Como dissemos atrás, Cinzas
é um livro que nos apresenta um enquadramento autobiográfico. Diríamos mesmo
que hiperbolizado na sua forma material. Mas para isso é preciso descrever
rapidamente essa mesma forma. Originalmente publicado em língua inglesa, e em
offset (edição que não conhecemos), o
autor viria a republicar este título em francês numa pequena edição, quase num
formato de bolso, com lombada, em risografia a preto e cinzentos com uma capa
serigrafada. A edição em português, pela Mundo Fantasma e a Mmmnnnrrrg também é
em risografia, se bem que mais próxima de um caderno escolar, até por deixar
visível linhas paralelas, e em quatro cores: azul, verde, vermelho acastanhado
e um laranja “psicadélico” (que foi aquele que obtemos). Na edição francesa
aparece o rosto do avatar do autor, sob a forma de um trintão algo forte, com
umas imensas entradas nas têmporas e de ar ligeiramente imbecil. A edição
portuguesa coloca na sua capa uma das primeiras partes do prólogo exclusivamente
textual, transformando em parte o contrato de leitura da obra. (Mais)
A leitura destas transformações materiais entre uma edição e
outra revelar-se-iam produtivas. Afinal de contas, a francesa segue um esquema
limitado de cores que mima aquilo que é dito no livro – o rapto por alienígenas
conhecidos como “cinzas” – mas a portuguesa oferece uma dimensão acrescida que
alimenta o grau de alucinação proposto. Aquela, com uma capa convencional,
apresenta todo o relato de um modo mais comportado e previsível, ao passo que
esta parece sublinhar uma espécie de urgência e intimidade no que é recontando.
Seja como for, o que importa é que Gris ou Cinzas parece
querer criar toda a ideia de que este é um discurso autobiográfico, e que o
autor quer partilhar connosco uma experiência-limite. O “problema” – ou regra
do jogo – é que o relato é tão convencional, segue tão perto todos os relatos “clássicos”
e habituais de abductions, que se
torna quase uma anedota sarcástica desse mesmo tipo de discursos. Quer dizer, é
importante que o leitor “leve a sério” a ideia de que Schrauwen cria uma ideia
autobiográfica para funcionar melhor no seu humor de “espatafurdice total”. A
menos que… o auto deseje que se leia num efeito realista…?
Com efeito, nesta história a personagem-Shrauwen é raptada da
sua cama por extraterrestres, os “cinzas”, para depois ser examinado sexualmente,
confrontar-se com as várias raças de extraterrestres que se lhe apresentam como
num Conselho intergaláctico e é confrontado com imagens sobre a violência da
história humana e a inevitável, ou imaginada, derrocada da civilização. Cada um
destes episódios, ou etapas, do rapto, é uma imitação absolutamente precisa,
quase ipsis verbis, das descrições
que encontraremos nos documentos que estudam este fenómeno de ilusão difundida.
Aliás, na bibliografia mais séria dedicada a este tema, o que mais sobressai é
a aparente “normalidade” com que estas experiências ou memórias – reais para
quem as experiencia, e que não levam a quaisquer distúrbios no resto das suas
vidas mundanas – são integradas. Essa “normalidade”, por assim dizer, é
proposta pelo autor através dos prólogos e epílogos textuais, já “fora” da
camada visual, de duas vinhetas apresentadas inexoravelmente por página, e no
seu conhecido “estilo industrial”, em que se parecem seguir princípios de
sinalização representativa sumária mais do que de expressão artística.
Textos passíveis de comparação, mais por uma subjectividade
pessoal de memórias de leitura do que por elos mais objectivos transmissíveis
por alianças de género ou estilo, ou outras circunstâncias mesmo, são os três
volumes dedicados aos “discos voadores” de Jacques Lob e Robert Gigi (que exerciam
fascínio e delícia na infância) e os projectos de Marko Turunen, desde os
autobiográficos através do avatar-alien,
como Supernormal, e os seus próprios dossiers
sobre encontros de terceiro grau na Finlândia, Ufoja Lahdessa. Se bem que esta bibliografia poderia ser aumentada
(afinal de contas, por alguma razão X-files
foi uma das séries mais populares da televisão junto a um público bem diverso,
cujo regresso/requentamento está anunciado), parece-nos que o trabalho de
Turunen é aquele que mais se aproxima na natureza de negociação entre
autobiografia e ficção, e os dos autores “clássicos” pelo contributo que
fizeram para fazer circular na cultura popular esta pseudo-mitologia.
Nota final: imagens colhidas da internet.
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