Richard Sorge é uma personagem
histórica. O traço que o inscreveria na história é o facto de ter
sido espião alemão do Império Soviético desde o final dos anos
1920, infiltrando-se nos círculos nacionais-socialistas logo na
década de 1930 e, depois, tornando-se o responsável pela rede de
informação no Japão. Enquanto membro do Partido Nazi, jornalista
alemão e confidente do embaixador alemão em Tóquio, a sua
capacidade de trabalho e de acesso a informações confidenciais
permitir-lhe-ia o seu maior feito: partilhar dados sobre a invasão
alemã da União Soviética em 1941 o que, aparentemente, terá
ajudado à derrota dos Nazis nessa empreitada. É bem possível que
este último episódio, que o tornaria um traidor e o levaria à
captura e execução pelos poderes do Eixo, Alemanhã-Japão, mas
igualmente e muito mais tarde o tornaria um herói aos olhos da
Rússia, seja bem mais complexo do que uma breve entrada
enciclopédica ou mesmo uma versão romantizada (sob a forma de banda
desenhada, romance ou filme) possa dar conta, mas é isso o que lhe
atribuiria fama póstuma, ao ponto de ser considerado “o maior
espião de todos os tempos” por escritores do género como Ian
Fleming e Tom Clancy. (Mais)
A autora alemã Isabel Kreitz dedica
este livro a essa figura, concentrando-se nos episódios passados no
Japão. Após um brevíssimo intróito na década de 1930, elege a
chegada da pianista Eta Harich-Schneider a Tóquio como início da
sua narrativa, desenvolvendo-a em quase 250 pranchas, densas de
imagens, acções e texto, até após o desaparecimento de Sorge.
Seguiremos os modos como Sorge se envolve amorosamente com Eta, sem
que se torne propriamente uma história de amor arrebatadora, uma vez
que as relações eram quase livres. Encontramos Sorge nos seus
encontros com dignatários alemães mas também a sua rede local, com
alemães, russos, japoneses ou outros, que tentam disfarçar a
partilha e envio de informações. E seguimo-lo nalguns dos seus
prazeres imediatos, muitos dos quais auto-destrutivos, como a sua
condução ou abandono no consumo de álcool. Nenhuma destas linhas
está separada da outra, e cada uma destas peças se encaixa e
redimensiona a outra.
O mais surpreendente neste thriller
de espiões é, porém, o facto de que o foco não está propriamente
na intriga de espionagem em si. Podemos dizer que existem momentos
de tensão, sem dúvida, mas estes são-nos acessíveis através das
reacções das personagens envolvidas. Não há, por exemplo, a
típica economia de distribuição desigual de factos entre os
leitores, as personagens e o narrador. Por vezes existem factos
não-revelados ao leitor mas que estão na posse das personagens,
para depois surgirem num choque final; outras vezes são os leitores
que estão munidos de informações que não estão acessíveis às
personagens, e acabamos por projectar um cuidado para com eles. No
caso de Sorge, o coração da intriga – o envio de
informações oficiais confidenciais do governo nacional-socialista
ao governo soviético – não é propriamente segredo ou oculto dos
leitores, nem sequer é ele o que se torna o centro nevrálgico das
acções. Ele acontece, sob os nossos olhos, e da forma tranquila
(ainda que, no interior daqueles homens, tensa) do processo esperado:
a entrega de um mapa, de uma instrução, o acto de telegrafar a
mensagem durante o recital de piano. Numa versão cinematográfica,
diríamos, não haveria uma faixa musical adicional, não-diegética,
dramatizável. Kreitz está de facto muito mais interessada nas
relações criadas entre as personagens, na dimensão humana dessas
relações, toquem elas ou não nas raias de dimensões históricas
muito mais abrangentes. Nunca saímos dos espaços confinados da vida
alemã em Tóquio, para vermos as reacções nos escritórios de
Hitler ou Stalin, por exemplo, e tudo o que provém desses lugares é
apenas repartido numa frase, em conversa local.
Pode-se dizer que se trata da história
do espião a partir da perspectiva da sua amante Eta. Afinal de
contas, o título original alemão deste livro é Die Sache mit
Sorge, algo como “O affair com Sorge”, e apenas o
subtítulo indica Stalis Spion in Tokio. A própria capa da
edição original mostra Eta e Richard Sorge num amplexo calmo, numa
rua japonesa, em que lanternas de papel estão decoradas com a
suástica nazi. A escolha da edição brasileira (tal como a
francesa) por isolar a personagem na capa, levantar a perspectiva, e
focar o título na palavra-chave da intriga é uma estratégia
compreensível em termos de mercado e publicidade, mas acaba por
sofrer a necessária discrepância com a matéria do próprio livro,
cujo interesse é outro que não a espectacularidade (de resto, que
na banda desenhada tem uma outra versão no Adolf de Tezuka).
É por essa razão que todo o livro é
enquadrado por entrevistas “contemporâneas”. Recorrentemente, a
fluidez da narrativa é como que “interrompida” (poder-se-ia
interpretar como páginas capitulares, mas não nos parece que
desejam criar separações ou articulações diegéticas mas antes
intervenções de outros níveis) por personagens, idosos, sentados
num interior, e como que falando para um interlocutor fora de cena,
na nossa posição. Assumimos portanto o lugar do mega-narrador,
autor, entrevistador, etc. (todas essas funções, mecanicamente
diferentes, são aqui amalgamadas para o efeito pretendido).
Depreende-se então que é a partir dessas “entrevistas” com
pessoas que rapidamente perceberemos que são personagens da história
que todo o relato está a ser construído. Se Sorge ocupa o título
do livro, a esmagadora maioria das acções e é o tema de conversa
quando está ausente, a verdade é que seguimos igualmente muitas
outras personagens, como a pianista Eta, os colaboradores Clausen, os
informadores Miyazi e Ozaki, etc. A narrativa não procura
confundir-se com as impressões e ponto de vista de Sorge. Na
verdade, na ausência de um narrador sob a forma de legendas
externas, e sem acesso a balões de pensamento, o leitor tem de
procurar através das falas e das acções quais são as sombras que
se ocultam a cada gesto, a cada momento e a cada encontro. Algumas
daquelas “entrevistas” lançam pequenas pontas de expectativa em
relação ao que se seguirá, mas nunca de uma forma dramática.
Uma das estratégias visuais de Kreitz
para criar esta tessitura de vozes que se vão complementando, e de
linhas de atenção diferenciadas, intercaladas para criar um
panorama mais complexo do que a mera adição, é a colocação dos
balões sobre as linhas de intervalo entre as vinhetas. Por vezes, o
nosso olhar leva-nos a ler um balão “antes” de chegarmos à
vinheta correspondente, como se estivéssemos já a escutar as vozes
antes de chegar ao próximo plano de corte, estratégia corrente no
cinema. Isso leva a que as transições entre cenas seja não apenas
mais fluida e imediata, mas que nos leve a compreender a rede de
causalidade e implicabilidade entre todas e quaisquer acções,
passando do círculo familiar e íntimo ao histórico e político sem
pestanejar.
Kreitz é cultora de desenhos apenas a
grafite, como tantos outros autores. Neste projecto em particular,
fica apenas pelo cinzento da grafite, sem fazer intervir qualquer
cor. Mas a autora alemã procura que haja não apenas uma
representação, pelo menos dos objectos inanimados, o mais realista
possível, como com um peso significativo, no qual se nota um deleite
particular em pormenorizar a vegetação, a textura de um cortinado,
os padrões que compõem qualquer estrutura arquitectónica, o
metálico de um automóvel, viga de madeira, o entrelaçado de uma
lanterna de papel, os nós numa os pêlos de um vison. Não
se procura qualquer efeito de ilusão foto-realista, mas
tão-simplesmente que se garanta que há uma concretude nesses
objectos, por vezes mergulhados num quase obsessivo trabalho de
linhas sobrepostas e tramas. A autora empregará decerto lápis de
diferentes maciezas, e mudará a meio do trajecto de uma linha a
posição da mão-lápis, de forma a que haja um concerto
elegantíssimo entre linhas mais grossas e diáfanas, transparentes,
e outras mais finas, sólidas e quase-negras (se bem que o trabalho
de reprodução e impressão do livro tenha, é quase certo, “puxado”
os negros). Existindo toda essa “objectividade”, essa precisão e
rigor, o seu preenchimento guarda uma parte de esboço, improviso,
rapidez de apontamento. As personagens, por seu lado, são
ligeiramente mais simplificadas. Há uma atenção para com as mais
pequenas expressões e gestos subtis da figura humana que instila uma
dose de realidade nestas personagens, em contraste com autores como
Amanda Vähämäki ou Miriam Katin, que também trabalham a lápis,
mas procuram uma outra suavidade e estilização nas suas figuras.
No
entanto, isto não significa que Kreitz procure uma absoluta
qualidade empedernida nessas personagens. Pelo contrário, há uma
flutuação suficiente entre maiores simplificações, quase
rabiscadas, quando os corpos e rostos são vistos ao longe, ou
pequenos gestos de minimalização quando uma personagem se encontra
num plano mais afastado, que imita, na verdade, os processos de
redução de “resolução” do próprio olho humano. Se quase
nunca existem casos de linhas de contorno “soltas” ou
“excessivas”, é no interior das personagens que as linhas em
trama ou padrão para criar sombras e texturas se soltam por vezes de
um comportamento mais fixo, e demonstram alguma soltura.
Acompanhado
por um dossier no final, com um texto, fotografias e uma ficha
biográfica das personagens, Sorge, o espião
é menos um titilante romance de espiões do que um retrato das
escolhas que muitas pessoas têm de fazer em momentos extremos, e a
forma como vivem com as consequências dessas mesmas escolha. Richard
Sorge, pelo menos aquele deste livro, vive-as da maneira mais livre
possível.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
3 comentários:
Isabel Kreitz não é nenhuma principiante, ganhou algumas vezes o prémio de melhor autora alemã,3 para ser exacta, também já saiu no Gambuzine mas escrevo sobretudo porque passei aqui de visita para confirmar o assaz revelador o silêncio dos blogueiros cá da terra acerca do mais importante festival de bd da Europa.
Fica bem
está um "o" a mais... é corta e cola.. paciência
Olá, Teresa.
Sim, sei que a Kreitz não é nenhuma participante, pois li um livro anterior, em francês ("Haarmann, le boucher de Hanovre"), mas sobre o qual não escrevi, e apenas a havia mencionado a propósito de outro volume, colectivo, dessa mesma colecção Écritures da Casterman.
Quanto ao silêncio, não percebo bem: estás a falar de Angoulême? Ou de outra coisa? Eu, seja como for, não falo de festivais, apenas dos livros, logo não percebo porque me deve ser imputado qualquer silêncio sobre esse tema.
Obrigado,
Pedro
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