A primeira parte desta longa citação funciona na perfeição sobre a fortuna e perfil de Peter Hickey, o protagonista de The Care of Birds, último livro de Francisco Sousa Lobo e primeiro produto do concurso “Toma lá 500 paus e faz uma bd”, concurso verdadeiramente efectivo da Chili Com Carne. Sentimos que existe uma sombra constituída pela mentira que ocupa a sua vida e existência, sombra perene, diluindo as certezas dos factos e das experiências, ou mesmo dos desejos ou receios (possivelmente um sentimento que os amalgame aos dois) que alimentam e se alimentam da sua vida.
A segunda parte já é mais
dúbia, uma vez que Hickey não deixa de sentir amor, dúplice, ou até tríplice,
como veremos, e isso impede-o de se abandonar em “paixões e em grosseiros
prazeres”, como Francisco Koppens, seu hipotético irmão espectral, versão,
faceta, ponto irmanado por se despedir do autor Francisco Sousa Lobo (se
perseguimos a ideia de que todas as suas personagens são títeres que servem de
reflexos ligeira ou drasticamente distorcidos; todavia, a interpretação autobiográfica
é perigosa e reprovável, e a biografista anátema).
Esse amor parece então
dividir-se entre os pássaros, matéria de observação e conhecimento, as
crianças, matéria de observação e abismo, e Deus, ponto que observa e fonte de
temor. Se se fala no livro de modo explícito numa triangulação entre os
pássaros, Deus e o homem, é ela a metáfora semi-oculta de toda a paixão
dramática no interior do palco deste livro. Sousa Lobo não cria uma narrativa
que esteja aberta e se relacione com “o mundo”, a “História”. Se existem traços
concretos, eles apagam-se, subsumidos pelo pesado mecanismo desta personagem na sua cruz específica.
O círculo de The Care of Birds, se se
estende aqui e ali, é puramente concêntrico, centrípeto, arrastando tudo – em
paranóia, em auréola? – para o coração de Hickey, e a sua mundividência feita
de vazios, de espaços não-preenchidos. Corroborado pelo trabalho
particularmente despojado do autor neste título, quase minimalista, na mais
próxima acepção de um Donald Judd, onde a melancolia se espraia na contenção
visual. Muitas vinhetas estão desprovidas de cenários, isolando a todas as
instâncias as personagens, ou focando-se num qualquer objecto ou canto
abandonado a si mesmo. Isto não significa que não existam estruturas rítmicas,
ecos e reflexos visuais-estruturais (uma re-leitura atenta entre páginas
revelará ecos, inversões, para além dos motivos recorrentes do autor) que
tornam este livro num curioso encontro entre o figurativo e o quase-abstracto
(na esteira de um Yuchi Yokoyama, por exemplo).
Apesar de ter mais de 100
páginas, o relato deste protagonista – contado na primeira pessoa, mas com poucas
legendas narrativas, e sobretudo pela acção e diálogo com outras personagens -
compõe-se sobretudo de silêncios, não-ditos e dúvidas. Muitas são as sequências
sem palavras, os balões lacónicos, ou as vinhetas que interrompem diálogos com
planos aproximadíssimos dos rostos das personagens, como se se pretendesse que
confessassem aquilo que calam. As dúvidas presentes, todavia, são distribuídas
entre o protagonista e os leitores.
Peter Hickey é um homem,
de uns quarenta anos. É um observador de pássaros exímio, capaz de os
reconhecer não somente pelas formas, pequenas e em movimento súbito, ou as
pequenas marcas, mas distinguindo a curva do voo, um comportamento subtil, o
distinto canto. Parece ser também notável imitador dos seus cantos, assobiando
– dimensão que temos de suspender ou imaginar nesta arte -, e seu desenhador –
cuja matéria, surgindo, representada, pela “mão”, no “interior da narrativa”,
do meganarrador, faz parte da mesma que compõe o próprio relato, logo deve ser
“ilusoriamente” perfeita. Mas a paixão, se a há, em Hickey, e que o livro
escava, não é essa. A actividade da observação dos pássaros é antes como um
baixo-contínuo para formar um contexto, um chão e uma metáfora que sustente o
resto. A paixão são os estranhos sentimentos que assaltam Hickey, que parecem
ser a amizade que ele nutre por crianças, uma comunicação que deseja manter com
elas, cândida, inocente, mas ao mesmo tempo tormentosa nalguns dos seus
aspectos. De fora, e algumas das personagens assumem-no, isto seria descritível
como “pedofilia”, e uma leitura apressada atiraria o livro de Sousa Lobo para o
campo dos “temas correntes”, o que não poderia estar mais errado.
Hickey é católico. O
adjectivo que deverá seguir-se a essa pertença não é “devoto”, “praticante”,
“pio”, ou outra que não “temente”. Tal como Koppens, Hickey tem assinalado para
si um vaso de comunicação com o divino. No seu caso, são os pássaros, que
consegue entender (e nós por e com ele), e que traduzem uma ideia do
que Deus terá para lhe transmitir, mesmo que seja sob a forma de insultos
brutais. Essa comunicação, com efeito, serve para criar o receio, o peso, a
culpa.
Hickey está, a um só
tempo, ciente de uma linha que não deve atravessar (recordando aos leitores a
necessidade de compreender, legal e psicologicamente, a diferença entre um
“pedófilo” – uma perturbação mental – e um “abusador sexual de menores” – um
crime -; e que é subtilmente levantado num dos diálogos) e perseguido por uma
ideia de “pecado”. Ora, é relativamente a este, uma realidade e experiência da
vida do protagonista, que as dúvidas dos leitores se instalam. Testemunhamos
encontros, tentações, conversas e memórias de episódios passados, “fora de
cena” do intervalo cronológico do livro, assaz concentrado (ainda que incerto).
Contudo, da parca intriga que se despede de The
Care of Birds, as questões que surgem, se respondidas, são sempre ambíguas.
The Care of Birds é, sem qualquer dúvida, um livro maior.
Um livro que se desprende de toda e qualquer amarra de género e dos mecanismos
(narrativos, visuais, estruturais) habituais da banda desenhada, portuguesa ou
outra. Um título que não tem qualquer ambição de chegar a “todo o público”, nem
sequer de serenar ou emocionar aquele ao qual chegará. A poeticidade de
Francisco Sousa Lobo é sofrida, exigente, abole quaisquer consensos possíveis.
Sem efeitos de pirotecnia emocional, lê-lo é uma armadilha se se toca a raia
dos seus perigos. Difícil, profundo, angustiante, de uma lentidão que não
significa tranquilidade, desprovido de quaisquer adornos e de efeitos, The Care of Birds é um jogo de tensões
entre o melodrama de um Dostoievsky e a paralisia de um Kafka.
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