A intriga deste livro está tão enclausurada quanto os soldados
que acompanhamos: o Capitão (cujo nome jamais diz, nem confessa quando é
capturado, tornando-o uma cifra para muitos dos heróis da guerra) e o soldado raso Lu, na cidade derrubada de Nanquim ou Nanjing.
Estamos no final de 1937, no auge da 2ª Guerra Sino-Japonesa (que desagua, qual
rio, no oceano da 2º Grande Guerra). A cidade já foi bombardeada severamente
pela aviação japonesa, uma sua parte foi tornada uma “zona segura” para
refugiados civis e estrangeiros (sobretudo os ocidentais que haviam igualmente
contribuído para minar a própria estrutura económica e social da China desde o
século XIX), e a infantaria japonesa procede a um saque, morticínio e violações
em massa tão atroz (apesar do negacionismo japonês até à data), que todo o
episódio é conhecido muitas vezes por “A violação de Nanquim”. É portanto na
paisagem dessa barbárie e desolação, e no colapso e abandono total pelas chefias
e organização militar da cidade, que o Capitão e Lu se encontram isolados, e
tentam escapar, conquistando a passagem rua a rua, da cidade e dos perigos que
os esperam às mãos dos militares japoneses. (Mais)
Nanjing parece
servir que nem uma luva todo um conjunto de livros que têm surgido nos últimos
anos das segundas ou terceiras gerações de emigrantes de países asiáticos
(japoneses, chineses e coreanos) nos Estados Unidos da América que, abraçando
todos os instrumentos que lhes são acessíveis nesse país, lhes permite
reconectar com as suas raízes familiares e culturais. Adicionalmente, é um
momento flexível e aberto a projectos de banda desenhada aberta a temas
históricos mais difíceis, dolorosos e dirigidos a um público mais
diversificado, se bem que Nanjing não
possa ser descrito de forma alguma como uma “YA GN”, como a obra de Gene Luen
Yang, por exemplo.
O périplo dos dois militares chineses é feito, como dissemos,
a cada dobrar de esquina. Se a perspectiva visual é clássica, vendo o
espectador as personagens, a focalização é por eles dirigida. Mesmo com o uso
exímio de tramas, pretos, cinzentos, silhuetas, planos inclinados, as vinhetas
enquadram-se sempre em torno dos corpos ou rostos das personagens, não se
abrindo em panoramas arejados e abrangentes. Se se cruzam com outras
personagens chinesas, já mortas ou vivas, estas são quase sempre vitimizadas
por soldados japoneses, obrigando os protagonistas a protegerem-se atrás de um
muro ou de escombros. Se se ocultam numa casa, procuram que as trevas lhes sirvam
de protecção. O acto de testemunha e de desespero é assim partilhado pelos
militares, tornando-os humanos, e não figuras épicas capazes de escapar a essa
condição humilde.
Essa “escala humana”, que discutivelmente foi popularizada por
Harvey Kurtzman nas suas histórias de guerra na década de 1950, está então patente
na maneira como o autor compõe essas suas imagens. Com raríssimas excepções em
momentos de articulação supra-narrativa (a introdução com um establishing shot, um “intervalo” na
acção na única noite dormida pelo Capitão, a sua entrada, capturado, na zona
segura, e o último afastamento dramático), as vinhetas estão sempre ao nível
das ruas, em planos médios e aproximados das personagens, não se permitindo uma
perspectiva acima da das personagens.
Essa escala humana também tem repercussões na representação e
sua relação com a ética. Não se pense, portanto, que os japoneses são
representados somente como facínoras comutáveis e animalescos. Estamos longe de
qualquer estereotipificação ou maniqueísmo. Um dos soldados japoneses, numa das
patrulhas, tem mesmo oportunidade de nos mostrar que não quer participar de
nenhum dos abusos brutais dos seus camaradas. Isso não o salvará porém da
vingança dos protagonistas, depois de matarem todos os outros. O coronel
japonês que captura o Capitão (cujo nome, numa imagem especular invertida,
também acaba por não conseguir dizer, pois o capitão chinês não quer saber,
acreditando - uma crença partilhada por todo o livro, dedicado aos “esquecidos”
– que os nomes retêm uma importância inalienável), pode numa primeira instância
surgir como o protótipo do “oficial honrado”, que quer seguir a conduta militar
acima das paixões, mas revelar-se-á ainda mais maquiavélico pela forma como se
aproveita da situação para manipular todos aos seus propósitos. Esse abuso
derradeiro, de resto, é aquilo que permite trazer depois a dimensão mais
heróica ao livro e ao protagonista, já que o capitão chinês se recusa a
colaborar e acaba, fora de cena, por pagar o preço da sua honradez. Cena
expectável, nota de espectacularidade e tragédia numa narrativa que, até ali,
parecia pautar-se pelo mais obediente dos realismos. Não é de surpreender, porém,
que o autor pretenda mostrar que na mais abjecta das amarguras provocadas pela
guerra, haverá uma espécie de espírito indomável e indobrável chinês. É sua
prerrogativa.
Em termos figurativos, muitos outros leitores têm apontado nomes
tais como os de Milton Caniff ou de Joe Kubert, o que não é despropositado dada
a procura da exactidão nos jogos de claros e escuros, na forma como os negros e
as texturas das tramas servem para criar zonas de indecisão, perigo e “peso”. Mas
estamos em crer que pela estilização dos rostos e das figuras, ligeiramente
mais simplificados e arredondados, suaves, estariam numa linha que foi
inaugurada, novamente, por Kurtzman enquanto desenhador, e destilada até à
máxima elegância por Alex Toth, tendo em Darwyn Cooke um dos seus cultores
contemporâneos (outras das comparações já feitas com Young). Há também um
equilíbrio entre uma abordagem realista (nos cenários e objectos) contra uma
maior estilização dos corpos que o aproxima de questões discutidas sobre Shigeru Mizuki, uma das citações bibliográficas de Young. Sobretudo a cena
inicial, de uma dezena de páginas tensas e “silenciosas”, aproxima o autor de
toda uma vetusta tradição de banda desenhada de guerra, noir, séria, que cria
uma imediatez do tom que depois manterá com as personagens em cena.
Sendo o autor descendente de chineses, e sendo o livro sobre
chineses (e japoneses), há uma economia de representação e focalização que se
centra na população autóctone. Mesmo assim, o autor sente a necessidade de
colocar em cena, num momento final e breve, uma personagem ocidental, que ocupa
um papel de preponderância social e até algum destaque na zona segura, mas sem
que as questões centrais acabem por lhe dar um peso definidor do episódio. Algo
bem distinto do filme Flowers of War,
também passado no mesmo enquadramento, mas onde é a figura da personagem
americana (desempenhada por Christian Bale) que acaba por ter o maior peso e
agência de toda a narrativa. Em contraste, The
Burning City recoloca a tónica da importância da agência, quer a negativa
quer a positiva (a cobardia, a fuga, a barbárie, a empatia, a honradez), do lado
dos intervenientes directos, sem a necessidade de criar uma figura de
identificação “neutra” (que dizer, nunca é neutra, mas apenas “disfarçada”, por
melhor corresponder a um certo modelo de representação). Aí, também esta obra
do jovem autor revela uma grande inteligência ética.
Nota final: acesso a ficheiro pdf via The Comics Alternative;
imagens colhidas na internet.
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