A equação deste novo livro de Quintanilha
apresenta uma estrutura curiosa, e que demonstra o quão mais importantes são as
construções das pessoas nas nossas próprias mentes, misturando factos e
contacto directo com projecções, medos e ansiedades do que um verdadeiro
encontro entre duas pessoas num palco de igualdade. Se Talco de Vidro parece ter duas personagens a viverem numa qualquer
relação de distribuição e troca de energias, a verdade é que é apenas a partir
de uma delas que todos os novelos da trama são despedidos, e é totalmente na
responsabilidade dessa personagem que recaem as forças que desenrolarão,
desfiarão e destruirão esse mesmo novelo. (Mais)
A descrição da intriga deste novo livro
parece quase tirada de uma banal telenovela. Duas primas nascidas no mesmo meio
social enveredariam em duas fortunas quase diametralmente opostas, graças às
circunstâncias igualmente antagónicas a que acederiam, desde o ambiente
familiar às capacidades financeiras dos pais, passando pelos casamentos com
maridos que ora lhes deram todas as possibilidades de se realizarem a todos os
níveis ora seriam mais um obstáculo nessa libertação individual. E é desta
maneira que Rosângela se tornaria uma dentista independente com algum volume de
negócio e inscrita numa classe média alta do Rio de Janeiro, e Daniele se
manteria numa vida de classe trabalhadora dos subúrbios. Todavia, não é apenas
essa desigualdade que é suficiente para criar algum movimento narrativo. O que
surge é uma mancha somente na perspectiva de Rosângela.
Apesar de todos privilégios que conquistou,
e uma certa “superioridade”, pelo menos a nível económico e social, alcançada
em relação a Daniele, esta possui um sorriso genuíno, quase virgíneo, que
revela o modo natural e livre com que ela experiencia na totalidade a sua vida.
Na mente de Rosângela, mesmo que isto não seja dito, esse sorriso acaba por ser
um reflexo de como ela própria não consegue aceder a esse prazer da vida, não
obstante as suas condições “perfeitas”. É portanto a própria existência do
sorriso de Daniele, como uma fenda de luz súbita no meio da sua vida, a qual, de acordo com Rosângela, deveria ser
sempre triste, que vem paradoxalmente assombrar a existência de Rosângela, que deveria ser feliz. É essa estranha
simetria de distribuições desiguais que lançará Rosângela num profundo
exercício de introspecção – que é a matéria toda de Talco de vidro – e num trilho cada vez mais autodestrutivo. A inveja,
roendo-a por dentro, leva-a a criar cada vez mais defesas classistas e muitas
vezes de soberba contra aqueles que ela vê como seus inferiores sociais, a
querer mesmo “destruir o sorriso” da prima, mas rapidamente se tornará um plano
inclinado no qual ela tombará.
Como no caso de Tungstênio, Quintanilha abandona qualquer organização linear e
unilateral da sua história, mesmo que em termos gerais exista um cristalino arco
narrativo. O leitor entra num princípio e sairá num fim, sem dúvida, mas o
percurso é composto por avanços e recuos, desvios e desvãos, becos sem saída e
intrometimentos em linhas temáticas intempestivas. Se existe uma “trilha”
associada a um narrador externo, as palavras que seguimos, sejam essas ou as
dos diálogos falados pelas personagens, criam estruturas inacabadas e sem
cartografia.
Muitos dos diálogos parecem ser frases de
circunstância, coisas banais que se dizem, quase ao ponto do que escutamos,
dizemos e repetimos como automatismos. Se não as escutássemos, nada de grave se
perderia na comunicação, no convívio entre as pessoas. Elas criam portanto uma
espécie de matéria que adensa a história, mas não são necessárias para a sua
compreensão. É um trilho de intensidade, de impressão. De sensações mais
acumuladas do que compreendidas. Mas tanto podemos atribuir essa
responsabilidade aos impulsos de Rosângela – que “deita fora a sua vida”, como se
costuma dizer, por um despeito quase superficial – como à incapacidade do
narrador encontrar um fio à meada a essa mesma desfeita.
Eis um exemplo. Logo no início dos casos
amorosos após a separação do marido, Rosângela está a jantar com um homem. Numa
vinheta, ela diz, “Eu sempre preferi frutos do mar à carne, sabe?”, para na
outra vinheta o homem afirmar “Meu negócio foi sempre marcas e patentes; meu
pai queria que eu...” etc. Esta falta de coordenação ou completude imediata
entre os diálogos é apenas um dos sintomas desta organização semi-desvairada
que informa todo o relato. Ao contrário de Tungstênio, Talco de vidro
é absolutamente concentrado na perspetiva e mesmo focalização interna da
protagonista. Se existem toda aquela “torção visual” necessária para
transformar a matéria do livro na convenção narrativa de um mega-narrador
externo, todo o texto, não sendo na primeira pessoa, parte de um canto obscuro
da psique de Rosângela, e todos os acontecimentos têm-na como âncora principal,
ou se não tiverem, são simplesmente memórias ou projecções do que ela sabe dos
outros (sobretudo em relação à prima Daniele).
Longe da dispersão da polifonia do anterior
livro publicado entre nós, a manutenção do mesmo princípio de turbilhão de
memórias, sensações, linhas de pensamento, ideias, fragmentos, modos de humor e
momentos temporais, ao exercerem a sua tensão narrativa e organizacional numa
só personagem, ou seja, numa só plataforma psicológica, tornam-na muito mais
tensa. Afinal de contas, enquanto leitores, poderíamos atribuir aquele
turbilhão, em Tungstênio, a uma personalidade não-narrativa, ao próprio
mecanismo da história, mas agora aqui infundimo-la numa vontade e, assim,
quebramo-la também ou adivinhamos de longe que essa tensão terá como resultado
alguma vazão dramática.
A atenção do autor para com a paisagem
social do Brasil urbano não poderia ser mais patente. Há uma clara linha de
divisão que separa a experiência de Rosângela e a da prima Daniele, como vimos.
Aliás, quase sistematicamente se constrói uma ideia de dicotomia entre ambas a
todos os níveis. Se a primeira tem o seu próprio consultório de dentista, a
segunda não conseguiu terminar o curso de arquitectura sequer. Se a primeira
vive num apartamento de luxo, um duplex em Icaraí, e se desloca no seu novo
automóvel importado, que lhe foi oferecido na casa de praia, Daniele tem de
apanhar o autocarro a partir do bairro de Barreto, algures no Niterói, do outro
lado da Baía de Guanabara. Se a primeira tem um marido de sucesso, atencioso
para com os filhos, generoso para com todos, influente e que convive com uma
parte da nata da classe alta do Rio, Daniele vive na sombra de um divórcio forte
e feio, de um homem violento, depois de ter fugido de casa de um pai bêbado e
violento. Rosângela sabe que pertence a um nível social superior ao de Daniele,
e isso seria factor suficiente para sentir uma espécie de simpatia para
com a sua pobre prima, mas nem isso existe.
Em primeiro lugar, é preciso compreender
que o uso que fazemos aqui de simpatia é muito preciso, e que nada tem a ver
com empatia, a qual é a compreensão,
apelando para experiências ou traços vivenciais idênticos, do que o outro vive
naquele momento. A simpatia é uma ideia moralizante e emotiva da experiência do
outro (o pai alcoólico, o marido abusivo, a vida que não corre bem), mas
superficial e que mantém uma grande parte dos juízos de valor, aqui enrolados
com aspectos da vida social. Todas as conquistas de Rosângela, em parte,
nasceram da sua circunstância privilegiada, mas ela atribui-las à sua própria
vontade, fazendo o mesmo em relação aos aspectos negativos da vida de Daniele,
e é essa a razão que a levam a ver o tal sorriso como uma nota dissonante e uma
explicação do seu não-merecimento. Rosângela acredita que todos os que a
rodeiam estão plenos de inveja por ela, pelo que ela possui, nas suas palavras,
o “sacrossanto objetivo da perpretrada vida inalcançável”. E fica cega, então,
para o monstro de inveja que ela cria sozinha. Afinal de contas, esse tal “alcance”,
palavra empregue, que Rosângela acreditava ser essa linha inultrapassável, é
afinal facilmente conquistável. E tudo a partir da sua perspectiva. É um cliché
falar de espiral, é certo, mas é essa a figura geométrica compulsiva criada a
partir da sua obsessão.
Os únicos momentos em que o narrador visual
parece querer “escapar”, digamos assim, da prisão da perspectiva de Rosângela, é
quando procura instituir pequenos ecos formais entre espaços e objectos: uma
porção da calçada, as ondas na praia, um canto de céu. Se existem vinhetas
“imaginárias” ou “metafóricas”, que acompanham a trilha dos pensamentos da
protagonista, esses delicados momentos escapam da gravidade da narrativa e da
introspecção tortuosa e doentia da mulher. Isto é ajudado pelo facto do autor
gostar de empregar múltiplas perspectivas oculares sobre um mesmo objecto (ou
personagem), sucessivamente saltando de ângulos, proximidades e aberturas de
plano. Não é que se crie propriamente uma fluidez e elegância de sentido com
essas desarrumações, mas instila-se antes uma certa urgência e precisamente
falta de centro. O que, associado à absoluta centralidade de Rosângela, leva ao
paradoxo da sua mente cada vez mais desancorada, na sua espiral descendente de
ânimo.
Mas essa é outra das forças de Quintanilha,
parece-nos. O facto de ele deixar-se estar durante muito tempo (páginas,
vinhetas) num diálogo, mesmo que nos parece ser banal, é o que traz à tona essa
realidade, mais constrangedora do que outra coisa qualquer. O choro entre
Rosângela e a mãe, quando a filha “reemerge” da sua “depressão”, é um exemplo
claro dessa gestão. Todos nós teremos passado por esses episódios, mas quando
os recontamos reduzimo-los a traços essenciais. Ver e escutar cada fungadela,
cada pequena hesitação no diálogo, cada pedido de correcção e gesto, não é algo
que se deseje revisitar, nem visitar no caso dos outros, mas é aí que
Quintanilha nos obriga ficar, para percebermos as linhas com que se cosem essas
personagens. E é também nesses momentos que o tempo mais corre lenta e
linearmente, sem interrupções da “mente” de Rosângela.
A protagonista atravessará toda uma série
de fases desta odisseia psicológica: agressão, desejo de auto-transformação,
transtorno, enganos, regressão infantil, e uma recuperação. Mesmo que mais uma
vez frágil, ilusória e superficial, pronta a estilhaçar-se à menor desvio. E
Quintanilha, em Talco de vidro,
montou uma armadilha implacável para as mandíbulas se fecharem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela
oferta do livro.
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