Não é que o colectivo que dera vida àquela revista se tenha dissolvido, uma vez que nunca se havia constituído com a promessa de uma longa vida, mas sim de procurar as circunstâncias certas para a sua emergência. Ora, mudadas estas pela força dos dias, voltam a encontrar-se em novas distribuições para apresentar um outro título colectivo. As mesmas preocupações políticas, até interventivas, mantêm-se nalguns dos trabalhos, ao passo que se regressa a algum grau de experimentação formal. Marco Mendes (co-editor deste novo título) e Miguel Carneiro, veteranos d’A Mula, estão aqui com os trabalhos que perseguem ainda hoje: o primeiro na continuidade do seu fragmentado Diário Rasgado, o segundo explorando fronteiras da expressão gráfica, explorando relações textuais e contando com uma colaboração na manipulação da composição. Encontramos velhos colaboradores , como Bruno Borges e novos suspeitos do costume, como Amanda Baeza, e também nomes que, relativamente novos, vão escavando o seu espaço, como o de Sofia Neto (a outra do-editora), Mariana Pita, gui castro felga e Kimmi Ahformu. Num formato grande, e com alguma variedade de abordagens visuais, narrativas e de género que lhe retira a coerência unidireccional mas fortalece precisamente a diversidade de vozes, esperemos pela sua continuidade para compreender o espaço que conquistará.

Vial e sem título. Sofia Neto. Apesar de ambos estas publicações já rondarem a praça há algum tempo, apenas pela circunstância da publicação anterior é que abordamos estas. Sofia Neto é uma autora nova cuja produção se aproxima de uma abordagem que vemos cotejar artistas como Matt Madden, Pierre Maurel e uns quantos outros, cuja característica máxima é provocar uma sucinta, rápida e simples legibilidade do desenho através de um baixo mas sólido número de linhas para debuxar os corpos e os objectos. A autora parece também interessada em explorar várias linhas possíveis de desenvolvimento das narrativas. Vial parece ser um episódio de uma saga maior passada num hipotético e tétrico futuro, onde a sobrevivência dos seres humanos parece estar agarrada por um fio. Mas a lâmina que poderá cortar esse fio encontra-se num número de misteriosos frascos contendo uma substância ainda menos compreensível. Nada desta sinopse nasce, porém, de uma completa e decisiva apresentação dos “factos” em Vial. As coisas são apresentadas in media res, são deixadas por resolver de modo final e tudo é mostrado vagamente, concentrando-se num único “episódio” em que duas personagens interagem de forma dramática.

O outro livrinho colecciona como que um conjunto de tiras formalmente clássicas, de três vinhetas, e, se não tomássemos atenção aos eventos representados e textos, julgaríamos estar perante unidades completas e coesas. Todavia, mais uma vez estamos perante intervalos de hipotéticos universos diegéticos a que jamais teremos acesso senão nestes súbitos relampejos. Se bem que várias comparações fossem possíveis, existindo vários autores que criarão dispositivos narrativos similares, ficar-nos-emos pela comparação a Daniel Blancou, cuja série Samuel Limpiski (publicadas na Lapin) se aproximavam à da Neto pela sua autonomia absoluta a uma narrativa maior, mas criando as prerrogativas suficientes para a sua expansão conceptual. Um dos curiosos resultados é que a tira aqui é empregue para uma efeito bem distinto ora do cómico ora do aventureiro, por hipótese as duas maiores forças desse formato em particular. Não quer dizer que não haja humor no trabalho de Neto, mas será um humor “negro”, “cínico” que nasce do prazer de encontrarmos estas personagens em situações dramáticas, trágicas, terríveis. A dimensão “aventureira”, claro, não poderá ocorrer, uma vez que esse conceito remete a um futuro que nunca tem lugar.

Uma última nota ficará para um aspecto formal, no qual a autora tenta “transportar” a realidade diegética para a materialidade da publicação ao ofertá-la com uma cinta vermelha, que mimará o melhor que pode a cinta desses tais frascos, que de resto se encontra representado na capa com um tamanho suficiente a se “encaixar” na cinta.


Processo de contágio e Não fez listas em 2014. Gato Mariano. O autor que assina com este pseudónimo trabalha igualmente como crítico de música e uniu essa linha de trabalho com o desejo de trabalhar em banda desenhada criando precisamente críticas nessa forma, que publica no seu site. Processo de contágio não faz parte dessa produção, tratando-se antes de um fanzine duplo, criando em colaboração com Gréc, com uma história em torno de um universo estilizado e mágico, como se houvesse uma mistura entre Adventure Time, várias tendências de art comics, e a mescla já preparada entre sci fi e weird fantasy que tem informado alguns autores nacionais. A publicação é feita e preto-e-branco, na sua maioria, mas há um acrescento em três cores vivas que trazem uma dimensão adicional à narrativa, tal qual como algumas das vinhetas que têm outras coladas por cima, desdobrando ainda mais as possibilidades dos protocolos de leitura. Apesar desse grau de níveis materiais, não se pode dizer que eles tragam de facto um desvio substancial da narrativa, mesmo que esta não seja totalmente linear (nem compreensiva de um modo simplificado). Os dois volumes criam dois blocos complementares a mais do que um nível, mas estará nas mãos dos leitores compreenderem como. Não fez listas é um desdobrável que vai aumentando progressivamente (um mecanismo que já havíamos visto num fanzine de Derradé, por exemplo), e poderá ser visto, talvez, como um manifesto do trabalho crítico do autor, assim como uma espécie de confissão da própria tarefa artística. Se as críticas não são tão passionalmente analíticas como as de Anthony Fantano, por exemplo, e as personagens recordam uma animação americana dos anos 1920-1930 (à la Fleischer), este objecto servirá de complemento (explicativo?, programático?) às críticas no site.

Tierra de Nadie. Rodolfo Mariano. Curiosamente, Gato Mariano conta com a participação no site de alguns companheiros, entre o quais o autor de Coimbra que publica finalmente um fanzine em nome próprio e autonomamente. [Já tínhamos feito referência ao autor numa anterior colaboração] Esta publicação reúne duas histórias do autor, que sendo distintas, vão reunir-se em temas idênticos. Elaboradas pacientemente com linhas finas, sobrepostas, que criam tramas extremamente densas e irregulares, o autor parece vogar em torno de um universo visual de referências próximas a todo um historial do heavy metal: a morte na sua aparição mais clássica, princesas e bruxas góticas, esqueletos ambulantes, luas sangrentas, corvos mórbidos, lobos maléficos, florestas negras, talismãs mágicos… porém, em vez de criar histórias realmente negras, o autor parece estar interessado em criar situações similares a contos tradicionais onde o humor e o absurdo encontram lugares bastante confortáveis. Com mais ou menos texto, estamos perante uma espécie de composições poéticas, em que a impressão tem maior destaque do que a decisiva narrativa. Algo criado ao som do doom, sem dúvida, mas que revela antes contornos divertidos.

Hightower. Bruno Martins e Gonçalo Duarte. Escrito pelo primeiro e desenhado pelo segundo (também formandos do Ar.Co, tal como no caso de Mariano), esta publicação com uma história completa vai ligar-se àquela ideia apresentada acima sobre a weird sci-fi/fantasy, por via de alguns projectos da Nobrow. Altamente estilizado, versando as aventuras de um mortal transformado num semi-deus e que atravessa várias etapas de expansões de poder paulatinas, estamos perante um conto breve sobre uma hierarquia que une todas as criaturas e entes do universo, das mais modestas às mais gloriosas e centrais no seu funcionamento. Elaborado num encontro entre a experimentação formal e geométrica, por um lado, e um traço minimal quase mecânico, por outro, Hightower explora um bem-sucedido mas algo intempestivo encontro de abordagens gráficas. O conto, ou melhor, a matéria verbal apresentada ao longo das páginas, cria uma relação de alguma redundância, mas o seu tom de drama cósmico quase pede por essa inexorável apresentação. Primeiro passo público de uma dupla, também o futuro mostrará se este é um projecto com continuidade narrativa ou se apenas uma exploração da linguagem.

Freak Scene #2. André Pereira. Não tendo ideia de que o primeiro número o era, este novo “episódio” era inesperado, se bem que a relação entre ambas as publicações possa ser pouco estreita. Estamos de novo perante construções mecha-biológicas, personagens insondáveis, seres semi-divinos e forlas telúrico-cósmicas em oposição e permanente conflito, jogando-se o destino, provavelmente, de esferas de existência bastante elevadas. Mas ao mesmo tempo há espaço para deslizes quase ridículos que levam a reviravoltas narrativas inesperadas e que jogam todos estes níveis supernos na mais baixa das resoluções. Como nos tem habituado Pereira em toda a sua obra, há uma exploração bastante forte em termos de composição, em que se estudam desarranjos da mais habitual das ortogonias para dar a ver estes estranhos cruzamentos.

A maioria dos resultados nascem, pelo menos aparentemente, de um desejo que nasce da “mão”, e por isso ganha uma dimensão muito livre, desligada até da mais imediata das lógicas.

Mesinha de cabeceira # 26. Marcos Farrajota (Chili Com Carne). Com a excepção da capa, pelo Dr. Urânio, todo o conteúdo deste último número do mais resistente fanzine do país é criado pelo seu editor, Marcos Farrajota, dando continuidade ao seu projecto de descrição da temporada que passou na residência artística na Finlândia. Podendo ser lido como extensão do seu projecto (semi)autobiográfico, que havia já começado em Duprês e Bubas, ao mesmo tempo recorda-nos por demais o trabalho de Fabrice Neaud intitulado “Petit archivage d'une culture quotidienne ”, uma vez que Farrajota alista nestas páginas várias aquisições dessa natureza: livros, cassetes, DVDs, revistas, livros, etc. Integrados porém na participação do autor no projecto brasileiro do calendário Pindura – em que vários artistas foram convidados a “desenharem dois objectos que enterrariam no quintal para serem descobertos no futuro” -, esses mesmos objectos, os não-enterrados mas pelo contrário acumulados e arquivados com cuidado, ganham um peso irónico. O autor tece comentários sobre a sua natureza de respingador e de acumulador, e fala mesmo sobre dimensões da sua vida pessoal e íntima, que também terão os seus fluxos de guardas e desligamentos. Em que medida são os objectos que enterra - “mais global não podia ser!”, escreve o autor, “Um bumerangue.../Uma faca de vila nova de Poiares.../Enterrados na Finlândia...//Por um português.../Por causa de um calendário brasileiro!” - uma espécie de testamento da natureza humana, cuja retenção material é inócua? E onde o diálogo intercultural apenas se consegue fortalecer pela via da indiferença em relação aos objectos que os outros cultivam? No seu estilo conhecidamente tosco, a exposição franca da banalidade dos nossos desejos é mais uma vez posta a cru.

Nota final: agradecimentos a Rodolfo Mariano, Sofia Neto, Gonçalo Duarte e Marcos Farrajota, pela oferta dos respectivos fanzines. 

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