3 de setembro de 2006
Citoyenne 13660. Miné Okubo (Éditions de l'an 2)
A designação “campo de concentração”, só por si, causa (ou deveria causar) calafrios. No entanto, é preciso ser-se muito ponderado ao falar deles, pois existiram em muitos países (Portugal inclusive) e com os mais variados fins, sendo o comum o que está indicado no próprio nome: a “concentração”, ou seja, a agregação, segregação e apartação de membros “diferentes” e “indesejados” no seio de uma qualquer comunidade. Essa diferença e aversão pode ser fruto de opções políticas, origens raciais, outras. Sabendo que apenas os regimes nazi e soviético atingiram com eles níveis abjectos de desumanidade, não é por comparação que deveremos ver os outros campos.
Durante a II Grande Guerra, os Estados Unidos criaram campos desses para “concentrar” cidadãos de nacionalidade ou descendência japonesa que vivessem nos Estados Unidos, não estando seguros das suas “fidelidades”. Não é este o espaço competente para explorar a complexidade desse facto, tampouco optarmos por uma qualquer interpretação ou retratamento ou ataque do mesmo. É uma pura constatação de factos que abre espaço à contestação (“acto consciente de resitência”, segundo Kelso, v. abaixo) que este livro de Miné Okubo torna possível.
46 anos antes de Maus, de Art Spigelman – parcial mas centralmente sobre a sobrevivência de um judeu do campo de Auschwitz – 54 anos antes de Persepolis, de Satrapi – a autobiografia de uma mulher saída do Irão sob a contra-revolução islâmica -, e 60 antes do recentíssimo We Are On Our Own, de Miriam Katin- a autobiografia de uma judia húngara fugindo dos Nazis para enfrentar os sovietes logo de seguida -, ou seja, em 1946, um ano imediatamente depois da guerra ter terminado, uma artista japonesa-americana que estivera cerca de dois anos num desses campos, Mine Okubo, publica Citizen 13660, que retrata organizada e meticulosamente os variadíssimos aspectos da vida nessas condições.
No entanto, não podemos de uma forma clara e imediata colocar a obra de Okubo como a progenitora dessa linha, uma vez que por variadíssimas razões, ela não é esmagadoramente famosa, mas é conhecida de alguns grupos de pessoas atentas a uma ampla produção e um largo entendimento do que faz a história da banda desenhada – e nada nos garante que Art Spiegelman, por exemplo, não a conhecesse aquando da produção da sua obra-prima. Um outro exemplo é Megan Kelso, uma das mais intrigantes autoras de banda desenhada contemporânea, a qual tem um ensaio rico e com diversas informações online sobre este livro. E a sua acessibilidade através da editora de Groensteen consolida a sua posição numa “arqueologia crítica” desta veia da banda desenhada.
Escusado será dizer que este trabalho não tem nada a ver com a mais comum das correntes da banda desenhada, muito menos com o que se desenvolveria como mangá. Se bem que a banda desenhada japonesa, até ao advento de Tezuka e a sua reinvenção da forma no Japão, sob a influência da Disney, tivesse experimentado várias veias – e gostaria de citar uma outra conhecida obra da “arqueologia” da banda desenhada, também japonesa-americana, que é The Four Immigrants Manga, de Henry “Yoshitaka” Kiyama – a sua cristalização viria muito mais tarde; e vivemos um momento preciso em que essa cristalização é posta em dúvida quer por novos trabalhos quer pela nossa descoberta de trabalhos menos imediatos e famosos.
Há uma certa monotonia gráfica e textual em Citizen 13660. As imagens são todas do mesmo tamanho, e a artista retrata-se a si mesma usualmente nos cantos inferiores, aparecendo as mais das vezes somente a cabeça e parte das costas com uma expressão praticamente idêntica, independentemente se está irritada (85), alegre (145) ou simplesmente atenta (165) – Kelso chega mesmo a falar de “mau expressionismo”, mas eu não iria tão longe nos “erros”. Os textos estão todos num past simple narrativo de frases curtas, seguindo o clássico sujeito-predicado-complementos sem grandes desvios. Entender-se-á ambas as atitudes como a omnipresente figura do “eu testemunha”.
Mas esse ritmo quase maquinal, essa “maquinização do humano” que me recorda um conto esmagador de Charles Chaplin (Rhythm, que daria origem ao seu “Tempos Modernos”) poder-se-á explicar de dois modos. O primeiro é o facto de que a imposição de uma rotina, desse intransigente programa a que Okubo se dispôs em tomar apontamentos rigorosos, a fazer esboços no local, para que pudesse tornar-se depois um documento de testemunho, seria a única possibilidade de sobrevivência (e pouco importa apontar para as imensas diferenças com os campos nazis, por exemplo, cujos dentes da morte mastigavam as vítimas mais lenta mas mais inexoravelmente, uma vez que não sabemos mensurar a dor nem a humilhação implicada em nenhuma das situações e, como toda a existência humana, a experiência própria é sempre única). A outra hipótese é que serve para sublinhar a própria desumanização em curso, a sua redução e um padrão previsível de comportamentos (atente-se no título, em que o nome da autora se duplica no seu avatar concentracional; a despersonalização passa pelo número).
Ou ambos ao mesmo tempo. E não é contraditório que se passe assim, a menos que se entenda a vida humana como livre de contradição, julgando que ela existe sob uma ordem teleológica e última (própria da religiosidade fundamentalista e da paranóia).
Nota final: os meus scans costumam ser feitos directamente sobre as minhas cópias pessoais, ou emprestadas ou requisitadas de bibliotecas, mas sempre, portanto, dos exemplares lidos. Este é o primeiro caso em que isso não se passa, uma vez que tenho uma cópia da versão original, em inglês, numa sua reimpressão de 1983. A capa aqui apresentada é da tradução francesa agora ofertada ao público por Thierry Groensteen, na sua Éditions de l’An 2, e a imagem foi retirada do site correspondente (as minhas desculpas por essa "falha"). Julguei, todavia, ser-se pertinente falar-se dum livro tão importante quanto este.
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