Parece
haver um entusiasmo partilhado por muitos leitores em torno deste
livro de Peter Mendelsund, o qual se justifica na medida em que é um
livro “ao quadrado” mas com outras anfractuosidades muito em
voga. O “quadrado” é o facto de se tratar de um livro sobre
livros, sobre a leitura dos livros, sobre o prazer, expectativas e
até mesmo perigos que ocorrem nela; as outras dimensões espraiam-se
por considerações sobre as fantasmagorias visuais desenvolvidas à
medida da leitura, o grau de co-criação a que o leitor se propõe
com determinado livro, na capacidade dos autores de dirigirem de uma
forma ou outra a matéria “visualizável” dos seus escritos.
Outro domínio pelo qual o livro tem suscitado algum entusiasmo é
pela forma como se apresenta materialmente, as características da
edição, as suas profusas ilustrações, uma paginação leve,
rápida, com grandes letras, ou palavras isoladas, etc., que torna o
acto de leitura deste livro bastante rápido. Porém, O que
vemos quando lemos é igualmente um caso de mal-entendidos e de
caminhos mais prometidos do que trilhados. (Mais)
Aparentemente
o volume de Mendelsund apresenta-se como um estudo fenomenológico do
acto da leitura, na dimensão imaginativa e projectiva que ela
contém, ou para ser ainda mais específico, qual é o grau da
visualização mental que fazemos dos objectos concretos descritos ou
em acção nos escritos literários. O autor não está preocupado
com a matéria textual, este não é um tratado de narratologia, é
antes uma exploração dos momentos em que o texto permite formar
imagens específicas na nossa mente. Por “imagens” o autor não
quererá apenas falar do sentido da visão, ainda que mental, mas
fala também de outras sensações físicas como a audição ou o
olfacto, mantendo-se num trilho tradicional (recordemos que a
exploração sensorial pode ser bem mais complexa, como tentou num
primeiro passo, em relação à banda desenhada, Ian Hague). Como se
sabe, existirão autores que primam por descrições mais específicas
de um determinado objecto, personagem ou sensação, ao passo que
outros preferem abordagens mais afastadas e impressivas, ou que, com
alguns elementos libertos em cadências regulares ou pertinentes, se
vão coalescendo numa “imagem final”, que para o autor, está
sempre em movimento.
Porém,
há muitas limitações na própria argumentação do autor. Se, como
quer uma nota da revista Visão sobre o livro, se pensar neste
título como uma TED talk, ou uma apresentação numa sessão de
motivação ou introdução, então o seu tom leve, informal,
improvisacional, é apropriado, estruturando-se para animar a
audiência e fazer-lhe soltar uns quantos “ahs” de admiração a
cada nova “pérola” de sabedoria. Mas se queremos levar de uma
forma mais consolidada e séria a discussão a que o livro se
entrega, então os instrumentos da sua apreciação devem ser
igualmente mais rigorosos. Ora, em primeiro lugar, não temos a
certeza se se pode chamar de “argumentário” a uma apresentação
sumária de uma ideia, sem grande desenvolvimento ou ancoramento em
mais do que um exemplo, a uma estruturação e estratificação dos
seus mecanismos, para depois fazê-la cessar subitamente, ou então
passar a um outro tema. São bastas as vezes em que uma determinada
linha de pensamento se promete mas não é, de forma alguma,
desenvolvida de uma maneira suficiente ou satisfatória. Apesar de
Mendelsund citar aqui e ali certos autores e livros, e até mesmo
temas estudados de formas quase exaustivas (quando fala de metáforas,
por exemplo, parece quase estar a seguir na peugada de Lakoff e
Johnson, mas não os cita), jamais atinge os graus de sofisticação
ou completude dessas mesmas fontes, directas ou não. Mais, a
ausência de fontes bibliográficas ou a partilha de uma bibliografia
secundária que estendesse esta temática (há apenas uma listagem
das fontes das citações literárias e imagéticas) não abona a
favor da ideia de diálogo intelectual que aparentemente o autor
deseja, tornando O que vemos quando lemos quase num exercício
de pontificação. Não há tese.
Um
certo absentismo de considerações da sociologia da leitura também
nos parece preocupante. A contextualização dos actos de leitura
parece ser feito num vazio histórico e cultural. Daí a chegar a um
divórcio inerente entre o acto de leitura e outros actos –
independentemente de se falar da visualidade do próprio texto -,
esquecendo que a emergência da literacia universal é algo de muito
recente e apenas nas sociedades ocidentalizadas, que a relação
profunda entre a imagem e a narração encontra as suas raízes em
experiências pré-históricas e mesmo pré-sistemas de escrita ou,
se se quiser, do ponto de vista ontogenético, pré-verbais, está um pulinho
subtil que não se nota, pois não debatido.
Leitores
de livros de leitores como Alberto Manguel e Enrique Villas-Matas
conhecem outras estratégias de abordar a “coisa literária”, já
para não falar de intelectuais-académicos populares como Calvino,
citado, ou Eco, e sem entrar no imenso mundo da narratologia e da
teoria literária. Porém, pessoas familiarizadas com os escritos de
Wolfgang Iser, Gérard Genette, Mieke Bal e tantos outros,
encontrarão aqui apenas “pepitas” isoladas de considerações
consabidas, que não trazem um peso mecânico significativo à
maquina desejada por Mendelsum. Por exemplo, em dois ou três curtos
parágrafos o autor “despacha” a questão da pessoa (primeira
pessoa do singular, terceira pessoa, etc.) em relação à
perspectiva que se permitiria, sem fazer distinções em perspectiva
visual
e focalização,
por exemplo, que Bal institui e tornou operativa de uma forma
significativa. Se entrarmos no campo das relações com a ilustração,
a história do livro, do uso do desenho como instrumento de
pensamento para a escrita literária – os trabalhos de Jacqueline
Sudaka-Bénazéraf
sobre Kafka, de
Konstantin
Barsht
sobre Dostoyevski, por exemplo,
seriam estimulantes, já para não falarmos de exposições ou publicações dedicadas ao tema -, etc. (muitas das
considerações do autor, quando existem imagens, parece ser
reduzidas a “redutoras da imaginação” do leitor, o que é algo
de extremamente banal), abrir-se-ia o campo da problemática. É
difícil, para nós, não ler cada página deste livro sem desejar
que houvesse maior desenvolvimento desse pensamento mas também a
hipótese de um contraditório de outras fontes.
Muitos
dos leitores, críticos ou não, deste livro, assinalam de modo
insistente sobre a carreira de Mendelsum enquanto designer de livros,
pelas capas que desenhou ou outras das suas funções. Mas não nos
parece que apelar ao currículo sem criar linhas de maiores elos com
ele seja uma estratégia correcta de leitura. A verdade é que as
imagens empregues neste mesmo livro, com algumas excepções de
“piadas” bem encontradas, são ligeiras, superficiais ou banais.
As traduções de metáforas já bem coçadas (“o jogo da
cabra-cega”, o “mapa”, os “caminhos”) em pouco ajudam. Apresentar uma consola de vídeo-jogos e depois associá-las aos
hipotéticos “processos” encerrados no Moby Dick de
Melville pode parecer interessante à partida, mas se se lhe dedicar
alguma tempo de reflexão, tendo em conta que nenhuma explicação
dessa analogia é feita, descobrir-se-á ser um exercício vazio, que
qualquer outra versão ao acaso não iluminaria (revelando, portanto,
a sua falta de eficácia e poder explicativo da obra literária em
questão). O mesmo ocorre com os gráficos de “percursos”
propostos para os livros de Kafka ou Anna Karénina (uma
pobre imitação, e sem humor, das famosas shapes of stories
de Vonnegut, que cita nominalmente), tentativa de ir desvendando o
rosto de Anna Karénina através dos mais variados símiles (um
retrato-robot policial, o rosto de Keira Knightley na adaptação
cinematográfica, várias Gibson girls, e por aí fora.
Karénina é mesmo o leit-motiv desta pequena obra, o fio
vermelho que conduz todas as considerações sobre visualização, e
é claro que a sua incompletude e nebulosidade é um ponto forte, uma
vez que deve sempre manter-se enquanto promessa no futuro,
incitamento à releitura, e não uma descoberta finita.
É
uma pena que nebulosidade esteja igualmente presente no pensamento e
na sua estrutura.
Nota
final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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