Graças à recepção do seu trabalho, celebrado pela crítica,
leitores, exposições e prémios, mas igualmente por uma intensidade concentrada
de trabalho efectuado, Catarina Sobral consegue produzir novos projectos no que
parecerá tempo recorde. Eis mais dois títulos a somar a uma das autoras mais
produtivas, em termos individuais, da literatura ilustrada infantil portuguesa,
que vêm mostrar ainda mais desdobramentos da sua assinatura visual e autoral. Em
ambos os casos, podemos dizer que se Catarina Sobral optou por não escrever as
palavras, a matéria narrativa e até os elementos que compõe aquilo a que
chamamos de “história”, está porém nas suas mãos o enquadramento da matéria
visual em torno desses mesmos elementos, assim como toda a organização dos
ritmos, objectos e conjunção de tudo aquilo que concorre para a construção do
significado, quer aquele paulatino, página a página, quer o total. (Mais)
No caso de A casa que
voou temos um texto escrito por Davide Cali, que os leitores portugueses
poderão (deverão, até) conhecer de A rainha das rãs não pode molhar os pés, ou Um dia, um guarda-chuva… ou a banda desenhada
infantil Cruelle Joëlle. Assim sendo,
poderemos esperar um trabalho burilado por textos simples e curtos, mas que
pretendem não apenas dirigir-se ao essencial dos eventos que construam uma
história, mas igualmente às suas dimensões que melhor revelem o valor que essas
mesmas coisas exercem sobre as suas personagens. Em A casa…, Cali prepara um
texto escorreito, em prosa fluida e sem ornamentos excessivos, quase apenas
afirmando os factos – “um dia a casa foi-se embora. Simplesmente ergueu-se do
chão e levantou voo.” -, querendo que sejam eles mesmos que façam despontar a
magia desses pequenos absurdos. Catarina Sobral elabora então um trabalho em
torno dessas palavras, aqui apenas duas frases, ali um bloco maior, que se
expressa sobretudo por spreads, mas todos ocupados de modos diferentes. Usando
lápis de cor e grafite, a ilustradora constrói paisagens urbanas na qual a casa
na verdade não se destaca tanto pelas suas características físicas, mas pelo
seu acto de fuga, obrigando o seu morador a lançar-se igualmente num movimento
de perseguição. Uma vez que a autora cria a maior parte dos objectos –
edifícios, árvores, veículos, personagens, e até mesmo as texturas e sombras
com os grafites em tramas diferentes, o uso da cor destaca-se para espalhar
pontos visuais de interesse, fazendo com que o olho não apenas percorra,
lúdico, à procura da casa voadora, como a desvendar os pormenores
diferenciados.
As dificuldades do protagonista, que o obrigam a
procurar vários apoios, falhados, na burocracia, acabam por serem desculpas de
revelação de uma outra paisagem, aquela que de tanto a casa como o
protagonista, afinal, fogem. A resolução da história é tão calma como o voo
tranquilo da casa e a viagem do homem, e que se descobre que era tão-somente um
regresso à infância.
A sereia e os gigantes tem texto da
própria autora, mas é baseada numa famosa lenda algarvia, da praia da Rocha,
sem grandes desvios das versões mais conhecidas. O propósito da autora não
seria um reaproveitamento da lenda para depois criar “revelações da verdadeira
lenda”, ou providenciar uma hipotética explicação – real ou fantasiosa – mas aproveitar
essa matéria para investigar modos elegantes de se expressar no plano visual.
A lenda é simples, e conta como a disputa entre o
Mar e a Montanha, aqui representados por gigantes, por uma sereia, levaria a um
impasse que criaria a praia. No entanto, isso cria o triângulo perfeito para
dominar a composição das páginas. Apresentadas necessariamente duas a duas,
existem oposições em simetria que criam ecos ou reflexos entre os gigantes Mar
e o gigante Montanha, páginas que se apresentam como unidades separadas mas se complementam
(as dos presentes ofertados), e outras que constituem paisagens corridas, ora
de uma forma relativamente neutra, ora colocando os rivais em tensão, ora ainda
mostrando-os, com ou sem a sereia, numa posição descentrada, criando então
pontos de desequilíbrio necessários para quer o avanço narrativo quer para um
reequilíbrio holístico. E de facto, se se pensar na própria história e na lenda
etiológica, são precisamente a constatação dessas duas forças motoras e imensas
(o mar e a terra), a sua tensão simétrica e o vaivém das suas forças em
oposição, que criariam essa nova terra.
Se as formas estilizadas e minimais a que Catarina
Sobral já nos habitou procura uma elegância quase subsumida e contida em A
casa que voou, no caso de A sereia e os gigantes já se permite
abandonar em maiores efeitos dramáticos e psicadélicos de combinação de cores,
já que ocupa o espaço branco da página de uma forma mais resoluta e suave. Em
vez das tramas a grafite, temos grandes blocos de cor, provavelmente em lápis
de cera, que permite um “preenchimento” mais homogéneo. Isso não significa que os
brancos não sejam significativos, uma vez que, compondo o corpo dos gigantes,
podemos lê-los (aos brancos) como uma proximidade exagerada desses mesmos
personagens.
Bem calculadas, o número de cores é na verdade
também contido, mas se na colaboração com Cali se trabalhava apenas num
princípio de cores primárias que não se cruzavam, aqui temos um maior número de
cores (além do amarelo, vermelho e azul entra igualmente o verde, o rosa, o
castanho), ainda que não se combinem para chegar a outras cores: cada linha é
autónoma, seja recta, curva ou encaracolada, mas se se cruzar ou encestar com
outra numa trama ou padrão, cria efeitos cumulativos. Existem então as
paisagens recorrentes da autora com tipologias diversas de um mesmo descritor (“peixes”,
por exemplo, ou “flores”, “árvores”, “barcos”, “montes”, “ondas”, etc.), que
pouco se importam com princípios realistas, mas antes com formas de domínio de
diferenciação imaginativa.
Não é esse o propósito dos livros todos, de resto?
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, pela oferta
dos livros.
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