Como noutras sociedades
ocidentais, a francesa e a portuguesa entende bem o que significa do fluxo
migratório dos corpos dos cidadãos urbanos rumo à beira-mar por altura das
férias de Verão… Todavia, grande parte das pessoas sabe igualmente que esse
prazer prometido encerra em sim mesmo um bom número de escolhos – filas de
trânsito, combates em busca de espaço suficiente no areal, refeições que
correspondam ao sonhado, um convívio mais apertado que o costume com os membros
da família, a difícil instalação de rotinas passageiras, etc. – mas que se
enfrentam na ideia de que, ultrapassados, se desvendará a Terra Prometida: o
Descanso. Vive la marée! não é de
forma alguma o hino a essa aventura, com o tom heróico e positivo que isso
pareceria acarretar: é antes a constatação da patetice desses mesmos
obstáculos. (Mais)
Há notícia de que este livro foi
sendo pré-publicado no diário Sud-Ouest,
provavelmente na estação balnear, o que faz imaginar que os seus leitores
abririam as páginas para um pouco glorioso mas não menos magnífico espelho da
França em tronco nu e chinelos de enfiar no dedo. Não deixa, ainda assim, de se
revestir de algum tipo de discurso elogioso de uma simplicidade, de uma parvoíce
(no sentido etimológico da palavra, de “coisa pequena”) em torno da silly season.
Uma das personagens, um dos
veraneantes que deambula pela praia, mãos atrás das costas e observando os
outros, estendidos, jogando à bola ou na água, diz “tudo muda, nada muda”. Recorda
um verso de Ovídio (“tudo muda, nada perece”) e é uma máxima que pretende
mostrar a mutação das contingências na perenidade da natureza. E de facto, há
qualquer coisa de permutável ou combinatório em todas estas personagens, como
se fosse menos importante saber os nomes próprios, as biografias e as
especificidades do que a capacidade que elas têm de cumprir uma função, a qual
não apenas poderia ser desempenhada por outra pessoa qualquer como também seria
substituível por outra: o pai de família de classe média, o homem de negócios
que os traz para a praia, a mulher stressada com o que há-de cozinhar, os
filhos obcecados com a tecnologia ausente na estância, os snobs que julgam todo o mundo, o gordo que não quer fazer nenhum, a
boazona que não quer ser incomodada por ninguém, o bando de adolescentes que
quer incomodar todo o mundo, a criança que se maravilha com construções na
areia, o adulto que se maravilha com construções na areia… Nenhuma destas
personagens ganhará um maior protagonismo, nenhuma delas assumirá um papel mais
tenso, nenhum dos acontecimentos, dos mais triviais aos mais (quase)
espectaculares, se tornam particularmente centrais. Tudo vem e tudo vai. O mar
faz assentar qualquer acidente na areia e a espuma acaba por se dissipar.
Se bem que não possamos cobrar
uma comparação directa, uma vez que há aqui uma dispersão por uma pletora de
protagonistas, dos quais nos afastamos e aos quais regressamos em movimentos
ondulatórios, a verdade é que Vive la
marée! recorda-nos o humor dos filmes de Jacques Tati, por construírem
grande parte das piadas na própria matéria visual, no seu sentido holístico, e
por colocar a “faixa textual”, e até mesmo a “intriga” num plano secundarizado.
Quando falamos da visualidade
holística, queremos dar a entender que não tem a ver somente com a figuração, a
cor, os pequenos apontamentos subtis de expressão ou de caracterização que
tornam Vive la marée! numa
maravilhosa e sarcástica galeria de retratos sociais, atravessando todas as
paisagens de classes e papéis culturais daquele país. Tem a ver com tudo isso
amalgamado num contínuo olhar, como se a sua traduzibilidade cinematográfica
fosse uma câmara que, num plano contínuo, dançasse uma valsa à volta desta
turbamulta diversa. Uma das características do humor de Jacques Tati estava na
forma como ele empregava a imagem cinematográfica enquanto um espaço de duas
dimensões. Ao invés de criar uma ilusão de profundidade, Tati apostava na
bidimensionalidade dos seus planos: daí que os batentes de uma porta se pudessem
transformar num par de chifres sobre Hulot, e assustasse quem se aproximasse da
porta, mesmo que fosse impossível a essa mesma personagem, no espaço ficcional
euclidiano dessa história, pudesse ter acesso a essa confusão. Quer dizer, Tati
criava uma piada que apenas fazia sentido visual para o espectador na sua própria posição de espectador.
Uma outra pista que nos
permitiria essa comparação é o facto de que os textos são quase inconsequentes.
É verdade que os podemos ler e compreender melhor ou mais inteligivelmente do
que os diálogos murmurados por Hulot e os seus companheiros de fortuna. Mas as
frases nem sempre são absolutamente sólidas. Incompletas, fiapos de discussões
ou diálogos de que nunca ouviremos o início exacto nem a sua conclusão,
saltamos de foco de atenção em foco como se nos levasse uma brisa leve. E é
nessa “distracção” de flâneur que nos
é imposta como condição que criamos um círculo em torno desta praia. Encerrado
num dia, e numa unidade temporal ladeada pela “chegada” e a “partida” ao fim do
dia, ainda assim não se coalesce numa trama unilinear (apesar dos fiapos que
regressam aqui e a ali), mas antes numa sequência, em cadência, de cenas
desirmanadas.
Dois pintores camarários terminam
de pintar uma cancela de ferro acompanhando os arabescos de um adolescente num skate. Uma criança sobrepõe a sua
forminha-comboio para a areia sobre o comboio turístico. Um homem tenta ligar
as linhas brancas desenhadas pelo sol no seu pé com a linha branca do fato de
banho de uma mulher à sua frente. Uma menina gesticula toda a paisagem à sua
frente para descobrir que a tacteabilidade virtual/digital não tem lugar no
mundo fenoménico. Se começamos com uma família viajando no carro, somos levados
subitamente pelo compartimento do comboio que se lhes atravessa à frente, para
depois mergulharmos na paisagem da praia que é visível pela janela. Na praia,
acompanhamos uma pessoa a mergulhar, mas voltamos à praia com outro que sai da
água. Se nos aproximamos das rochas pela preocupação de uns pais com o seu filho,
voltamos ao calçadão com outro pai que se afasta de camarão na cabeça… Há um
total marulhar de acção em acção que segue ritmos próprios de todas as linhas
desenvolvidas por todas estas personagens.
Os chistes desta natureza são
inúmeros e nenhuma tentativa de écfrases lhes faria justiça. Além disso, tendo
em conta o ritmo com que surgem, a forma como se tecem por vezes umas nas
outras, já para não falar dos trocadilhos entre sentido e associação (uma fala
que se refere ao objecto x, mas pela sua contiguidade acaba por se ligar a y,
criando um sentido apenas inteligível ao leitor, na sua própria posição de leitor), Vive la marée!, tal como os Verões na praia de cada um, não são
transmissíveis, mas experienciáveis individualmente e apenas, logo evolados, nesse
mesmo momento.
Nota
final: imagens colhidas da internet.
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