Apesar de falarmos em dois posts
diferentes deste livro e do de O. Schrauwen, lemo-los em conjunto, por duas
razões, a jusante a montante dos textos em si. A primeira razão prender-se-á de
uma oportunidade falhada por pouco, mas que criou as circunstâncias para
adquirir ambas as publicações (em francês) ao mesmo tempo no mesmo local. Ambos
os autores são belgas – um francófono e o outro flamengo - e é natural que
ocorram encontros naquele país nas mesmas plataformas. A segunda deve-se ao
facto de ambas serem, pelo menos na sua camada mais superficial, gestos
epistolares. (Mais)
Porém, são obras diametralmente opostas. D’ailleurs é supostamente uma carta escrita por um antigo
combatente republicano espanhol da Guerra Civil, vivendo agora em França, ao
seu sobrinho de 9 anos, a pedido deste devido a um trabalho escolar. Gris/Cinzas
é aparentemente um relato autobiográfico sobre a experiência de rapto por
alienígenas de Schrauwen. Se no primeiro caso temos então um mecanismo
ficcional para criar uma ilusão de realidade autobiográfica (e suspendamos
agora a parte visual, a que já iremos), no do autor de O espelho de Mogli há uma estrutura autobiográfica de partida, só
que quase seguramente para criar ficção.
O livro de Munoz apresenta uma faixa textual que atravessa
todo o livro, sob a forma de legendas narrativas, de uma carta de um ancião
escrito ao seu jovem sobrinho. Perante a demanda da criança sobre a memória –
que o homem não acredita que uma criança tão jovem possa entender
profundamente, já que ela é vista como um peso que se vai acumulando -,
iniciamos um relato que recua à sua infância e juventude, mas que rapidamente
chega ao ponto principal da experiência: a Guerra Civil espanhola. O homem
confessa que gostaria que fosse uma história simples, “para crianças”, opondo
os bons aos maus e com uma resolução simples, mas mesmo estando de um dos lados
da barricada recusa-se a apresentar uma linha nítida de posições correctas e
comportamentos prístinos de um lado e a malvadez do outro. As imagens do livro,
que tanto surgem com duas grandes vinhetas por página como noutras divisões,
tanto seguem o valor concreto das palavras como se escapam a outras acções
não-ditas ou paralelas às palavras, abrindo sempre o escopo dessa experiência. Acima
de tudo, há o constante retorno – a menos que seja o “chão” que nunca
abandonamos – do tempo presente, com o velho avô nas terras francesas, tentando
caçar coelhos e bebendo copitos de pastis, e deambulando nestas memórias a que
nos dá acesso, e que são tanto regresso ficcionado à sua Espanha como também
obstáculo ao regresso verdadeiro, corpóreo. Esse é talvez o tema oculto de D’ailleurs, o não-regresso transformado
em projecto de futuro a quem já viveu tanto.
Os desenhos de Munoz, elaborados em pinceladas rápidas com
tinta-da-China, por vezes baseando-se em composições fotográficas,
traduzindo-as de modo incompleto e fragmentário, por outras burilando de forma
mais decisiva as suas personagens, num equilíbrio entre imagens “documentais” e
outras “ficcionais/experienciais”, cria um mecanismo visual similar àquele da
escrita epistolar. Confirmado até pela existência de brouillons, pranchas não-utilizadas (algumas das quais próximas de um Vicent Fortemps), os desenhos ainda sem texto, etc. no blog do autor.
Nem toda a ficção serve um propósito de criação de simulacros,
como escreve Jacinto Lageira em La
déréalisation du monde. Vivendo nós num mundo em que a atomização das
“notícias” são dadas de forma rápida, fragmentada e incompleta pelas mais
diversas redes sociais, que influenciam de forma cabal outros meios de
comunicação mais tradicionais (basta ver a atenção que a televisão, sobretudo,
dá aos twitters e instangrams, ou quando uma notícia o é pela existência de um
vídeo), e onde algumas realidades são tratadas como ficção (o negacionismo, as
teorias de conspiração, etc.), parte da ficção deve ser vista como
“reconfiguração do real”. Se bem que este pequeno opúsculo pareça pequeno
demais para tamanha consideração teórica, a verdade é que é precisamente graças
à sua simplicidade de veículo que D’ailleurs
contribui para essa transformação subtil.
Dessa forma, como deseja o ensaísta,
apontam-se para experiências que no seio da criação (literária,
cinematográfica, e aqui no campo da banda desenhada) procura manter claras as
distinções dos domínios da realidade histórica, das consequências éticas e
políticas, e dessa forma contribuem de forma responsável para esse trabalho de
memória, a que D’ailleurs responde. É
óbvio que o seu valor de género é bem distinto do de Paracuellos, de Carlos Giménez, El arte de volar ou O artefacto perverso,
de Felipe H. Cava e Federico Del Barrio (publicado entre nós pela Baleiazul, em
1998), para falarmos de obras espanholas próximas do mesmo tema: a primeira é
uma autobiografia propriamente dita, a segunda uma biografia em segunda mão e
voz, e a terceira uma ficção que pretende lançar mão de um contexto
supra-histórico. D’ailleurs, ao
imitar uma voz autobiográfica, uma experiência única (quem sabe baseada em algo
“real”), não o faz de forma irresponsável, mas bem pelo contrário, criando uma
forma de devolução dessas presenças. Não tenta imitar o real, mas devolve
esse real.
Nota final:
imagens colhidas da internet, algumas das quais são
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