
Em muitas ocasiões me pergunto se haverá algum limite para o tipo de “textos” a chamar à atenção, no seio deste espaço de discussão. Isto é, desde o início até ao momento presente, é possível encontrar algum tipo de expansão no que diz respeito ao tipo de livros ou publicações incluídas, a natureza das obras, o alcance da arte. Ainda que o título do espaço seja “lerbd”, rapidamente se negou a redução a “bd” para encontrar um amplo território da banda desenhada e, a partir dela, encontrar outros territórios contíguos, cujas fronteiras podem ser mais ou menos claras ou sombrias. De certa forma, é como se se entendesse a banda desenhada como uma forma particular, se não mesmo privilegiada, de pensar o mundo através do desenho, o que pode levar a uma construção narrativa, mas nem sempre o sendo necessariamente.
Os três próximos momentos de apresentação, em torno do desenho enquanto escrita ou dos espaços existentes ao desenho no mundo dos escritores, ou a expansão, através da redução, da estruturação do desenho enquanto escrita, serão contributos a essa questão sem fim.
Por ocasião da exposição Desenhos de Escritores, segunda apresentação (de três) de uma exposição preparada pelo Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), apresentada em Lisboa no espaço da Colecção Berardo/CCB, chega-nos às mãos este L’un pour l’autre. Les écrivains dessinent, que pode ser visto a um só tempo como catálogo da exposição e como publicação independente, no seguimento do excelente (e agora interrompido) Le Cahier Dessinée, dirigido por Frédérik Pajak. Quer a exposição quer este livro reúnem, muito simplesmente, desenhos que foram criados por pessoas cujas carreiras são mais marcadas no mundo enquanto escritores. Encontrar-se-ão aqui congregados romancistas como Proust, René Daumal, Alfred Jarry, Robbe-Grillet, Jean Genet, Günter Grass, poetas como Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry, Allen Ginsberg, polimatas como Cocteau, Kurt Schwitters, Artaud, Bréton, Tzara, Kantor, e outros mais conhecidos pelas suas dimensões visuais que escritas, como Hans Arp (excelente poeta, por sinal), Copi, Topor. O acto forte é o desenho, mas também são incluídos trabalhos mais próximos da disciplina da “pintura” ou da “fotografia”, e até mesmo da “instalação” (os “paus” de Serge Pey, a descrição do Gigantexte de Michèle Métail). A prestação portuguesa foi ainda beneficiada pela presença de trabalhos de Almada Negreiros e Ana Hatherly. Estas inclusões parecem ter sido pensadas “à última hora”, uma vez que nenhum destes trabalhos revela desse trabalho subterrâneo que está previsto na frase “desenho de escritor”. O trabalho de Almada Negreiros porque fica aquém dessa promessa, o de Hatherly porque o ultrapassa: falamos, obviamente, de O Escritor (publicado em 1975) [a propósito, convidava-vos a, sobre esse livro, lerem o texto de Domingos Isabelinho, que finalmente se rendeu aos blogs como modo de presença activa].
Devo precisar que o discurso que opera sobre esta exposição, e a sua selecção e a articulação das “peças”, feita por Jean-Jacques Lebel, seu comissário, oscila entre duas perspectivas. Por um lado, o modo como a fronteira entre desenho e escrita parecem se diluir nestas obras (se não directamente, pelo menos enquanto promessa); por outro, enquanto entrosamento de uma disciplina na outra, forma de bastardia, de contaminação, infecção, de mutação quando possível. A pergunta é mesmo directa, no texto: “E se a dualidade entre escrita e pintura não fosse mais que um fantasma, uma astúcia de classificação, uma esperteza de arquivista, e não uma realidade existencial?” É sobre essa hipotética sombra de resposta – já que séculos de educação nos impedem de conseguirmos uma genuína ingenuidade perante ambos os campos – que Lebel faz surgir um espaço, intervalar, “mal cartografado”, ao qual dá o nome de “um pelo outro”, em que o que parece ser substituído e o que substitui jamais é totalmente claro, “abolindo a questão do valor e da historicidade do juízo do qual aquele decorre” (E. Lambert). São várias as disciplinas das humanidades e das ciências que concorrem a uma explicação, nunca cabal, desses fenómenos intervalares, nas linhas da frente respectivas a filosofia e neurobiologia, mas pretender-se-á, com esta exposição – perdoe-se o pleonasmo – uma exposição poética, isto é, através do contacto directo com vários exemplos desse fazer. Num texto que encerra a publicação (Un entre-deux avec des trous, sendo esses “buracos” aquilo que melhor ilumina a questão, naturalmente: mais, a autora explica como o que se tece não é um texto, ou um tecido, ininterrupto, mas antes uma malha, mais maleável, livre, mas também robusta), Emmanuelle Lambert aclara a leitura ou atitude de Lebel: “Quando olhamos uma peça, consideramo-la sempre em relação com qualquer outra coisa”, por procurarmos um valor documental, histórico, genético. Para mais, num “desenho” que pertença a um “escritor” (as aspas servem para reduzir quer um quer o outro às suas definições de dicionário). Mas Lebel “procura perceber, em cada obra, o traço da pulsão criativa, a única que pode abolir a divisão, artificial por derivar de uma aproximação demasiado genérica, entre escrita e pintura”. Lambert revela mesmo o choque entre a atitude de Lebel e a sua e dos seus colegas, os arquivistas de serviço.
Não há quaisquer promessas (impossíveis de satisfazer) de se ser exaustivo nesta catalogação, trabalhando-se sobretudo com os fundos do IMEC, mas deles emerge de facto uma possível imagem pertinente desse espaço multiforme e proteico.
Há toda uma tipologia de desenhos aqui encontrados, se é que é possível sequer falarmos de tipologia: desenhos feitos sobre um bocado de papel, talvez ao acaso e distraidamente, mas também desenhos feitos com um intuito de completude, e alguns até mesmo com a ideia de virem a ser publicados. Alguns quiçá feitos em tom jocoso, de passatempo, outros com contornos de uma vontade artística. Uns deixados em sobrescritos ou nas margens de cartas para serem ofertados a amigos, outros feitos com a intenção de se relacionarem directamente com um texto (ocupando o lugar central de “ilustração”). Alguns salvos pelo próprio autor e explicados (Althusser), outros resgatados por amigos. Uns salpicados de tinta, como se ao acaso, ou que emergem do centro de colagens de imagens e de textos, ou esmagados pelos textos, ou como se fossem estudos de uma sinalização a aprender e apreender (o caso de Barthes, óbvio). Uns são colectivos, frutos de colaboração artística ou até de jogos (os surrealistas, sobretudo). E alguns fazem mesmo parte da exploração central artística do autor em questão (como nos casos de Christian Dotremont, participante do grupo CoBrA, de Brion Gysin, ou, de novo, de Michaux).
É de Alfred Pacquement que se descobre esta citação, a propósito de Michaux: um “descondicionamento em relação ao verbal”, atingido sobretudo com esse autor na experimentação com a mescalina. Ora, são raros os casos neste grupo de autores onde esse descondicionamento se verifica: a esmagadora maioria dos trabalhos são de desenhos, pura e simplesmente, mas que se cobrem de uma patina de “curiosidade” por serem feitos por autores famosos pela sua escrita. Outros, como vimos, revestem-se desde logo de um interesse plástico uma vez que se prendem com a preocupação central do seu autor, no preciso momento da sua criação, o que os impede de serem vistos como “desenhos de escritores”, mas como “desenhos”.
Os pequenos textos que acompanham os desenhos de cada um dos autores, no livro, não são mais que meras súmulas biográficas, alertando para os principais títulos que compõem a sua obra e herança. Poucos são os vestígios de comentário sobre o modo particular como esses desenhos se articulam com essa obra escrita, ou que traços nele surgem que possam irromper ou se encaixarem na escrita, ou sequer se se tratam de achados raros - como no caso de Rimbaud – ou se, bem pelo contrário, se fazem parte de um espólio considerável e reconhecido – como nos de

São, portanto, raras as passagens nestes trabalhos que façam vislumbrar esse tal espaço de intervalo. Uma citação de Robbe-Grillet mostra que esse autor entendia a escrita, como outros saberes, parte dos “trabalhos manuais”: as suas composições, de impressões da mão com tintas, lacas e colagens de resquícios de papel de jornal, demonstram parte dessa “manualidade”, e as tentativas de organização multi-legível eventualmente recordarão o programa da compossibilidade previsto em L’Anné Dernière àMarienbad. Sempre, porém, inconclusivamente. A ausência dos Lettristes e dos Hypergraphistes, por exemplo, agrava ainda mais o não cumprimento dessa promessa primeira.

“A relação entre ‘imagem’ e texto permite a troca entre o olhar e o pensamento, os quais, como a metáfora, abrem um espaço ilimitado ao imaginário” (J. Sudaka-Bénazéraf). Ora esse imaginário forma-se com este grupo de trabalhos, mas como se de uma neblina se tratasse, e não uma mais penetrante marca sob os auspícios da qual pensar.

Ainda assim, l’un pour l’autre faz-nos aproximar desse abismo.
Nota: agradecimentos a Nuno Carvalho (Museu Berardo), pela disponibilização da publicação.