Estimulante coincidência esta de que o livro de que falámos, Nau negra, também da El Pep, partilhe
com estoutro a possibilidade de ser vistos como “ficção historiográfica”.
Todavia, a linha de ficcionalidade de O
Infante é bem mais elástica do que o livro de Fernando Relvas, que se
ancora na realidade do tecido histórico para reforçar as alianças éticas
implicadas na sua narrativa, ao passo de que no de Viçoso o propósito seja
antes o de criar um ambiente brumoso, cujas referências sejam apenas o
suficientes para a partir delas despedir um feixe de associações, mas sem
preocupações demasiado concretas. (Mais)
Afirmamos isto, porém, um pouco a medo, uma vez que
acreditamos que essas referências são, como dizemos, “brumosas”, e não ligadas
com exactidão à História do Portugal. Caso contrário, revelamos aqui uma
ignorância inultrapassável. Não existem em O
Infante nunca elementos diegéticos concretos, nem nomes nem datas nem
locais com precisão. Fala-se do rei e da rainha, do infante e do escudeiro, espalham-se
objectos, imagens e fios mas que não permitem jamais capturar uma certeza. Sabemos
que a história se passa num reino “à beira mar plantado”, que é velho, que o
português é a primeira língua do infante, e que esta deriva de um “português
antigo quase galaico”. Reconheceremos, claro está, as paisagens de Lisboa, de
Sintra, e os rostos que compõem a nossa história política e cultural: Afonso Henriques,
Camões e Sebastião, figura espectral que surge nas visões do protagonista. Há
um Ultimatum, e soldados que desferem
um golpe final na narrativa. Aparece brevissimamente uma referência a um jornal
satírico ilustrado, à la Bordalo. Mas não surge jamais um nome específico,
palpável. Pelo estilo vago, poderíamos imaginar estarmos na passagem do século
XVIII para o XIX, e a aparição de soldados parecidos com os franceses
napoleónicos, admitiria que pensássemos em D. João VI e Carlota Joaquina como
os regentes do reino, e a sua prole antes da fuga para o Brasil (até pelo que
se diz no texto), mas as representações físicas não correspondem com as figuras
históricas, tal como não corresponde a família. Ou então, pensar em D. Pedro IV,
ou outras hipóteses…
Além disso, a autora cria com este pequeno livrinho uma
espécie de ligação directa a um sentimento patriótico, mas que serve para fazer
um acelerado passadouro para um género e estilo de banda desenhada usualmente
arreigado da nossa realidade nacional. Repare-se como a capa e contracapa são
ocupadas com ilustrações de um preciosismo tremendo, seguindo padrões e
estruturas típicas da azulejaria em painel de estilo rococó, de azul-cobalto em
fundo branco (que na reprodução faz imaginar ser um obsessivo rendilhado em
esferográfica, mas cujas linhas são mais delicadas e ténues) mas procurando
referências tais como as janelas manuelinas, a filigrana minhota, e a cartela
de motivos vegetais, marinhos e animais encerrando os dois protagonistas, tudo
isto uma espécie de assemblagem de elementos tipificados da arquitectura e
decoração portuguesa. E como utiliza a primeira estrofe d’Os Lusíadas (quebrando, porém, a longa primeira oração do poema,
que não permite esta divisão selvagem) como epígrafe, e ainda decora as guardas
com objectos vários, e ainda as páginas capitulares com triunfos imaginários
agregando mais elementos (querubins, o Anjo Custódio, o escudo afonsino, coroas
e cornucópias, esferas armilares e conchas, etc.).
Mas, como estamos em crer, a autora está menos interessada em
criar um tecido histórico exacto do que antes um ambiente elástico para se
tornar receptivo de algumas noções alegóricas e, até, “mágicas”. Afinal de
contas, Daniela Viçoso está aqui a dar continuidade a alguns dos temas e
ferramentas que já havia explorado quer a solo quer em colaborações em fanzines. Deixarei para os especialistas as diferenças que existirão entre o yaoi e o june, mas o facto de a autora preferir o descritivo, no cólofon, de
“Boy’s love”, é bastante claro sobre a matéria e o género pretendido com O Infante. Este é um livro sobre o amor
de duas personagens masculinas e a sua integração numa ideia histórica é tão
importante quando A princesa e o cavaleiro,
de Osamu Tezuka, ou A rosa de Versalhes,
de Riyoko Ikeda.
O infante sem nome nasce no meio dos desejos da sua família e,
sendo o benjamin, é tratado com um carinho diferenciado. Além do mais, esta
família real é tratada de uma maneira romântica, onde impera apenas o amor e
uma proximidade que não terá sido nunca real. E nunca há associações ao “peso”
da realidade diária. Apenas nos centramos na sua entrega ao jovem escudeiro,
que passa a ser o seu companheiro e, paulatinamente, objecto de amizade intensa
e mesmo amor. Outros escreveram muito sobre que tipo de emoção e sexualidade
está latente neste género, que tem menos a ver com fantasias titilantes, pornográficas
ou sexualmente explícitas (não há qualquer cena desse tipo, e apenas se dá um
único beijo casto, mãos dadas, cabeças no ombro e um abraço dramático) do que
uma espécie de projecção de um intenso amor que se expressa de forma bem
diversa daquela necessidade, digamos assim, da procriação ou do olhar da
pressão social. Algo “puro”, universal, intocado por qualquer imperativo da
realidade, inclusive o da carne, e que muitas vezes se torna um obstáculo de
incompreensão aos não-leitores do género. Por outras palavras, Daniela Viçoso está mas interessada em demonstrar-nos como consegue fazer duas personagens se enlearem emocionalmente uma com a outra do que construir uma espécie de "revelação chocante" sobre algum dos nossos monarcas...
Viçoso continua a debuxar então as suas personagens masculinas
jovens e semi-impúberes, capazes de mergulharem os olhares uns nos outros de
forma a aceder a um sentido jamais expresso por palavras. A autora tira partido
também, com sapiência, de todas as composições de página, introdução de
elementos “decorativos”, cenas “em silêncio”, vinhetas ligeiramente
descentradas das personagens para assinalar o isolamento, ou então centradas
num pormenor e um toque. Se a intriga da história é, no fundo, quase diáfana e
desimportante, suficiente apenas para percebermos as hierarquias de poder e os
acontecimentos que forçam os movimentos das personagens, é sobretudo nos
não-ditos que se vão reforçando os elos amorosos entre o infante o escudeiro.
A autora encontrou neste livro um projecto mais concentrado e
dirigido em relação aos seus trabalhos anteriores. Em vez de pensar num worldbuilding complexo mas a que nos dá
acesso somente em trechos incompletos, difíceis de sustentar no nosso “mercado”
ou mesmo “circuito” de fanzines, este volume fechado apresenta-nos uma peça
clara, completa e equilibrada em si mesma. É também um encontro particularmente
feliz entre um estilo afecto a maiores fantasias e depois este ancoramento,
mesmo “nebuloso”, na realidade portuguesa. É na sua singeleza e até mesmo
qualidade de leve distracção – a falta de concretude de informações diegéticas
e de maior especificidade dos factos, dos diálogos, etc. – que O Infante surge como um sólido gesto
autoral.
Nota final: imagens cortesia do editor.
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