A expectativa
pessoal em relação a este novo livro do autor neo-zelandês era, na verdade,
muito grande, uma vez que continuamos a considerar Hicksville (1998) uma pequena conquista na modernidade da banda
desenhada internacional, e um verdadeiro gesto para criar pontes fortes entre
as várias tradições nacionais num só contínuo. Além disso, Horrocks é um autor
que tem dedicado algum tempo à reflexão sobre a sua própria arte, tendo
fornecido alguns argumentos sólidos em relação, por exemplo, à problemática
ahistoricidade da primeira obra de McCloud. Estes factores são importantes, uma
vez que continuam a alimentar Sam Zabel,
se bem que para resultados bem diversos. (Mais)
Este livro parece
partir de um mesmo ponto de partida recorrente de Horrocks, mas parece-nos que se
enreda em demasia na mecânica da fantasia em que tomba. Sam Zabel trabalha em
banda desenhada e é, até certo ponto, uma imagem pouco velada do próprio autor.
Afinal de contas, Zabel é conhecido por ter trabalhado no circuito alternativo,
tendo criado uma série intitulada Pickle, que está interrompida há anos,
e trabalha agora numa série mainstream, onde é apenas o escritor, Lady
Night e, com efeito, Pickle é o título de uma série antiga de
Horrocks, seguida por Atlas, de que saíram apenas dois números, e ele
chegou a trabalhar para a DC, tendo sido argumentista de, por exemplo, um curto
run da Batgirl. Sam encontra-se num momento complexo da sua vida
em que não consegue trabalhar, o famoso “writer’s block”, apanhado entre um
vago desejo de regressar aos tempos simples do seu comic alternativo, e a imposição profissional de trabalhar para um monstro
da indústria de entretenimento. Nesse sentido, Horrocks poderia parecer estar a
fazer não apenas um comentário muito real em relação a uma certa falta de ânimo
de uma geração específica – aqueles que atravessaram o entusiasmo quase
absoluto e perfeito dos alternativos dos anos 1990, em que tudo parecia mudar –
como, de forma menos intensa, a todos aqueles que, dessa geração, “deram o
salto” do alternativo para o mainstream,
onde encontraríamos Bendis, Brubaker, Eddie Campbell, Jeff Lemire, etc.
Uma outra dimensão
desse comentário está patente nas próprias personagens de banda desenhada em
que Zabel trabalha. Se não estamos em erro, Lady Night é não apenas um observação
do estado actual da banda desenhada mainstream em relação às suas
origens nos anos 1930, em que os sucessivos reboots e transformações
levariam a versões cada vez mais violentas e negras, como parece referir-se à Moon
Girl, da EC Comics, relativamente obscura e com uma história editorial e
mesmo diegética confusa. As preocupações arqueológicas em relação à história da
banda desenhada, de Horrocks, são consabidas, e voltam a ter aqui um papel
preponderante para fornecer material da história, mas também em termos visuais.
Mas essa é
precisamente a raiz do problema. Tratar-se-á Horrocks de um autor de uma nota
só? Afinal de contas, Hicksville era
um livro sobre o autor fictício Dick Burger, e sobre a mágica biblioteca
apócrifa e borgesiana naquele enclave da Nova Zelândia. O primeiro número de Atlas tinha dado início a uma outra
pesquisa em torno do cartoonista Emil Kopen, do estado europeu da Cornucopia
(uma abordagem muito hergeana). E agora a apatia e inércia de Zabel vai
entrosar-se com a busca pela obra de Evan Rice… Repetidamente, temos estes
mecanismos de colocar um autor em busca da sorte de um outro. Mas se Hicksville e Atlas (no seu percurso interrompido), tal como It’s a Good Life if You Don’t Weaken, de Seth, permitia que se construíssem
depois narrativas que escavavam sobretudo a possibilidade da flânerie desdobrar memórias, estas uma
história alternativa, e esta então um novo estado de alma aos protagonistas (e
aos leitores), Magic Pen, como a sua
parte do título em destaque, pretende antes mostrar-nos uma fantasia.
É que a Sam Zabel
é dada a oportunidade mágica de, por um simples acto semi-divino, entrar
literalmente nos mundos ficcionais prometidos pela banda desenhada.
Dividido em 14
capítulos, e um epílogo, essa estrutura permite ao autor não ter de criar
propriamente uma fluidez absoluta ao texto, mas formas bastante demarcadas de
fazer avançar os encontros de Sam e as suas travessias dos mundos ficcionais. O
graal da aventura é a descoberta de
um aparo mágico, com o qual se poderão desenhar os tais mundos ficcionais de
modo real, e onde os leitores ou autores que lá entrarem puderem perder-se
neles para sempre, ou por escolha e felicidade, ora por desgraça. Isso permite
a que haja uma lição repetida de forma textual, à la Stan Lee, de que a criação
desses mundos deve ser acompanhada por um grande grau de responsabilidade. Esse
é o grande cerne de Magic Pen: todos
temos o direito de criar fantasias e de as alimentar com os nossos desejos (ou
o contrário, talvez), mas no momento em que expressamos umas e outros numa
forma qualquer pública, no caso a banda desenhada, devemos ter em conta que
elas alimentam as percepções da sociedade e que poderão ser interpretadas de
modos diferentes por pessoas diferentes. E é isso também que faz com que o
protagonista atravesse as paisagens inventadas por outros, ou mergulhe
oniricamente nas suas próprias fantasias, e dessa tensão nasça o “conflito” do
livro.
Como não podia
deixar de ser, Horrocks tem de providenciar personagens que funcionem como
representantes de várias atitudes ou “culturas” dentro do território da banda
desenhada. É assim que ele será acompanhado por Alice Brown, uma artista jovem
que cria um webcomic de temas típicos
da fanfiction, e Miki, uma menina
japonesa com alguns poderes especiais, que traz ainda mais uma camada
diferenciada. Mas vistas bem as coisas, e mesmo tendo em conta alguns cameos de objectos que remetem para
possibilidades da história desta arte (um códice medieval, a catadupa de
géneros tipificados, as referências espalhadas, etc.), estamos longe da
diversidade e densidade cultural de Hicksville. Tudo aqui serve apenas o
propósito da “aventura”, e subsume-se às suas estruturas e expectativas
inerentes. Inclusive em termos de “moralidade”, pois tenta-se compreender
questões de representação de género, de etnias, culturas diferentes, etc., ao
longo a história da banda desenhada, mas de uma forma tão programática e
utilitária que perde o seu poder efectivo, parece-nos. Há partes interessantes
mesmo nessa estratégia, sobretudo quando as “personagens fictícias” falam com
as “personagens reais” (nas redes dos níveis hipodiegéticos do livro) – algo que
Grant Morrison experimentou, é conhecido, em Animal Man: mas onde Morrison falava de “cima para baixo”, aqui são
as personagens que alertam os seus autores para certas realidades psicológicas (de
resto, que o escritor escocês também explorar noutros títulos e no seu ensaio Supergods).
Se o desenho em Hicksville
atravessava anos de desenvolvimento, o que levava a que fosse claríssimo, na
colecção de um volume, da diferença entre o estado da sua arte no arranque e no
término, Magic Pen é bastante mais homogéneo, não obstante as diferenças
internas que servem para assinalar os vários “territórios” estilísticos
citados. De facto, o livro mostra aqui e ali vários estilos, grãos de impressão
e esquemas cromáticos, quando estamos nós próprios a ler o comic que Sam
está a ler, acima de tudo The King of Mars, de Evan Rice (uma referência
também pouco velada a John Carter e Flash Gordon). Contudo, há mesmo um grau
de homogeneidade através isso tudo que, por vezes, quase faz recordar aquele
estado esclerosado que certos autores das escolas franco-belgas, sobretudo a de
Marcinelle, atingiram nos anos avançados das suas carreiras (Peyo, Tillieux, Roba
e assim). Por exemplo, quase todas as personagens partilham o mesmo nariz (Miki
não, claro, pois terá um minúsculo nariz “asiático” - na verdade, uma
construção ilusória e que não corresponde aos fenótipos, mas a uma idealização
da beleza), muitas vez espartilham expressões, e se no caso das mulheres
venusianas a comutabilidade é desejada para sublinhar uma das “lições”, isso
ocorre mesmo nos momentos em que se esperaria maior gradação. Mesmo o trabalho
de composição de Horrocks parece aqui algo banal, como simples veículo da
intriga e pouco mais.
É possível que o
auto desejasse que Sam Zabel and the
Magic Pen fosse mais uma homenagem ao “mundo dos quadradinhos”, um pouco
mais leve, universal, abrangente, por um lado, mas ao mesmo tempo para que pudesse
passar as suas lições de inclusividade, diversidade e desejo em querer que se
expressem genuínas fantasias. Porém, enquanto homenagem, parece-nos que se fica
por territórios demasiado familiares, enquanto didáctico, é demasiado óbvio
para que não se esboroem os esforços argumentativos. Ainda assim, se lido como
fantasia leve e variação de um tema, é possível que Magic Pen possa ser visto
como uma “introdução de nível secundário” ao tomo mais complexo de Hicksville.
Nota final:
agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
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