Este
é o primeiro volume de uma nova colecção intitulada Sociorama, que
parece vir a ser dedicada a projectos de banda desenhada que procurem
adaptar, basear-se ou dialogar com trabalhos académicos em torno de
questões sociais, sejam relatórios, inquéritos ou mesmo
dissertações. Pelo que entendemos, os “temas” na calha rondam a
indústria de cinema pornográfico, as profissões afectas aos voos
comerciais e as práticas dos “sedutores de rua”. A colecção é
dirigida por Lisa Mandel, uma autora que tem aliado a banda desenhada
humorística a temas socialmente relevantes, tocando sempre as raias
da realidade francesa contemporânea, e Yasmine Bouagga, uma
investigadora do prestigiado CNRS. Este livro, apesar do seu público,
escancara na verdade os portões de um estaleiro de construção
civil e da realidade social que acalenta, mas oculta. (Mais)
Chantier
Interdit au Public
passa-se no interior do cercado de um estaleiro, mas igualmente nos
corredores do vaivém das empresas de trabalho temporário, no
pântano da ilegalidade de muito imigrante em França, nas tensões
familiares e pessoais de quem tenta conquistar o pão de cada dia, a
dignidade do trabalho e uma possibilidade de ser visto enquanto
cidadão. E, ao mesmo tempo, os obstáculos, as hierarquias, os
reinos preexistentes. O livro é construído pela responsabilidade da
artista Claire Braud; é ela quem constrói as personagens que pautam
o ritmo e a narrativa que se apresenta, por um lado, o jovem adulto
Hassan Zidane, que acaba de garantir os seus primeiros passos como
serralheiro no estaleiro, e que serve de guia para o próprio
leitor-ignorante destas realidades, graças às suas perguntas,
aprendizagem e receios, e por outro, o mais experienciado Sékou, que
quase vislumbraria o grande coroamento dos seus sacrifícios anos
atrás de anos em França como “sans-papiers”…
Mas
a fonte da matéria-prima de Chantier
encontra-se numa obra de N. Jounin, jovem sociólogo, e a qual
corresponde à sua tese de doutoramento. Publicada em 2008, tinha o
mesmo título, criava um território de debate à escala humana por
tecer uma abordagem interdisciplinar de cariz etnográfico. Não é
apenas a análise de dados objectivos, digamos assim, providenciados
pelas instituições e empresas que compõe o tecido estudado, mas
igualmente um inquérito singular junto à população imediatamente
afectada, inclusive, ou até sobretudo, todos os trabalhadores, a
esmagadora maioria dos quais, se não todos, estrangeiros, muitas
vezes sem documentos legais, que preenchem a parte dos “obreiros”
não-especializados, e que podem ser substituíveis com a maior das
facilidades. Mas mais importante, são garante de uma mão-de-obra
barata, sem preocupações de seguranças e regalias, e descartáveis
(uma coisa implica a outra, uma mão lava a outra).
Esta acção,
a de transformar estudos sociológicos (ou mesmo de outras
disciplinas académicas) em projectos de banda desenhada, não é
nova, mas há sempre pequenos contornos diferentes. Por exemplo, o
livro Riche.
Porquoi pas toi?,
um estudo sobre como vivem os mais ricos, o 1%, e como mantêm e
gerem as suas fortunas, baseado no trabalho de Michel Pinçon e
Monique Pinçon-Charlot, e criado por Marion Montaigne, tinha
contornos bem mais humorísticos, se bem que as suas lições fossem
fortes e inteligente. Mas o caminho era o da derisão, pois como reza
a sabedoria popular, mais vale rir… Chantier
cria um tecido, pelo contrário, mais narrativo, centrado em
personagens que, se fictícias, ocupam, poder-se-ia dizer, um lugar
ou mesmo função de absoluto realismo. E que serve de modelo,
talvez, destas experiência usualmente afastada da atenção
mediática.
O que
descobrimos nas equipas de trabalhadores à volta de Zidane e Sékou,
é que existe uma
verdadeira hierarquia entre as posições profissionais – desde
aqueles que simplesmente acartam baldes e limpam o estaleiro, os
manouevriers,
até aos chefes – e expectativas distribuídas por nacionalidades e
cores de pele. Os “piores”, os que se encontram na linha mais
baixa dessa escala, claro, são os “mamadous”, os negros, mas
mesmo aí haverá uma distinção entre os de origem africana e de
outras paragens, os muçulmanos e os cristãos, etc. É revelador,
por exemplo, o momento em que a mulher que trabalha na agência de
emprego (agência deliciosamente chamada “Pauvre comme Job”, tal
como outra é “Hugo Bosse”) tece considerações sobre as
expectativas da ética de trabalho de um peruano, um turco, um
magrebino, uma pessoa do Mali... “Não sendo racista, hã, mas há
raças que não aceito”. Até seria divertido, se não fosse uma
dura realidade de “empregabilidade” (e que temos em Sékou uma
ilustração).
Não sendo o racismo o coração
desta análise, ele é um dos que mais forte bate na raiz dos
problemas. Para citar o título da tese de Jounin, esta é uma
história entre “a descriminação e a precariedade”. Há então
sobretudo dois eixos cruzados nesta análise. Por um lado, o eixo da
relação profissional-contratual com os projectos, existindo
diferenças substanciais entre os contratados e aqueles chamados para
trabalho temporário, entre aqueles contratos directamente pela
empresa de construção civil e os contratados por empresas externas,
temporárias, etc. Por outro, é o eixo da origem étnica. O
mecanismo narrativo, porém, o que pretende, mas também desde logo
previsto no trabalho de Jounin, é demonstrar que, para além da
“economia objectiva”, existem as vidas que por ela é atravessada
e, quantas vezes, atropelada.
O
livro oscila em toda uma panóplia de abordagens visuais. O desenho
de Braud é basicamente “rabiscado” numa linha nervosa, e por
vezes abandona-se, nas partes mais histriónicas, representando em
hipérbole algumas das crises ou fúrias dos envolvidos, a metáforas
e transformações físicas das personagens, descartando-se
totalmente de ideias realistas (um dos capatazes, possivelmente
português e irascível, tem tamanhas orelhas e nariz que se
transforma num elefante; outros parecem dragões; Zidane vê os seus
companheiros “esmagados” como zombies,
etc.). Se grande parte do livro se apresenta com grelhas de algumas
poucas vinhetas, permitindo acções claras e textos corridos, numa
fase do livro há uma maior divisão das pranchas, que torna tudo
mais apertado, com grande necessidade de urgência – tratar-se-á
de notar, a dado passo, que nem toda a informação desejada caberia
no formato/tamanho previsto? Mas há igualmente momentos em que a
autora se permite apresentar splash
pages ou grandes
planos dos rostos, construindo assim uma maior densidade na
caracterização, lá está, humana e não-comutável, destas
personagens em particular, sobretudo Sékou/Souleymane, o
protagonista da segunda parte, e herói picaresco da narrativa, e o
jovem Hassan Zidane, que ocupa a primeira parte da diegese, e serve
de pólo de aprendizagem, verdadeiro avatar do próprio leitor.
Mas
a autora – baseando-se, quem sabe, em intervenções na obra
original? - dá também espaço a alguns dos outros intervenientes
para falarem: os intermediários da agência de emprego, os
capatazes, os donos da obra, etc. Dessa forma, a situação social
ganha nova facetas, torna-se mais complexa, explica as dinâmicas e
as distribuições de poder: sempre para demonstrar como aqueles que
ficam fora do círculo dos privilégios estão condenados a lá
ficar. É a felicidade do capitalismo.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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