21 de março de 2006
... de ellas. AAVV (Ediciones De Ponent)
Com esta publicação espanhola, uma antologia dirigida por Felipe Cava e que incide sobre 13 autoras contemporâneas de banda desenhada, mais uma vez retornamos às questões do género, não os “géneros de narrativa”, mas os do sexo das criadoras implicadas. Avançam-se também outros projectos, nacionais, que tentam revisitar esta questão, a meu ver espatafúrdia, da “mulher na bd”, ou pior, “a bd no feminino”... Quando essas publicações surgirem, delas falaremos. Três tristes exemplos, primeiro.
Num dos últimos festivais da Amadora, houve uma exposição dedicada à "Mulher na Banda Desenhada". Juntava-se Roberta Gregory, uma autora norte-americana cuja obra se reveste de uma ácida punção política e sexual, às inanidades boçais das mulheres-objecto de Manara (quem não se masturbou com os seus álbuns que atire a primeira pedra com a mão livre, mas já não somos adolescentes em fúria de descoberta), fazia-se um paralelo entre personagens como a “Mafalda”, de Quino, que vive de um contexto de contestação política directo, mordaz, de esquerda, de uma longa tradição de humor sobre o actual, com a “Mônica”, de Maurício de Sousa, que apenas vive nas pequenas comédias de situação de uma banda desenhada de cariz infantil, e pouco mais, juntava-se a atenção pelas mulheres em Crumb (sobejamente acusado de misoginia), em Pratt (cuja função é viverem eternamente à espera de um Corto que não se decide, mole como é), e depois uma série de autoras cujo trabalho não poderia ser – felizmente! – o mais diverso possível entre elas, mas precisamente de tão diverso que o facto da “feminilidade” acabava por se dissipar por completo. Tratava-se, muito francamente, de uma terrível salada epistemológica, se não mesmo do pensamento...
Um dos últimos BDJornal dedica algumas páginas ao erotismo, com alguns interessantes artigos de Machado-Dias, sobretudo o que se centra em Crepax, um verdadeiro pioneiro em usos estruturais inventivos da prancha na sua obra, mas artigo(s) que peca, mais uma vez, por trazer tudo à colação, por misturar obras de sinais e valores muito diferentes. Por exemplo, ter-se falado do erotismo homossexual, masculino e feminino, teria sido um ponto interessante, mas este, como outros, é um meio maioritariamente homofóbico. A inclusão de um artigo sobre estatuetas de super-heroínas e de uma “nova autora portuguesa” cuja banda desenhada não é “feminista” (já lá iremos) parece confirmar esta “ideia vaga em voga” de “mulher”... O artigo de Sara Figueiredo Costa sobre Anke Feuchtenberger é o único a escapar dessa terrível atracção gravitacional pelo... buraco negro.
Finalmente, e não há muito tempo, um dos articulistas sobre banda desenhada em Portugal dedicava algumas ideias em torno da ideia da mulher na banda desenhada, revelando não só uma ignorância tremenda (em relação à criação, à produção, ao consumo, até mesmo aos estudos existentes sobre esta área específica) como caindo em perigosas concepções do papel da mulher, demasiado generalistas, abusivamente construídas para transmitir uma ideia feita, e que acabava quase na ideia de que este era um modo de expressão da qual as mulheres viviam afastadas, quer como autoras quer como leitoras. Trata-se de um caso óbvio de “cegueira aspectual”, totalmente assente nos ombros desse escritor, e que temo seja uma cegueira que recai sobre toda uma ideia feita do que é a “Mulher”.
Tudo isto, é como quem diz, que basta haver grandes protuberâncias mamárias à vista que já estamos nesse território da “banda desenhada no feminino”. Mas isso seria o mesmo que ficar preso num monólogo, não da vagina, mas com os olhos postos nela: e a vagina não é signo de nada, a não ser de si mesma. O sexo não é determinante de nada em termos criativos. Apesar de se poder acreditar, com William S. Burroughs, que de facto as mulheres pertencem a uma espécie extraterrena radicalmente diferente da dos homens, nada disso nos permite aceitar uma espécie de equação que identifique o facto de uma determinada artista (ou qualquer outro papel social) ser uma mulher com o de expectáveis significados, temáticas, comportamentos. Deve isso ser ponderado de uma forma atenta e equilibrada em relação às artistas em concreto. A pertença ao género feminino não é tão determinante em Vieira da Silva como o é em Louise Bourgeois, nem em Kathryn Bigelow como em Agnès Varda, ou em Jill Thompson como em Phoebe Gloeckner, mas no caso das artistas dos segundos termos não se pode, obviamente, esgotar as suas forças nessa mesma pertença. Usualmente, quando se parte desse pressuposto esquece-se que, antes de serem mulheres, estas artistas são pessoas e, enquanto pessoas, indivíduos singulares, únicos e inalienáveis. Mas como já o apontara ao de leve a propósito de Vanessa Davis, há nas artistas “do feminino” alguns aspectos recorrentes, de que falaremos a seguir.
Não quero entrar aqui numa espécie de “elogio à mulher” ou essa patética busca pelo “eterno feminino”, digno de serões aculturados e tisanas, que tresandam a hipocrisia e machismo disfarçado. Essa parece ser uma estratégia de sedução ao contrário, em busca das incautas... Se falo de “feminismo”, não me refiro a um movimento ensimesmado que se esgota num qualquer “ódio ao outro” (ideia feita que não corresponde, porém, a qualquer realidade). Todos nós pertencemos sempre a um círculo determinado e limitado, e as preocupações que unem o combate das mulheres das sociedades contemporâneas ocidentais, maioritariamente brancas, judaico-cristãs, e usualmente de uma classe social média ou elevada, não coincidem ponto por ponto com as da mulher chinesa, com as das mulheres da África subsaariana, e muito menos com as mulheres Minangkabau, da Sumatra. Porém, tendo em conta a presença cada vez mais globalizada de certos “valores universais” (os “nossos” impostos a “todos”), o combate vai tornando-se cada vez mais uno e necessário. Por outro lado, também não deverão entender as minhas palavras como um disparate qualquer, numa espécie de afirmação que as autoras, por serem mulheres, devem escolher este ou aquele tema ou esta ou aquela estratégia, sob pena de não se tornarem “interessantes”. Longe disso. Um autor não deve fazer nada, faz o que fez. Simplesmente estarei a tomar partido estético sobre uma “família” de autoras, uma tradição, uma orientação, se preferirem, na qual vejo (interpreto) a assunção de uma possível ideia do “feminino”.
Quando é uma mulher feminista? Quando é que uma autora o é? O problema, notar-se-á de longe, é a mistura de dois vocábulos que nada têm a ver um com o outro. “Feminino” e “Feminismo”. O primeiro trata-se de um denominador comum, um facto biológico (aleatório ou programado, conforme a escola): a meu ver, qualquer junção de autoras, seja numa exposição, numa antologia, num documentário, pelo simples facto de serem mulheres, não me interessa, e acho mesmo perigoso e contraproducente, pois subitamente poderão ser colocadas duas posições ideológicas contrárias numa mesma plataforma (Roberta Gregory e Manara) que, ao invés de se fortalecerem mutuamente (como no combate da arte, em Heidegger), uma vez que não estabelecem qualquer diálogo ou discussão, mas simplesmente se anulam (pior, pois o combate de Gregory ao status quo de que Manara faz parte torna-se cancelado pela própria presença do trabalho desse autor; e não me falem de democracia, que ela não existe nas artes).
O feminismo, por sua vez, é um combate, uma posição política, uma atitude perante um estado das coisas no qual se encontram insuficiências e deficiências. Neste caso, a indisfarçável condição inferiorizada das mulheres na sociedade. Esta situação repercute-se em salários, condições de trabalho e oportunidades – que não têm necessariamente de ser “iguais” -, direitos do quotidiano, discursos públicos... O território da banda desenhada não é uma excepção. Uma questão premente da actualidade é, por exemplo, a das quotas no parlamento português. Digo apenas isto: se se trata de uma questão ridícula e que impede as mulheres de subirem “pelos seus próprios méritos” (cito uma eminente figura política portuguesa, mulher), então só posso entender que todos os partidos com representação parlamentar não possuem nas suas fileiras mulheres suficientemente inteligentes e merecedoras de posições de destaque, pelos seus números. As quotas podem ser ridículas, as mostras podem ser ridículas, as antologias de mulheres podem ser ridículas, mas são absolutamente necessárias para corrigir o “padrão médio”, que é eminentemente masculino. O problema mais grave, parece-me, é confundir esses gestos de atenção, no nosso caso, pela “bd no feminino” e partir desse mero facto biológico, que leva a mal-entendidos e confusões atrozes.
Como disse, o que me importa mais é olhar para uma certa linha de criação de banda desenhada, não somente criada por mulheres, mas que envolva temas femininos, ou melhor, feministas; um gesto, portanto, político. E, de acordo com uma criadora de banda desenhada nossa conhecida, a escolha pela criação de bandas desenhadas que exponham a vida de uma mulher é já em si um gesto político e, obviamente, feminista. Ora, é aqui que eu encontro “temas recorrentes”. Não se trata de uma diminuição a “imaginários comuns”, “crónicas femininas”, “preocupações de mulher”. Trata-se de uma estratégia e de uma escolha múltipla, individualizada, potente, mas que faz emergir linhas de significado comuns, campos de acção semelhantes, alvos e fitos similares.
Podem ser derivados da própria condição do corpo feminino: o período, a maternidade, doenças “do foro”. Como disse já antes, se os homens vivem geralmente obcecados com corpos, é com os dos seus objectos de desejo; as mulheres envolvem-se por uma auto-obsessão, esta explode de dentro para fora (literalmente, como no assustador sonho-sobre-um-período-hemorrágico de Julie Doucet, em Heavy Flow). Outros relacionam-se com o corpo, mas já sob o peso das expectativas do “desejável”: questões de gordura, de pêlos, de beleza, de velhice, de modas e comportamentos. Outros prender-se-ão com as expectativas sociais, académicas, de carreira profissional, artística, das relações com os outros, os homens, as outras mulheres, a fuga dos papéis reservados (mãe, esposa e puta), o facto de nunca, nunca, deixarem de ser vistas como, em primeiro lugar, “mulheres”, em vez de “pessoas”. Este tipo de discursos já foi estudado por muitos críticos, dos quais destacaria, óbvio, Trina Robbins e Ana Merino. Mas eles estão presentes e são verdadeiros e são eles que merecem a nossa consideração, visão, um exame crítico e consciente. Não basta abrir um saco e dizer, “banda desenhada de mulheres”. É por isso que, até certo ponto, e para falar somente de nomes portugueses, eu posso agrupar e ver uma linha de combate político em Isabel Carvalho, Alice Geirinhas, Ana Cortesão, Teresa Câmara Pestana, e, num patamar diferente, Joana Figueiredo e Mulher-Bala. Mas não colocaria Vera Tavares, Susa Monteiro e Maria João Careto nesse grupo. Estas três últimas são mulheres, sim, femininas, claro, mas não elaboram esse trabalho “feminista”, essa escolha do político. Não se trata de uma hierarquia, nem de um juízo de valor estético. Cada uma e todas estas autoras são livres de fazerem o que bem entenderem, e o que desejo é que o façam bem. Tão-somente falo de ser necessário distinguir os territórios de acção.
Convenhamos que o livro em questão nem sequer toca esta tecla, nem com mestria nem mal. É um instrumento totalmente diferente. É muito simplesmente um projecto editorial de Felipe H. Cava, um convite directo a um punhado de ilustradoras, designers gráficas e autoras de banda desenhada de quem ele gosta, e a quem pediu trabalhos inéditos. Mas essa “falta de mestria” que eu indico talvez não seja justa, já que mesmo que tenha avançando estes propósitos políticos, não posso obrigar – era só o que faltava! – um editor a procurar um caminho análogo. A escolha é pessoal, e isso é interessante em si. No entanto, não fico surpreendido por nenhum dos trabalhos incluídos, apesar de se encontrar a excelente Giandelli. Mas há uma excepção: Isabel Carvalho. Não se trata do seu trabalho mais acabado, de modo algum... Isabel Carvalho “abandonou” oficialmente a banda desenhada, tal como Ana Cortesão e Alice Geirinhas o haviam feito, em Portugal. A sua carreira enquanto artista plástica – não obstante a figuração e a fabulação se manter “a mesma” que nas bandas desenhadas de A Língua, Satélite Internacional, etc. -, por outro lado, tem-se reforçado. São três desenhos (que ocupam cinco páginas) que mostram crianças de ambos os sexos a brincarem na neve, de um qualquer idílio alpino... Cai um arco-íris, o sol brilha por entre as nuvens brancas, a neve derrete, brilham estrelas de luz nos reflexos dos olhos das crianças e nos enfeites de Natal. Quase todas sorriem, brincam, partilham rebuçados. Mas algumas queimam presentes, brincam com machados ameaçadores, torturam os bonecos de neve, que súbita e horrorosamente parecem vivos, simplesmente para que possam ser mortos. Penso que já disse isto uma vez, mas é como se se tratasse de um mundo feito de açúcar, brilhante e doce para melhor esconder a cárie podre por baixo. Depois, um último desenho, de um “desenho impossível”, de um casal de crianças pintando uma pintora que pinta um quadro de um gato “kitsch”. E duas frases-manifesto: “Não tem piada? Por que deixei de fazer bd? Porque é uma coisa de rapazes! Este é o meu primeiro trabalho pago depois de oito anos a desenhar bd. Perguntem aos meus colegas autores de bd o que eles pensam sobre o assunto!” É, portanto, uma espécie de desabafo em relação ao inexistente “mercado” nacional, à “vesga” (ou mesmo “cega”, salvas raras excepções?) opinião que por cá passa como “crítica”, e à geral, acéfala e acriteriosa transumância de públicos... Não deixa, porém, de estar presente a conhecida atitude ácida de Isabel Carvalho em relação às expectativas usualmente relacionadas com a esmagadora maioria da produção deste modo de expressão, e que passa precisamente por uma crítica dos papéis sócio-sexuais e das compartimentações mais banais tipificadas na maioria dos círculos das nossas sociedades. Um artigo de Ana Merino revela preocupações, numa acção teórica, muito similares.
Dou-vos uma arma de arremesso a estas mesmas palavras: porque é que não falo nos mesmos termos sobre os autores homens? Não existirão temas recorrentes, específicos, etc.? Sim, penso que existem, e seria interessante tentar identificar algumas dessas linhas de força raramente discutidas. No entanto, tendo em conta que o “princípio básico” é masculino, caucasiano e heterossexual (e outros etcs. – até mesmo o símbolo infográfico básico para “pessoa” cai nesta categoria, trabalhando as diferenças depois), e tudo o resto é visto como minorias, esses mesmos “círculos minoritários” serão sempre obrigados a discursos “outros”, “alternativos”, “resistentes”, “minoritários”, “línguas menores” para se fazerem ouvir, representar, e ocupar o seu espaço de direito. E ainda temos muito que caminhar até podermos afirmar o fim dessa realidade, talvez nunca o atinjamos, pois sempre se desdobram novos Outros dentro do Mesmo, felizmente. Pois as nossas tratam-se de sociedades cujo materialismo invade áreas ora antes imaculadas ora não tão conspurcadas (relativamente, todavia) – o corpo, novamente, como o maior exemplo -, mas que mantêm princípios patriarcais, tradicionalistas, conservadores, dogmáticos... A gravidade dessa gélida realidade é, mais do que a homogeneidade falsa, a imposição de supostos valores éticos (que jamais é um sinónimo de “universal”) sobre todos os demais. Usualmente trata-se de um aplanamento, e sempre de acordo “comigo/connosco” como modelo. É essa “alteridade” de um feminino de resistência de que vos falei – que se juntará a outros discursos - a que sempre possuirá forças superiores àquelas vozes que se agregam à hegemonia por enquanto em vigor...
Estas artistas, ao combater esses papéis falsamente impostos, apenas acabam por revelar aquilo que o verniz esconde, e é um gesto, a um só tempo, afortunado e perigoso. Mas para citar o título e a linha de um conto de Gong Ji-young (uma escritora feminista contemporânea sul-coreana, recentemente traduzida para inglês), nada disto reflecte uma espécie de hierarquização que se tenta estabelecer entre as pessoas, mas simplesmente e acima de tudo, uma questão de “Decência Humana”.
Nota: agradecimentos a Isabel Carvalho, que me passou um exemplar, e pelas contínuas discussões; e a Cláudia Castelo, pelas conversas e alertas.
19 de março de 2006
The Complete Peanuts 1955-58 (Vols. III & IV). Charles Schulz (Fantagraphics)
É algo de deslumbrante a possibilidade de redescobrir algo que pertenceu à infância e descobri-la irremediavelmente perdida, porque somos adultos agora, mas dar-se-nos desse modo um acesso a uma transfiguração tal que é uma felicidade, e não por acaso. Nada disto tem a ver com nostalgia, se a entendermos como o desejo de não perder algo que julgamos “precioso” da infância e que pugnamos por jamais perder, pagando o seu mais alto preço: ficar-se preso numa cegueira aspectual também ela eterna.
Para se ser absolutamente correcto, no caso de Peanuts, ou Carlitos ou Charlie Brown, não se trata propriamente de uma redescoberta, já que nunca antes eu lera as tiras dos primeiros anos, mas apenas o material que foi sendo publicado, tardiamente, em Portugal nos jornais ou nos livros e álbuns a cores. Estou perante a redescoberta de um memorial – um cenotáfio, como veremos – de algo perdido através de uma nova exposição. (Mais)
15 de março de 2006
Zines d’arte. AAVV (Nieves)
No seguimento de algumas das linhas temáticas deste blog, nomeadamente aquelas que perseguem publicações que vivem numa raia entre uma banda desenhada mais “clássica”, legível, narrativa, e um campo mais amplo da experimentação artística, que ocorre naquilo que se pode ver como fanzines, livros de autor, experimentos ou publicações generalistas de arte, farei aqui uma breve apresentação de quatro objectos gráficos, de artistas/ilustradores/banda-desenhadores recentemente publicados, por uma plataforma de livros artísticos, a suíça Nieves.
Nenhum destes títulos apresenta aquilo a que se poderia dar o nome de “história” ou de “narrativa”, de um modo consensual, e apresentam-se como colecções breves de desenhos soltos, esquissos, exercícios de última hora, meros gatafunhos sem sentido, elaboradas explorações de texturas, padrões, ritmos gráficos, ambientes oníricos que possam ser criados pela associação de dois termos, até ao momento, indissociáveis. Nada disto significa que não possa surgir uma associação feita por cada leitor que o faça aceder a um sentido geral, uma sugestão de sentido, uma “leitura” una e coesa. É isso o que a “série”, no seu sentido artístico, permite fazer.
Lispering, Josh Petherick
Este é na verdade um catálogo, de 13 páginas ilustradas, de uma exposição de ilustrações de Petherick, artista visual que trabalha num território plástico muito próximo daquele que abunda no mundo da banda desenhada. Algumas das páginas são populadas por duas ou três “criaturas” coloridas, pedaços de rosto sob rodas, ou nuvens coloridas com pés quebrando montanhas, cuja sugestão pode terminar na contemplação delas mesmas, como poderão servir a fins mais pessoais da parte do espectador. Mas outras (3, estando aqui presentes 2) são bem mais densas, cheias de personagens que poderemos reconhecer surgirem em muitos pontos da prancha – um músico jovem, uns pássaros assistentes de
bigode, um outro músico, maior, barbudo, nuvens personificadas...
Por que não estabelecermos relações entre estas figuras recorrentes e elaborar uma espécie de conto folclórico, apoiado até por informações visuais de arquitectura, tipos de instrumentos e de vestes e outros detalhes? Ajudar-nos-á essa leitura a aceitá-lo no “nosso” campo?
It Looks Like a Smile, Geoff McFetridge
Tal como no caso anterior, este é um catálogo dos trabalhos de Geoff McFetridge, que faz serigrafias e outros trabalhos artísticos na área da impressão, ou exercícios ainda mais ilusórios. Os seus desenhos são também muito estilizados, tal como Petherick, mas de contornos mais suaves, e um trabalho de cor mais livre (notando-se por vezes o que parece ser colocação com canetas de feltro). Apresentando-se um poema final, que inicia o primeiro verso com as mesmas palavras do título da publicação, o seu tom algo infantil, mas de uma moral verdadeira e cautelosa (a de que todos os sorrisos têm dentes por baixo), é como se o autor nos alertasse para que nenhuma das suas imagens amenas nos engane, e saibamos ver o que pulsa, perigoso, sob elas. Esse tom infantil, e até mesmo o seu estilo, faz recordar o mestre ilustrador Eric Carle, famosíssimo autor norte-americano, mas outros tantos exemplos poderão antes apontar a Heinz Edelmann, o ilustrador e designer que deu vida ao filem Yellow Submarine, com ou dos The Beatles.
Os corpos que aqui vemos numa brevíssima sequência parecem explodir com esses dentes que sorriem... e mordem.
Nimb Skills, Nicola Pecoraro
Numa edição limitada a 100 cópias para todo o mundo, este zine tem uma trintena de páginas e uma infinitude de virtudes. É impossível querer fazer-lhe um retrato, pois não consegue estar parado em frente da câmara: desenhos humorísticos, outros mais sérios, uns absurdos, outros bucólicos, outros (como esta imagem aqui) descambando numa catadupa de personagens, linhas de fuga e acumulação de objectos, que tem tanto de marcial como de justificação das influências variegadas que compõem as ideias e as práticas do artista . No cólofon desta publicação indica-se que a arte é composta por “textos e fotografias”, mas não há traços dos primeiros nem das segundas... São apenas desenhos, a menos que cada um destes desenhos deva ser entendido ora como instantâneos fotografados nalgum mundo onde a hostilidade se transmite por via do desenho, ora como textos por si só que podem ser lidos enquanto sugestões de mundos outros, como as aqui discutidas de Suzuki, ou ainda mais violentas, as de um “eroguro mangaka” como Toshio Saeki. O eroticismo, porém, é como o vocábulo nimb, quase-lesto, mas nunca completo...
The Beatles, Mordillo and Vasarely, Dimitri Broquard
O título parece-me ser claro, e remete-nos a um gesto idêntico ao de Pecoraro (e doutras publicações) em, num só espaço, deixar conviver referências de áreas diferentes, que sempre se julgaram arreigadas umas das outras, mas afinal temem a existir numa só coisa, a que se pode dar o nome de Cultura. Quer Paul McCartney esteja morto quer não, a verdade é que podemos crer na existência de uma conspiração contínua em querer manter essas mesmas áreas o mais separadas possível, através de linhas de policiamento académico, quando na verdade, basta adormecer para deixar as barreiras se derreterem e, com elas, os territórios. Por isso, as ilusões de Vasarely bem podem coincidir com o fundo das paisagens urbanas de Mordillo, pelos seus pequenos quadrados, onde não se passa nada a não ser uma cor à qual tanto se pode negar significação como carregá-la até se apagar. Em Strawberry Fields Forever, canta-se “Nothing is real... but nothing to be hung about”. Talvez seja isso mesmo, não ter real absolutamente à mão, mas não se tornar isso fonte de preocupação, mas até de descanso (visual, mental, existencial), como essa paisagem no livro deste Broquard... No entanto, no meio dessa calma aparente, eis que se mexe uma assombrosa árvore ao fundo e, à esquerda, na margem do lago, o que parecem uns esquifes-casulos... Pistas tais como as deixadas por todo o lado pelos Beatles restantes ao Paul/Walrus, morto.
(O Richard Câmara aconselhou-me a colocar uma imagem do interior dos livros para que pudesse o leitor vislumbrar um pouco do que se escondia entre as capas. Era uma boa ideia. Mas como já terão entendido, não sou nada feliz na montagem gráfica deste blog. Eu não queria... a culpa é do Richard! A culpa é sempre dos outros. Desculpem.)
Nenhum destes títulos apresenta aquilo a que se poderia dar o nome de “história” ou de “narrativa”, de um modo consensual, e apresentam-se como colecções breves de desenhos soltos, esquissos, exercícios de última hora, meros gatafunhos sem sentido, elaboradas explorações de texturas, padrões, ritmos gráficos, ambientes oníricos que possam ser criados pela associação de dois termos, até ao momento, indissociáveis. Nada disto significa que não possa surgir uma associação feita por cada leitor que o faça aceder a um sentido geral, uma sugestão de sentido, uma “leitura” una e coesa. É isso o que a “série”, no seu sentido artístico, permite fazer.
Lispering, Josh Petherick
Este é na verdade um catálogo, de 13 páginas ilustradas, de uma exposição de ilustrações de Petherick, artista visual que trabalha num território plástico muito próximo daquele que abunda no mundo da banda desenhada. Algumas das páginas são populadas por duas ou três “criaturas” coloridas, pedaços de rosto sob rodas, ou nuvens coloridas com pés quebrando montanhas, cuja sugestão pode terminar na contemplação delas mesmas, como poderão servir a fins mais pessoais da parte do espectador. Mas outras (3, estando aqui presentes 2) são bem mais densas, cheias de personagens que poderemos reconhecer surgirem em muitos pontos da prancha – um músico jovem, uns pássaros assistentes de
bigode, um outro músico, maior, barbudo, nuvens personificadas...
Por que não estabelecermos relações entre estas figuras recorrentes e elaborar uma espécie de conto folclórico, apoiado até por informações visuais de arquitectura, tipos de instrumentos e de vestes e outros detalhes? Ajudar-nos-á essa leitura a aceitá-lo no “nosso” campo?
It Looks Like a Smile, Geoff McFetridge
Tal como no caso anterior, este é um catálogo dos trabalhos de Geoff McFetridge, que faz serigrafias e outros trabalhos artísticos na área da impressão, ou exercícios ainda mais ilusórios. Os seus desenhos são também muito estilizados, tal como Petherick, mas de contornos mais suaves, e um trabalho de cor mais livre (notando-se por vezes o que parece ser colocação com canetas de feltro). Apresentando-se um poema final, que inicia o primeiro verso com as mesmas palavras do título da publicação, o seu tom algo infantil, mas de uma moral verdadeira e cautelosa (a de que todos os sorrisos têm dentes por baixo), é como se o autor nos alertasse para que nenhuma das suas imagens amenas nos engane, e saibamos ver o que pulsa, perigoso, sob elas. Esse tom infantil, e até mesmo o seu estilo, faz recordar o mestre ilustrador Eric Carle, famosíssimo autor norte-americano, mas outros tantos exemplos poderão antes apontar a Heinz Edelmann, o ilustrador e designer que deu vida ao filem Yellow Submarine, com ou dos The Beatles.
Os corpos que aqui vemos numa brevíssima sequência parecem explodir com esses dentes que sorriem... e mordem.
Nimb Skills, Nicola Pecoraro
Numa edição limitada a 100 cópias para todo o mundo, este zine tem uma trintena de páginas e uma infinitude de virtudes. É impossível querer fazer-lhe um retrato, pois não consegue estar parado em frente da câmara: desenhos humorísticos, outros mais sérios, uns absurdos, outros bucólicos, outros (como esta imagem aqui) descambando numa catadupa de personagens, linhas de fuga e acumulação de objectos, que tem tanto de marcial como de justificação das influências variegadas que compõem as ideias e as práticas do artista . No cólofon desta publicação indica-se que a arte é composta por “textos e fotografias”, mas não há traços dos primeiros nem das segundas... São apenas desenhos, a menos que cada um destes desenhos deva ser entendido ora como instantâneos fotografados nalgum mundo onde a hostilidade se transmite por via do desenho, ora como textos por si só que podem ser lidos enquanto sugestões de mundos outros, como as aqui discutidas de Suzuki, ou ainda mais violentas, as de um “eroguro mangaka” como Toshio Saeki. O eroticismo, porém, é como o vocábulo nimb, quase-lesto, mas nunca completo...
The Beatles, Mordillo and Vasarely, Dimitri Broquard
O título parece-me ser claro, e remete-nos a um gesto idêntico ao de Pecoraro (e doutras publicações) em, num só espaço, deixar conviver referências de áreas diferentes, que sempre se julgaram arreigadas umas das outras, mas afinal temem a existir numa só coisa, a que se pode dar o nome de Cultura. Quer Paul McCartney esteja morto quer não, a verdade é que podemos crer na existência de uma conspiração contínua em querer manter essas mesmas áreas o mais separadas possível, através de linhas de policiamento académico, quando na verdade, basta adormecer para deixar as barreiras se derreterem e, com elas, os territórios. Por isso, as ilusões de Vasarely bem podem coincidir com o fundo das paisagens urbanas de Mordillo, pelos seus pequenos quadrados, onde não se passa nada a não ser uma cor à qual tanto se pode negar significação como carregá-la até se apagar. Em Strawberry Fields Forever, canta-se “Nothing is real... but nothing to be hung about”. Talvez seja isso mesmo, não ter real absolutamente à mão, mas não se tornar isso fonte de preocupação, mas até de descanso (visual, mental, existencial), como essa paisagem no livro deste Broquard... No entanto, no meio dessa calma aparente, eis que se mexe uma assombrosa árvore ao fundo e, à esquerda, na margem do lago, o que parecem uns esquifes-casulos... Pistas tais como as deixadas por todo o lado pelos Beatles restantes ao Paul/Walrus, morto.
(O Richard Câmara aconselhou-me a colocar uma imagem do interior dos livros para que pudesse o leitor vislumbrar um pouco do que se escondia entre as capas. Era uma boa ideia. Mas como já terão entendido, não sou nada feliz na montagem gráfica deste blog. Eu não queria... a culpa é do Richard! A culpa é sempre dos outros. Desculpem.)
2 de março de 2006
Bacter-Area. Keith Jones (Drawn & Quarterly)
Esta é uma daquelas obras que parece relançar novamente o tema – estritamente visual – das relações entre um suposto “fundo” e uma “forma”, tal como a questão do movimento e, logo, das relações espaço-temporais de um desenho, para já, e depois próprios da banda desenhada, isto é, em que os desenhos são estruturados com óbvias figurações actantes.
A forma, como banda desenhada, não pode existir senão como acto, de um ponto de vista fenomenológico; existem uma série de singularidades que organizam o espaço e compõem o tempo” (Cf. J.-P. Esquenazi, Film, Perception et Mémoire), e é a sua percepção, em movimento ela-mesma, que as estrutura como “momento abstracto”, precisamente o que torna possível, em cada leitura (mais do que em cada leitor), novos movimentos perpétuos.
Ora, a banda desenhada dita clássica, digamos entre um Tintin e um Astérix, apresenam-nos pranchas cujas regras de leitura são relativamente consensuais, lineares, que impedem ilusões ou dúvidas maiores. Podemos tentar exercer uma maior caoticidade ou liberdade, mas não funcionará, e voltaremos a resvalar na sua direcção inclusa.
Keith Jones, com este seu pequeno livro de desenhos soltos, pequenas sequências, pranchas selvagens, parece querer acelerar-nos a visão (de acordo com uma ideia de J. Balser), mostrar-nos que as imagens, de facto, nos rodeiam, nos encerram no seu mundo. Tal como ele, outros artistas, de modos diferentes, sejam os do grupo Le Dernier Cri ou da Amok, os publicados na Paper Rad, na Ganzfeld, na Drama, na Kramer’s Ergot, ou Panter, mais uma vez, etc., fazem uma concatenação de signos visuais num só espaço, como se o objectivo fosse o seu colapso e, ao mesmo tempo, a sua multiplicação de potencialidade.
Por isso, há um objecto textual mais próximo da banda desenhada “normal” no meio deste livro cujo tema, parece-me, é a organização urbana e rodoviária, lida como uma metáfora ao trânsito que o próprio Jones complica nas e com as imagens.... Noutras secções, chamadas de “observações interdimensionais”, fala-se de uma nona dimensão, “campo do nosso lapso do momento”: que me faz retornar ao PONTO NULO, espaço específico do mergulho fenomenológico do olhar da banda desenhada que pretendo explorar cada vez mais filosófica e teoricamente... O espaço que existe entre as vinhetas, não essas linhas desenhadas, esses filamentos em branco, mas o momento em que o cérebro faz o “salto” de uma vinheta a outra, de um “espaço-tempo” a outro e, por um finíssimo, breve instante, onde se encerram e ocorrem as “pequenas percepções” (leibnizianas e de José Gil)... Onde explode a virtualidade (de Deleuze). Espaço que foi explorado, à sua maneira, por Grant Morrison em quase todos os seus títulos, como analisei num ensaio publicado na Vértice, no. 124. E espero a ele retornar no futuro, aqui mesmo, espero...
Nota final: apesar da quase-coincidência de títulos, a fanzine Bactéria do nosso Francisco Vidal já existia há muito tempo antes... E os seus efeitos são, ao contrário dos provocados pelo livro de Jones, mais apaziguantes que aceleradores.