Finalmente temos acesso a um projecto que estava prometido há
algum tempo, o qual nascera num ambiente de crowfunding
não muito bem-sucedido, mas que encontrou na editora de Pepedelrey um natural
veículo de concretização. Trata-se de uma narrativa de algum fôlego,
desenvolvida em ambiente digital, com uma temática histórica, aberta de um modo
flexível a questões contemporâneas de repensar a história, a identidade e a
comunicação entre os povos. Enquadrado no breve período em que se estabeleceu
um vivo comércio entre os portugueses e o Japão, entre um semi-isolamento e o
édito que o refecharia ao Ocidente, Nau
negra centra-se sobretudo no encontro entre dois homens: um liberto de
origem africana, conhecido por Reimau, e um ronin
(sem utilizar esse termo) aparente, ambos servindo duas perspectivas diferentes
dos mundos que se encontram, estando os portugueses reflectidos nas facetas
distorcidas e secundárias desse mesmo encontro. Na verdade, passando-se em
torno de Nagasaki, em 1618, já após a tomada de poder de Tokugawa Iesayu, os
decretos anti-cristãos, a chegada dos ingleses, etc., já o declínio da presença
portuguesa se precipitava, tornando este encontro então num canto de cisne de
um poder pouco efectivo… (Mais)
Fernando Relvas não
está interessado de forma alguma numa obra pedagógica, que pudesse ser
co-optado por programas escolares ou leituras simplistas da história complexa. Tampouco
está interessado numa espécie de name-dropping
empregando citações ou cameos de
referências mais famosas – por hipótese, episódios com D. João III, Francisco
de Xavier, o governador de Tanegashima, a introdução das armas de fogo, do Cristianismo,
ou faits-divers como a cozinha… Cria um ambiente específico, corpóreo, em que
os factores da vida já decorrem, e é neles que faz surgir as suas personagens. O próprio autor descreve Nau negra como sendo uma “obra de ficção
em banda desenhada e não uma tentativa de reconstituição histórica”. Porém, se
o autor revela algumas das suas fontes de trabalho - nomeadamente um dos
volumes do Professor Charles Boxer, Emérito das Universidades de Londres e
Yale, nome básico e fulcral em qualquer bibliografia da história que diga
respeito a Portugal e as suas relações no dito Extremo Oriente, e os famosos
biombos namban - essa erudição concreta não se traduz por objectos absolutamente
concretos na narrativa em si.
Não deixa de
ser algo desequilibrado haver um movimento de referência e ancoramento (não
apenas paratextual, no livro, como extratextual), para depois não se notar esse
ancoramento nem na estrutura nem nos pormenores dramáticos. É claro que
Fernando Relvas não se inscreve numa tradição à la Eduardo Teixeira Coelho, por
exemplo, cujo conhecimento de barcos era tão preciso que acaba por criar mesmo
um livro de referência para outros profissionais (A arte de bem navegar), mas não deixa de ser algo afectado assumir
esse conhecimento para depois não o transmitir, e deixá-lo somente como uma
espécie de “mais-valia” evanescente… Há diálogos estranhos, em torno dos tipos
de navio, quase numa esgrima enciclopédica, que tem o mesmo efeito cómico do sketch dos Monty Python sobre os
horários dos comboios numa história policial… O desenho, nesses aspectos, não acompanha
o rigor que se presume seguir nominalmente.
Contudo, a estrutura geral do livro não é nítida. Vários
problemas ocorrem que levam a uma leitura confusa e quase sem direcção. As
vozes das personagens não se tornam nunca distintas, e há uma falta de
coordenação narrativa ou maior clareza que desestrutura os episódios entre si. Há
mesmo momentos em que não sabemos quais são as personagens que estão a falar,
sobretudo nas cenas em que nos “afastamos” visualmente, e uma vinheta nos dá a
ver um barco rodeado de múltiplos balões… Só com algum esforço chegaremos a
atribuir com correcção as falas às suas personagens certas. Mas em termos
gerais, no cômputo final, é a própria geometria das relações entre as
personagens, e a sua economia dramática que não é clara.
Pensamos que compreendemos a razão deste problema. É até
expectável. Trata-se da existência de uma complexa rede de relações, acontecimentos
e princípios que se desejam transmitir, e que estão “claros” na mente do autor,
mas cuja expressão e concretização numa forma é feita de modo mais acelerado do
que a coalescência de que necessita. Assim, para o autor poderá fazer sentido a
forma elíptica com que os elementos são apresentados, ou até a ligeira
descontextualização ou falta de ancoramento (que chamaríamos de “pedagógico”,
então) em que estão mergulhados, mas para o leitor, que cai de chofre afastado
desse conhecimento, apenas surgirão fiapos apresentados fragmentariamente, e
que apenas muito a custo, se se conseguir chegar a bom porto, se conseguem
consolidar. Mesmo nos momentos mais dramáticos, como a captura dos dois
protagonistas pelas forças de um nobre japonês, e a consequente resolução,
obriga a ler várias vezes para se perceber a ordem e encaixe das acções.
Podia-se imaginar uma qualquer comparação, por exemplo com Cimarronin, de Neal Stephenson et al.,
cujo tratamento ficcional e pseudo-histórico se ancora na nossa realidade. Poder-se-ia
dizer que esse projecto multiautoral e, para todos os efeitos, típico do
mainstream contemporâneo norte-americano não terá muitos elementos para
aproximar de uma obra individual de um auteur.
Seria certo. Mas queremos apenas, nessa aproximação, centrar-nos nas formas
narrativas e nos modos de deixar claro os caminhos que se pretendem trilhar com
elas. Nau negra não abandona jamais uma
certa turvação. Estive um prefácio colocando alguns elementos estabilizadores
no início, e a sua estrutura elíptica seria melhor servida, talvez.
A opção por ter o livro em inglês é compreensível em termos de
desejo de circulação, mas a falta de uma revisão leva a que certas gralhas ou
frases menos bem construídas tenham permanecido, tornando a leitura pouco
fluida em termos mesmo da linguagem verbal. Mas quando as personagens descrevem
uma cena qualquer – pretérita em relação a esse relato ou mesmo contemporâneas,
quando Reimau descreve as mulheres no convés – tornam-se exemplos intensos da
razão pela qual o cliché “show don’t tell” é, muitas vezes, acertado.
Sabemos também que, por razões pessoais (e não mera opção
estética), o autor passou a empregar instrumentos digitais para o desenho,
composição, coloração e legendagem do livro. Nessa frente, porém, também surgem
escolhos. A assinatura gestual de Relvas é muito própria, já que ao longo da
sua carreira foi sempre um cultor assíduo de uma polarização entre uma
abordagem mais naturalista, de traços finos e elegantes, e outra que parte de
princípios caricaturais, estilizados pós-franco-belga até… E em muitos casos há
um encontro equilibrado entre essas duas forças, como, em parte, neste mesmo
caso. Uma vinheta, por exemplo, mostra-nos um marinheiro português a irromper por
uma tenda: são visíveis as linhas nervosas (a lápis?) que o compõem, de
contornos indecisos e linhas que tanto poderão marcar o seu movimento, o seu
aspecto físico ou a urgência interna que o move. Mas a esmagadora maioria dos
desenhos, se fincam as personagens às suas fácies
específicas, são muitas vezes presas num contorno empedernido. E o trabalho da
cor, das texturas, dos momentos em que se pretende mostrar um efeito qualquer
de luminosidade, é francamente vulgar, empastelado e até contraproducente em
relação ao desenho que lhe subjaz. Há vinhetas que provavelmente serão no
exterior mas pouca diferença têm daquelas no interior do navio.
Enquanto objecto que pretende criar uma narrativa alternativa
aos rasgados elogios acríticos à história dos “nossos” Descobrimentos, mais
levantada enquanto mito do que realidade conhecida, Nau negra é um contributo significativo. Mas a sua estruturação
deficitária não o permite cumprir essa misssão de modo mais decidido.
Nota final:
imagens digitalizadas enviadas por cortesia do editor.
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