Este livro
é fruto de um programa intenso e curioso organizado por Sean Murphy
e a sua mulher, Katana Collins, em que o famoso artista recebeu cinco
autores de banda desenhada durante umas semanas no que parece ter
sido um Inverno rigoroso, e onde se esgrimiriam não apenas técnicas
artísticas como igualmente questões associadas ao lado comercial e
negocial desta actividade. Todos estes autores não são amadores nem
recém-chegados, mas antes pessoas que já deram provas das suas
capacidades artísticas e de trabalho, mas que nesta experiência com
um profissional de primeira água e muito solicitado no mercado
norte-americano seguramente aproveitaram sinergias e conselhos
insubstituíveis. Esses formandos foram Tana Ford, Corin Howell, Joe
Dellagatta, Clay McCormack e o autor português Jorge Coelho, no
fundo a razão pela qual adquirimos este volume. (Mais)
O livro não é uma sebenta desse workshop ou, a palavra empregue, apprenticeship, mas um livro colectivo com uma história criada em conjunto. Na verdade, se houvesse esse primeiro caso, haveria um interesse de outro tipo, e é provável que fosse mais transversal. Mesmo alguns livros que vão saindo de “conselhos” de trabalho – como o de Bryan Hitch, Ultimate Comic Studio -, mesmo que tragam pouco de novo, ou revelem problemas de comunicação, oferecem-nos um verdadeiro olhar aos métodos de trabalho reais de artistas que se podem admirar ou não. Haveria público para isso (e os interessados têm uma entrevista de Coelho conduzida por Geraldes Lino que revela alguns pontos). Mas Café Royal opta por construir uma narrativa fechada, desenhada por todos, e depois revelando no fim do volume thumbnails, sketches das personagens, delineação dos espaços, fotografias dos processos e sessões de trabalho (e lazer), etc.
Aparentemente,
pois nem sempre esta informação é clara, a história é escrita
por Murphy e Collins, mas o estudo de personagens, ou character
design, recaiu sob a responsabilidade de cada um dos envolvidos,
tendo havido intensas discussões e trocas de desenhos e galhardetes
até se chegar a conclusões e soluções práticas. Cada um dos
“alunos” criou um capítulo de 5 páginas cada, iniciado com uma
página de capítulo, onde se aumenta uma das vinhetas (nem sempre
com os melhores resultados), e uma foto e biografia do autor. Não
deixa de ser algo estranho que, para um projecto em comunidade, Sean
Murphy acabe por reservar mais páginas do que os outros autores
(10). E o capítulo final, que tem sempre um papel determinante na
recepção de uma qualquer história. Quer dizer, é natural que haja
à partida um maior interesse pelo projecto da parte de fãs de
Murphy, que levem a escolhas naturais de comunicação e estratégias
comerciais, começando pela capa, etc. (nós mesmos optámos por
colocar no cabeçalho apenas o seu nome, com os restantes escondidos
no et al.), mas tendo em conta a quantidade de outros
projectos que já sucederam desta natureza, seria interessante ver um
maior apagamento, de certa forma, que confirmasse a natureza
colectiva de Café Racer.
A história
de Café Racer é uma aventura algo clássica, concentrada num
pequeno grupo de personagens, utilizando uma típica rede de
coincidências e anagnorisis. A
protagonista é Orchid, uma jovem mulher japonesa-britânica, amadora
de corridas de motociclos, que rapidamente se encontrará entre a
proverbial espada e a parede, sendo a primeira o pai japonês que não
quer que ela se abandone a esse sonho, e a segunda o proprietário de
uma fábrica de motas inglesa, havendo um segredo que os une a todos.
E, como fecho desse segredo e da intriga, encontra-se uma mota
híbrida, que mistura a tecnologia e o design japonês e britânico
(e ainda com um contributo italiano). Na verdade, esse objecto
fetichista é aquilo que alimenta grande parte da camada reificadora
de todo o Café Racer,
que emprega pormenores reais da construção de motas, das corridas
ilegais da cultura urbana dos anos 1950-60, o rock'n'roll que lhe
estaria associado, e outros pormenores, transformando em grande parte
a narrativa num patchwork
de referências. Até mesmo a maneira como se cita a 2º Grande
Guerra, a vida dos britânicos no Japão imperial de 1937, a
diferenciação entre uma “classe guerreira honrada” (é claro
que os samurais tinham de ser citados de modo mítico) e os
“belicistas” daquele país, os clichés em torno da cultura
inglesa (chá, bobbies, regras societais empedernidas e “stiff
upper lip”) parece ser uma espécie de tempero propositado e
lúdico, mais do que uma correcta e completa decisão de escrita e
construção narrativa. Há mesmo momentos em que parece estarmos
numa escrita à la Goscinny, em que é mais importante o gag e a
ideia clara em termos visuais do que uma preocupação por um
qualquer grau de realismo.
A
ideia de ter uma personagem feminina corredora de motas, como ícone
feminista, é jogado com demasiada veemência para se tornar genuíno,
e existem demasiados pormenores, quer em termos visuais quer em
termos psicológicos, que deixam Café Racer algo
a desejar.
Dito
isto, é algo que se lê com algum prazer de descoberta, uma vez que
os dois primeiros capítulos,e pelo menos, se lêem como histórias
separadas, e apenas aos poucos as suas linhas de desenvolvimento se
começam a estender e atravessar, criando uma história mais coesa,
com direito a flashbacks
que reúnem todas as personagens numa aliança final. Como é de
esperar, a leitura de cada capítulo torna-se ainda mais interessante
por ser desenhada por autores diferentes, e se existem casos em que
poderíamos querer ver alguma influência passada de Murphy, a
verdade é que todos mantêm as suas características próprias,
sobretudo Corin Howell e Joe Dellagatta, cuja figuração é
ultra-estilizada e nada tem a ver com a elegância naturalista do
autor mais famoso. Ainda assim, olhando para detalhes como as linhas
de movimento, e até algumas escolhas de enquadramento, terá havido
certamente um forte diálogo. McCormack e Green são aqueles que mais
próximos parecem estar de Murphy, quer pelo uso de uma grande
pormenorização dos edifícios e paisagens – tornadas ainda mais
dramáticas pelos ângulos exagerados das vinhetas e posicionamento
das figuras - quer pelo uso de tramas e linhas “sujas” para as
texturas e sombras.
Jorge
Coelho, que tem mostrado uma capacidade de trabalho substancial
(fazendo os lápis e artes-finais dos títulos que tem produzido nos
Estados Unidos, como o recentemente terminado John Flood,
o seu trabalho mais completo desde Polarity)
apresenta as suas 5 páginas de forma profissional e competente, sem
dúvida, mas parece ter tido pouco espaço para espraiar os seus
músculos. Apenas duas pranchas têm vinhetas suficientemente grandes
para mostrar o seu talento em construir espaços reais e palpáveis,
uma vez que um segundo spread
está ocupado demais por linhas cinéticas para demonstrar o
movimento das motas. E para um comic
que tem uma obsessão por corridas e a performance de motas, nem
sempre é claro que tipo de movimento se pretende mostrar. Mas esse é
um problema, digamos assim, transversal a todos os capítulos, tal
como é o da legendagem e onomatopeias, demasiado mecânicas para
respeitarem a elegância de cada traço individual. Mesmo que se procurassem soluções estilizadas associadas ao tema, era preferível uma maior integração orgânica. Dito isto, esse é um traço em que se nota uma produção ancorada em pleno na tradição norte-americana dos comics, mas depois de uma influência marcante pela mangá (sobretudo a gekigá).
Todavia,
é um livro que se lê rapidamente, não sem prazer e que abre
algumas ideias à possibilidade de trabalhar na aprendizagem desta
arte, fazendo-a, procurando que haja um diálogo e polinização
entre vários talentos.
Uma vez
que este volume veio a lume graças a esforços feitos através da
plataforma Kickstarter, o volume conta ainda com alguns desenhos
finais, pin-ups, de alguns artistas norte-americanos que ajudaram a
abrilhantar a chamada.
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