16 de outubro de 2008

L’un pour l’autre. Les écrivains dessinent. AAVV (Buchet-Chastel/IMEC)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Parte 1.
Em muitas ocasiões me pergunto se haverá algum limite para o tipo de “textos” a chamar à atenção, no seio deste espaço de discussão. Isto é, desde o início até ao momento presente, é possível encontrar algum tipo de expansão no que diz respeito ao tipo de livros ou publicações incluídas, a natureza das obras, o alcance da arte. Ainda que o título do espaço seja “lerbd”, rapidamente se negou a redução a “bd” para encontrar um amplo território da banda desenhada e, a partir dela, encontrar outros territórios contíguos, cujas fronteiras podem ser mais ou menos claras ou sombrias. De certa forma, é como se se entendesse a banda desenhada como uma forma particular, se não mesmo privilegiada, de pensar o mundo através do desenho, o que pode levar a uma construção narrativa, mas nem sempre o sendo necessariamente.
Os três próximos momentos de apresentação, em torno do desenho enquanto escrita ou dos espaços existentes ao desenho no mundo dos escritores, ou a expansão, através da redução, da estruturação do desenho enquanto escrita, serão contributos a essa questão sem fim.
Por ocasião da exposição Desenhos de Escritores, segunda apresentação (de três) de uma exposição preparada pelo Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), apresentada em Lisboa no espaço da Colecção Berardo/CCB, chega-nos às mãos este L’un pour l’autre. Les écrivains dessinent, que pode ser visto a um só tempo como catálogo da exposição e como publicação independente, no seguimento do excelente (e agora interrompido) Le Cahier Dessinée, dirigido por Frédérik Pajak. Quer a exposição quer este livro reúnem, muito simplesmente, desenhos que foram criados por pessoas cujas carreiras são mais marcadas no mundo enquanto escritores. Encontrar-se-ão aqui congregados romancistas como Proust, René Daumal, Alfred Jarry, Robbe-Grillet, Jean Genet, Günter Grass, poetas como Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry, Allen Ginsberg, polimatas como Cocteau, Kurt Schwitters, Artaud, Bréton, Tzara, Kantor, e outros mais conhecidos pelas suas dimensões visuais que escritas, como Hans Arp (excelente poeta, por sinal), Copi, Topor. O acto forte é o desenho, mas também são incluídos trabalhos mais próximos da disciplina da “pintura” ou da “fotografia”, e até mesmo da “instalação” (os “paus” de Serge Pey, a descrição do Gigantexte de Michèle Métail). A prestação portuguesa foi ainda beneficiada pela presença de trabalhos de Almada Negreiros e Ana Hatherly. Estas inclusões parecem ter sido pensadas “à última hora”, uma vez que nenhum destes trabalhos revela desse trabalho subterrâneo que está previsto na frase “desenho de escritor”. O trabalho de Almada Negreiros porque fica aquém dessa promessa, o de Hatherly porque o ultrapassa: falamos, obviamente, de O Escritor (publicado em 1975) [a propósito, convidava-vos a, sobre esse livro, lerem o texto de Domingos Isabelinho, que finalmente se rendeu aos blogs como modo de presença activa].
Devo precisar que o discurso que opera sobre esta exposição, e a sua selecção e a articulação das “peças”, feita por Jean-Jacques Lebel, seu comissário, oscila entre duas perspectivas. Por um lado, o modo como a fronteira entre desenho e escrita parecem se diluir nestas obras (se não directamente, pelo menos enquanto promessa); por outro, enquanto entrosamento de uma disciplina na outra, forma de bastardia, de contaminação, infecção, de mutação quando possível. A pergunta é mesmo directa, no texto: “E se a dualidade entre escrita e pintura não fosse mais que um fantasma, uma astúcia de classificação, uma esperteza de arquivista, e não uma realidade existencial?” É sobre essa hipotética sombra de resposta – já que séculos de educação nos impedem de conseguirmos uma genuína ingenuidade perante ambos os campos – que Lebel faz surgir um espaço, intervalar, “mal cartografado”, ao qual dá o nome de “um pelo outro”, em que o que parece ser substituído e o que substitui jamais é totalmente claro, “abolindo a questão do valor e da historicidade do juízo do qual aquele decorre” (E. Lambert). São várias as disciplinas das humanidades e das ciências que concorrem a uma explicação, nunca cabal, desses fenómenos intervalares, nas linhas da frente respectivas a filosofia e neurobiologia, mas pretender-se-á, com esta exposição – perdoe-se o pleonasmo – uma exposição poética, isto é, através do contacto directo com vários exemplos desse fazer. Num texto que encerra a publicação (Un entre-deux avec des trous, sendo esses “buracos” aquilo que melhor ilumina a questão, naturalmente: mais, a autora explica como o que se tece não é um texto, ou um tecido, ininterrupto, mas antes uma malha, mais maleável, livre, mas também robusta), Emmanuelle Lambert aclara a leitura ou atitude de Lebel: “Quando olhamos uma peça, consideramo-la sempre em relação com qualquer outra coisa”, por procurarmos um valor documental, histórico, genético. Para mais, num “desenho” que pertença a um “escritor” (as aspas servem para reduzir quer um quer o outro às suas definições de dicionário). Mas Lebel “procura perceber, em cada obra, o traço da pulsão criativa, a única que pode abolir a divisão, artificial por derivar de uma aproximação demasiado genérica, entre escrita e pintura”. Lambert revela mesmo o choque entre a atitude de Lebel e a sua e dos seus colegas, os arquivistas de serviço.
Não há quaisquer promessas (impossíveis de satisfazer) de se ser exaustivo nesta catalogação, trabalhando-se sobretudo com os fundos do IMEC, mas deles emerge de facto uma possível imagem pertinente desse espaço multiforme e proteico.
Há toda uma tipologia de desenhos aqui encontrados, se é que é possível sequer falarmos de tipologia: desenhos feitos sobre um bocado de papel, talvez ao acaso e distraidamente, mas também desenhos feitos com um intuito de completude, e alguns até mesmo com a ideia de virem a ser publicados. Alguns quiçá feitos em tom jocoso, de passatempo, outros com contornos de uma vontade artística. Uns deixados em sobrescritos ou nas margens de cartas para serem ofertados a amigos, outros feitos com a intenção de se relacionarem directamente com um texto (ocupando o lugar central de “ilustração”). Alguns salvos pelo próprio autor e explicados (Althusser), outros resgatados por amigos. Uns salpicados de tinta, como se ao acaso, ou que emergem do centro de colagens de imagens e de textos, ou esmagados pelos textos, ou como se fossem estudos de uma sinalização a aprender e apreender (o caso de Barthes, óbvio). Uns são colectivos, frutos de colaboração artística ou até de jogos (os surrealistas, sobretudo). E alguns fazem mesmo parte da exploração central artística do autor em questão (como nos casos de Christian Dotremont, participante do grupo CoBrA, de Brion Gysin, ou, de novo, de Michaux).
É de Alfred Pacquement que se descobre esta citação, a propósito de Michaux: um “descondicionamento em relação ao verbal”, atingido sobretudo com esse autor na experimentação com a mescalina. Ora, são raros os casos neste grupo de autores onde esse descondicionamento se verifica: a esmagadora maioria dos trabalhos são de desenhos, pura e simplesmente, mas que se cobrem de uma patina de “curiosidade” por serem feitos por autores famosos pela sua escrita. Outros, como vimos, revestem-se desde logo de um interesse plástico uma vez que se prendem com a preocupação central do seu autor, no preciso momento da sua criação, o que os impede de serem vistos como “desenhos de escritores”, mas como “desenhos”.
Os pequenos textos que acompanham os desenhos de cada um dos autores, no livro, não são mais que meras súmulas biográficas, alertando para os principais títulos que compõem a sua obra e herança. Poucos são os vestígios de comentário sobre o modo particular como esses desenhos se articulam com essa obra escrita, ou que traços nele surgem que possam irromper ou se encaixarem na escrita, ou sequer se se tratam de achados raros - como no caso de Rimbaud – ou se, bem pelo contrário, se fazem parte de um espólio considerável e reconhecido – como nos de Hugo ou Michaux. Era preciso contextualizar e identificar, caso a caso, qual a matriz criativa para, de seguida, perceber qual o grau de relação entre o gesto do desenho e o gesto da escrita. Se bem que o texto final de Lambert leve a pensar que não existem discursos e estudos nesse sentido (aquilo que “seria por definição excluído da historiografia”), isso é relativamente falso. De acordo com os estudos de Jacqueline Sudaka-Bénazéraf (autora de Le regard de Franz Kafka. Les dessins d’un écrivain e editora da colecção “Un double regard” da Maisonneuve & Larose) e de Konstantin Barsht (autor de Dostoïevski. Du dessin à l’écriture romanesque), os desenhos criados por estes autores – ainda que de modos e implicações muito diversos – concorre para a escrita, isto é, desenhavam para escrever ou desenhavam como continuidade (especificação, peso, dinamização) da escrita. Mas essa dimensão não está aqui prevista, ou pelo menos de uma maneira mais nítida. Talvez dois casos de charneira sejam os de Pierre Klossowski (o seu particular erotismo [aqui mostrado numa das suas mulheres desocultadoras]) e Dino Buzzati (cujo encontro último entre a escrita e o desenho se dariam com Poema a Fumetti).
São, portanto, raras as passagens nestes trabalhos que façam vislumbrar esse tal espaço de intervalo. Uma citação de Robbe-Grillet mostra que esse autor entendia a escrita, como outros saberes, parte dos “trabalhos manuais”: as suas composições, de impressões da mão com tintas, lacas e colagens de resquícios de papel de jornal, demonstram parte dessa “manualidade”, e as tentativas de organização multi-legível eventualmente recordarão o programa da compossibilidade previsto em L’Anné Dernière àMarienbad. Sempre, porém, inconclusivamente. A ausência dos Lettristes e dos Hypergraphistes, por exemplo, agrava ainda mais o não cumprimento dessa promessa primeira.
A aposta desequilibra-se, a meu ver, por incluir muitos exemplos de obras que, sendo em rigor desenhos feitos por pessoas conhecidas como escritores, têm uma autonomia total entre cada território. Victor Hugo, por exemplo, apesar de ser mais conhecido enquanto romancista e poeta, tinha uma actividade paralela, perfeitamente acabada e de sucesso, de desenho, que teve uma relativa, se não total, autonomia em relação à escrita[e que assume uma importância extrema no que diz respeito à História da Abstracção na pintura, e no experimentalismo, avant la lettre: este desenho é uma impressão de uma renda, com carvão, e laivos de tinta castanha, azul e verde, e cera vermelha sobre papel avergoado]. O mesmo se poderá dizer de Topor, arriscando dizer que este, entre nós, é mais conhecido enquanto desenhista (mas lembremos o excelente A Cozinha Canibal, na Fenda, ou uma referência mais obscura, a antologia Humor Negro editada e publicada por José Vilhena, de 1969). Henri Michaux, criando séries de desenhos, instaura como que dois ramos que despontam de um mesmo tronco, mas são dois troncos identificáveis e separáveis, não obstante as lianas com que se cobrem os estreitem em vários dos seus nós. Bruno Schulz, o grande ausente desta antologia (notada pelos próprios editores), é ainda um outro caso, apetece dizer raro, quer no sentido quantitativo quer no sentido de “excepcional”: é, a um só tempo, um desenhador que escrevia e um escritor que desenhava (e o filme Street of Crocodiles, a adaptação do conto do autor polaco pelos irmãos Quay ao filme de animação, parece unir numa terceira disciplina artística ambas as dimensões em diálogo).
“A relação entre ‘imagem’ e texto permite a troca entre o olhar e o pensamento, os quais, como a metáfora, abrem um espaço ilimitado ao imaginário” (J. Sudaka-Bénazéraf). Ora esse imaginário forma-se com este grupo de trabalhos, mas como se de uma neblina se tratasse, e não uma mais penetrante marca sob os auspícios da qual pensar.
O olhar moderno – previsto ou vislumbrado por Baudelaire [curioso que de um desenho aqui incluido, este que aqui mostro, o comissário diga ser um auto-retrato "muito American Comics avant la lettre": serão os raios que lhe saem dos olhos também análogos a super-poderes de visão, já agora? Como sempre, o espectro da "bêdê" surgirá sempre como forma simplificadora nos lábios dos intelectuais defensores das últimas fronteiras?], teorizado redondamente por Benjamin – em que a presença das imagens nas cidades, sob a forma de posters publicitários, as divisões breves e comerciais nas páginas dos jornais, o papel que têm na ilustração de uma notícia (primeiro a gravura, depois a fotografia, depois novamente a ilustração de um novo modo), leva à assunção de uma natureza narrativa sobre todas e quaisquer imagens. Mesmo aquelas que surgem enquanto “imagens puras”, desconectadas da representação ou de contextualizações estreitas, são susceptíveis de virem a ser remodeladas e reapresentadas num modo mais controlado e narrativizável – pense-se em Mondrian. Não obstante, sempre existiram imagens que provocaram o aparecimento desse espaço intervalar que provocam um curto-circuito e nos obriga a reponderar o valor da imagem, do desenho, em relação à escrita (texto, história, etc.). Desde as marginalia (tenho em mente sobretudo o excelente estudo de Michael Camille) aos trabalhos de ilustradores contemporâneos (e usemos o caso de Jorge Nesbitt, como exemplo), voltam a surgir dúvidas no mundo ocidental (já que no espaço asiático, sobretudo China-Coreia-Japão, mas também na tradição islâmica, a caligrafia ganhou contornos de fronteira bem diversos do que entre nós) nessa divisão clara entre um gesto e outro. Aqui, no mundo ocidental, é como olhar uma floresta e conseguir ver as árvores, perdendo a floresta, ou recuperando-a e perdendo as árvores. Não se pode ver uma e as outras, mas ou uma ou as outras. Tal qual aquela imagem reversível do coelho-pato de Jastrow que Wittgenstein cita no seu livro. É assim que vemos ora as imagens (as quais mostram, configuram, dão a ver) ora o texto (os quais demonstram, desfiguram, dão a ler), mesmo que estes ocupem espaços bem diversos numa página, e canais de distribuição e apreciação bem diversos. E talvez seja essa razão pela qual a ilustração e mormente a banda desenhada atravessem sempre uma dificuldade em ser apreciada de um modo mais cabal, intelectual, balizado, já que se têm de pensar dois domínios ao mesmo tempo e de modo implicado: isto é, procurar um movimento contínuo de multiplicidades, que jamais se cristalizam numa forma decidida, mas em que cada uma delas desprende novos movimentos adicionais, num turbilhão incessante. A obra apenas dá a ver uma possibilidade de pausa, um vector nas linhas de fuga e de movimento provocadas por esse turbilhão.
Ainda assim, l’un pour l’autre faz-nos aproximar desse abismo.
Nota: agradecimentos a Nuno Carvalho (Museu Berardo), pela disponibilização da publicação.

How to look at pictures. Jorge Nesbitt (João Esteves de Oliveira)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 2.
Se víramos uma exposição “colectiva”, de “desenhos dos escritores”, voltamos a atenção para a individual de Jorge Nesbitt, para lá descobrir a “escrita de um desenhador”.
How to to look at pictures é uma exposição de vários trabalhos, os quais a um só tempo partilham características e divergem de natureza. O modo da sua presença é o das séries. A série deve ser entendida como um grupo de objectos individuais, capazes de uma autonomia entre si, mas cujo significado se fortalece na sua apresentação colectiva, uma vez que é nesse conjunto que se revelam as linhas de força com que se formam (não em termos de produção, mas no que diz respeito à sua imagem presente, àquilo que está permanentemente formando-se à nossa frente). Nesta exposição descobrem-se três séries: uma de paisagens com um círculo recortado, colorido, no qual foram colocadas palavras que se querem ver enquanto fórmulas (“assunto”, “significado”, “composição”, “tratamento natural”, “objecto”, tudo em inglês, complementado com uma gravura do arcanjo S. Miguel derrotando Satanás (a ensaísta vê S. Jorge e o dragão, e é capaz de ter razão, tendo acesso às condições de produção dos desenhos de Nesbitt, mas, não a tendo eu, e não encontrando nenhuma das pistas iconológicas para o identificar desse modo, mas sim identificando o pé sobre o pescoço do vencido, a balança da justiça e o pavilhão de Cristo, vejo S. Miguel), em que os rostos deles foram igualmente recortados com círculos, inscrevendo-se, respectivamente, as palavras “luz” e “trevas”; uma segunda série é composta de páginas arrancadas de livros (com apenas texto), sobre as quais Nesbitt elabora um desenho, de cores ténues, apagando o deixando entrever, a intensidades diferentes, o texto original: por vezes nota-se o título, noutras uma expressão, noutras ainda todo o texto, ainda que sob uma camada translúcida de cor; uma última, de seis gravuras de paisagens (holandesas, precisa-se no catálogo), sobre as quais se desenharam, com uma exactidão minuciosa, e num levíssimo azul que, ao mesmo tempo, destoa e se disfarça do cinzento da gravura original, a figura de aviões de caça alemães e um submarino: os primeiros como se tivessem caído nessa paisagens, o último, como se tivesse entrado calmamente na baía representada (a primeira e a terceira séries podem ser vistas na íntegra no site do autor, nos trabalhos de “2007/2008”, e aqui apresentamos um exemplo de lá retirado).
Como se entenderá, há uma constante utilização da expressão “desenho sobre”, uma vez que Nesbitt se apropria de páginas existentes de livros, com gravuras, reproduções de pinturas, desenhos, e agora também manchas de texto, para sobre eles exercer um gesto novo de inscrição. Aliás, a importância desse gesto torna-se clara quando lemos o sub-título (ou será título? ou uma outra espécie de determinação, de exactidão?) do seu blog: “trabalhos s/ papel”. “Sobre” papel. Aquilo que pareceria uma mera descrição técnica, de catalogação museográfica, passa a ser visto como ontologia da própria arte de Jorge Nesbitt. O suporte, o fundo, é a marca de existência dos seus desenhos. Também se poderia ler o “s/” como “sem” [tal qual como em “s/título”, “sem título”, constante do seu trabalho, igualmente; e não será por acaso que a capa do catálogo, apesar do título, não revela qualquer picture, qualquer imagem]: o desenho anula o papel, a nova imagem anula a imagem anterior, a imagem que agora se inscreve faz desaparecer aquela que antes habitava o papel. Ou, ainda um terceiro contrário, faz destacar os elementos que lá estavam de um modo novo.
Algumas das estratégias, senão o contínuo do aproveitamento de gravuras de livros, recordarão a obra dos irmãos Chapman, Insult to Injury ou If Hitler Had Been a Hippy How Happy Would We Be, em que estes desfiguraram, respectivamente, gravuras autênticas de Goya e aguarelas de Adolf Hitler. Mas ao passo que o uso dessas obras de arte originais (mesmo no caso de Hitler a palavra é correcta, e o facto de as gravuras de Goya serem múltiplos não altera a questão, dado o peso histórico da convergência entre “reprodução” e “original” nesse caso), da parte dos Chapman, se reveste de um “shock value” muito definido (ainda que possa não ser nem defensável nem, no fundo muito interessante), a Nesbitt parece importar antes a fundação de um possível, um virtual encontro – que pode ser meramente fortuito, através da acessibilidade circunstancial e fácil destas reproduções utilizadas – para criar um pequeno diálogo muito devedor ao humor, à história da arte desarrumada, e a uma constante promessa de narrativa. O adjectivo “pequeno” não serve de menosprezo nem se distanciamento em relação a quaisquer outros gestos. É apenas a instauração de um circunscrito movimento, que requer de nós uma atenção especial, para que não percamos o seu valor. Para assegurar esse humor para com a história da arte, vejam-se no site os trabalhos de 2005/2006, em que, quando surgem, criaturas assumem proporções e formas corpos assustadoras e contrastantes com o resto da composição, mas cujos olhos à personagem de desenho animado ou de banda desenhada infantil coloca outros termos na mesa, precisamente do tal diálogo ainda por fazer, e não uma “destruição” valorativa e ahistórica da obra anterior.
Outra estratégia, na série que não surge no site, mas de aqui deixamos duas imagens, é similar, até certo ponto, mas logo com uma divergência forte, do trabalho de Tom Phillips, A Humument, de que já falámos. A Humument é, para explicar rapidamente, um livro sobre cujas páginas Phillips elabora desenhos, mais ou menos abstractos, deixando porém visíveis alguns corpúsculos organizados de texto, aos quais dá o nome de “rios”, e através dos quais é possível ler uma “outra história” (perfeitamente legível, apesar de tudo, e que conheceu várias versões). O catálogo da exposição de Nesbitt tem um texto de Maria João Mayer Branco, no qual se fala de “uma natureza contínua, como se chegasse de outro lado e se prolongasse num fluxo permanentemente inscrito na página fixa” a propósito destes desenhos. Ora Phillips e Nesbitt, se cada qual com um gesto diferente, cobrem o que está em baixo não para simplesmente impor o que está em cima, mas para permitir que o que estava ainda mais em baixo viesse ao de cima, e que se prolongasse e dialogasse com a nova camada “de cima”. Há uma relação entre o desenho que Nesbitt inscreve sobre a página e o texto que ele apaga com esse desenho, com a excepção de uma ou uma mão-cheia de palavras. Mas ao passo que Phillips fazia, através dos seus “rios”, uma nova ligação ou recombinação da matéria verbal, associações possíveis no interior do texto dado, isto é, um verdadeiro e claro novo texto verbal, Nesbitt opera antes um destaque desse mesmo material para que elas ganhem a valência de um título, por assim dizer. As relações são, as mais das vezes, entre a intersecção e a interdependência, isto é, em que o sentido da imagem não cobre totalmente o que está previsto na palavra, mas não procura um choque ou contradição total: o jogo da “luz e trevas” da gravura de S. Miguel e Satanás, ou um retrato de um jovem Picasso com as palavras “a hero, of his kind” são as de sinal mais óbvio, mas outras há que desregulam ligeiramente essas expectativas e que permitem que a nossa faculdade de busca de sentido elabore movimentos mais complexos.
Não me parece que Jorge Nesbitt procure disfarçar as intervenções. É como se desejasse que alguma inércia de clareza permitisse um outro tipo de transporte. As gravuras que ditam as características da arte (ou melhor, de uma classe de arte, precisamente “clássica”) recuperam essa nitidez mas no interior do comentário humorístico em relação à História da Arte. Nesbitt não nega essa relação, votando-a como invisível, mas também não a alteia enquanto território inalcançável pelos seus (novos, no curso da História) gestos: é como se aceitasse o jogo da mimese das figuras, como se este continuasse a operar e, até, de um modo mais vívido ainda. Nesbitt “esconde”, é certo, como, todos diferentemente, os Chapman, Tom Phillips, Baldessari, João César Monteiro, Christo, isto é, de modos operatórios diferentes mas num mesmo propósito: “dar a ver de novo”, “apagar para escrever”.
O central, como é claro, é a relação entre a escrita e o desenho. A ensaísta identifica-o igualmente, aproximando-se das preocupações e crises da ilustração, mas apenas, parece-me, identificando um dos lados da questão. Ainda sob a ideia da identificação da gravura icónico-religiosa como sendo de S. Jorge com o dragão, Mayer Branco fala de um “São Jorge Nesbitt... apresentando de modo único a afinidade entre a palavra e a imagem: ambas são véu, superfície, aparência que, escondendo, dá a ver – e dá a ver mais”, precisamente como víramos obliquamente a propósito dos “desenhos de escritores” e em relação a Nesbitt.
De facto, podemos encontrar uma película muito fina, translúcida, entre escrita e desenho. Essa película permite que se adivinhem as formas de um lado e do outro, permitindo assim uma que outra aproximação. Mas separa duas correntes de ar, contraditórias, cada uma soprando do seu lado (a divisão disciplinar, corrente). Quando se rompe, impõe-se um turbilhão, uma mistura. Nesbitt tenta romper e, nalguns momentos, fá-lo. Já o havíamos citado, a tradição da caligrafia asiática lida com mestria essas correntes soltas. No ocidente, é mais raro, mas vamo-los anotando.
Todavia, porque apenas ver esse lado da questão? A complicada etimologia da ilustração (não só da palavra, mas do território mesmo) permite encontrarmos duas dinâmicas opostas: 1. um movimento de cima para baixo: iluminar, lustre, incidir luz sobre; 2. de baixo para cima: trazer luz a (como se de um fundo de poço se tratasse, iluminar “por trás”). Assim, porque não entender Nesbitt não enquanto o Arcanjo para quem a ordem e a separação e a pureza são da mais absoluta importância - a clássica identificação entre o Belo, o Bem, o Verdadeiro - mas sim enquanto Satã ou o Dragão? – representando as trevas que assombram mas permitem a confusão, a aliança, a emergência e a amálgama, a ambivalência da modernidade...
É que podemos sempre inverter as relações. Na verdade, a disjunção é maior no desenho do que na escrita. Ao contrário do que pareceria a uma primeira abordagem - por o desenho ser “universal”, cuja “semelhança” é nítida, cujas formas são coincidentes com as do mundo, e por ser a escrita “convencional”, “um acordo”, um “artificialismo que separa” –, é a escrita afinal aquela que transporta a promessa de que pode ser tornada nossa, através da sua compreensão e domínio: aprender a ler, aprender a escrever, dilui a magia de uma escrita, sempre estranha ao início, para que se tornem num veículo utilizado por nós. O desenho, não: ele convida-nos a aproximarmo-nos dele, quase em intimidade, para melhor nos repelir. O desenho pertence sempre ao seu autor, e nunca a nós mesmos. Aprende-se um poema de cor (de “coração”), mas não um desenho. Pode-se memorizá-lo, mas não colocá-lo sob a pulsação humana e repeti-lo, tão vivo como quando lido.
E é no intervalo dessas dúvidas que os autores capazes de identificar o espaço intervalar e com a força suficiente para não apenas se expressarem dele e nele mas também para deixar formas que atestem essa identificação, compreensão e criação, que nos permitem, também, aperceber-nos das fronteiras ruindo. Mesmo que breve e levemente.
Através destes trabalhos de Nesbitt, nos quais ele escreve um sentido com as imagens e que nos retorna à escrita – à capacidade de as tornar nossas (enquanto gesto, acesso) - uma das respostas a How to look at pictures é: “lendo-as”.
Nota: agradecimento a Jorge Nesbitt (e a galeria João Esteves de Oliveira), pela oferta do catálogo.

Siteless. François Blanciak (MIT Press)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 3.
Siteless, do arquitecto François Blanciak é ainda um contributo, ainda que mínimo (isto é, a minha discussão desse trabalho, não o livro em si), à questão presente. Não quererei com esta nota dizer que o inclua ou o exclua de um espaço de expectativas sociais ao qual se pode dar o nome de “ilustração”. É algo em aberto, e não uma decisão, se bem que o seu arrolamento seja um gesto, à partida, positivo. Vistas as coisas de uma forma fria, e tendo mesmo em conta as palavras do autor, Siteless poderá ser entendido como um tratado de arquitectura. O autor quer pensar para além das palavras, para além da construção de um discurso verbal, teórico, intelectual, para escavar junto às formas que ajudam a pensar a arquitectura.
Tendo visitado cinco cidades (Hong Kong, Nova Iorque, Copenhaga, Los Angeles e Tóquio), auscultou e tacteou com o olhar as formas de edifícios existentes e traduziu-as a lápis. Todas as páginas são idênticas em termos de distribuição: 12 formas distribuídas numa grelha regular, acompanhadas por um breve “nome” (não título, nem método de identificação do edifício ou construção real), como se de um alfabeto se tratasse, e susceptível de vir a ser aprendido, apreendido e, depois, fim último, recombinado numa linguagem de novos e inesperados significados.
A “manipulação da forma” é o seu propósito, um recordar experimentações possíveis na arquitectura. O autor parece dar a entender que essa é uma via menos procurada na sua disciplina, mas não se trata de um total deserto, se recordarmos os trabalhos existentes, desde os arquitectos utópicos como Boullée ou até Speer, e passando por Zaha Hadid. Admitamos que todos estes autores deixaram uma herança teórica, política e verbalmente programática, ao passo que Blanciak apenas apresenta uma nota introdutória e o peso do pensamento é feito através das imagens. Naturalmente que poderíamos desviar-nos das premissas e constrangimentos disciplinares da arquitectura tout court, e procurar no mundo do desenho, da ilustração, da banda desenhada, artistas que pensaram as formas das construções e do urbanismo através do desenho, de Albert Robida a Hugh Feriss, de François Schuiten a Érik Desmazières (este tema foi abordado num dos papers do SHOT 2000), mas Blanciak procura manter a união entre a forma e a disciplina que é a sua.
Curiosamente, o autor alega (com razão) que o uso de instrumentos digitais de desenho e “rendição” (como se costuma dizer por aí) implica à partida restrições: esses instrumentos “tornam-se obstáculos à produção de diversidade”. A escolha de um ângulo de visão sempre idêntico, a ausência de escala, e praticamente um tamanho (na mancha da página, um “quadrado”, como ele afirma) idêntico, leva à assunção dessas formas enquanto precisamente isso, formas, e não objectos concretos. A escolha do desenho torna a sua representação ou criação mais subjectiva mas, por isso, mais próxima de um pensamento próprio do autor (percepção e expressão).
O autor faz ainda analogias entre as formas que (re)produz e as escritas do Japão (onde trabalhou substancialmente): formas “simplesmente curvilíneas” (hiragana), “vincadamente rectas” (katakana) ou “extremamente complicadas” (kanji). A partir daí, a analogia com um sistema de escrita é mais claro ainda.
O autor alerta que quer que este livro “seja salvo das estantes de livros de arte”, e por isso providencia um capítulo ou anexo final, em que apresenta uma das formas identificadas num estudo de integração num contexto – num site – real. Não obstante, o propósito é pensar uma arquitectura de formas independentemente dessa contextualização empírica; daí que sejam formas “siteless”, sem sítio.
O que nos interessa então um livro desta natureza? O problema parece estar em que estas percepções e divisões entre rótulos tais quais “banda desenhada”, “ilustração”, “desenho”, se bem que importantes em termos de distribuição disciplinar, económica e até mesmo de poder cultural (a primeira continua, e continuará durante algum tempo, sob a impossibilidade de uma percepção social ampla e inteligente), são muito análogas ao olho partilhado pelas três irmãs cinzentas, as Graiai da mitologia grega: três mulheres com um só olho, que passavam entre si. Uma cegueira terrível e pesada. Um olho que apenas funciona com um suporte de cada vez. Literalmente, estas irmãs não eram capazes de se olhar entre si, de trocar olhares. Apenas de trocar o olho, mudando drasticamente de perspectiva, mas pagando com a cegueira total da anterior.
A reeducação do olhar, através de um entendimento de que o acto de desenhar, enquanto extensão do corpo, é, a um só tempo, sua inscrição, continuidade, projecção, herança, mas também método de inscrição própria, do corpo-no-mundo, de método inaugural de si mesmo, é o que nos permite reponderar essas relações e vê-las mais numa questão de continuidade, de questionamento das relações entre desenho e escrita, entre símbolo e idiossincrasia, entre sinal e mancha, entre expressão e comunicação.
Se houve detractores de Boullée, apelidando a sua arquitectura de “parlante”, isto é, de meras palavras, o gesto de Blanciak é o de promover um pensamento arquitectónico apenas “de desenho”. E é aí que reside o nosso interesse, se bem que estejamos a exercer uma pequena violência, violação, rapto, ao arrancarmo-lo do seu contexto preciso e querer usá-lo para um pensamento do emprego do desenho serial (ou até mesmo sequencial, se encontrássemos aqui raízes e fundamentos de uma promessa de incessante metamorfose) para melhor compreendermos as potencialidades do nosso território em contínua expansão. Haverá implicações reais no pensamento da arquitectura, decerto, mas as especificidades dessa disciplina escapam-nos (talvez venha a deixar aqui uma nota adicional).

O Armário Psicótico e Boas Maneiras. Marriette Tosel (Edições Eterogémeas)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 4.
Neste pequeno volume encerram-se dois livros. Dois títulos, duas histórias, duas séries de desenhos, dois gestos geminados.

Marriette Tosel dá-nos O Armário Psicótico e Boas Maneiras. Ambas as narrativas tratam de segredos de família, feitos daquele pó mesquinho que se varre para debaixo do armário e se promete vir a limpar seriamente mais tarde mas que se adia sempre e, depois, quando ganha vida própria e autonomia, vinga-se sobre a limpeza moral pública que se desejava visível no verniz social. Mas o que se guarda desse modo estala quando menos se espera. Boas Maneiras segue a mesma linha mas torna-se uma espécie de pequeno manual de educação que mostra como o desejo de educação dos pais, quando criado sobre os pecados e as mesquinhices dos adultos e a sua cegueira para com as liberdades possíveis, criam não belos filhos, mas monstrinhos. Podem até ser geniais na sua monstruosidade, mas monstros à mesma, o que não é bom para todos. Ou para ninguém, no fundo. (Mais) 

13 de outubro de 2008

imageneering the future, now. [participação no SHOT 50]

Por ocasião do simpósio internacional que comemora o 50º aniversário da Society for the History of Technology, realizado em Lisboa, foi organizado um painel que discute a ficção científica, a banda desenhada, e as suas relações com o pensamento científico, tecnológico, e ainda as suas dimensões históricas. Esta acção foi coordenada com o Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Foi-me feito o convite para participar, que aceitei de bom grado e com prazer. Cada participante (três, uma vez que o autor Luís Differ viu-se impossibilitado de participar) tinha cerca de 10 minutos para fazer uma pequena apresentação, em língua inglesa, à qual se seguiu uma sessão de perguntas e respostas.
Uma vez que havia pouco tempo, e importava(-me) mais procurar em que é que a banda desenhada pdoeria contribuir num simpósio de historiadores de ciência, isto é, onde se cruza uma disciplina das humanidades que impõe um discurso de uma "verdade de subjectividade humana" e outras das ciências, a qual é antes de uma "verdade factual e objectiva", elegi uma matéria específica e não global. Aqui vos deixo o texto tal qual o li, warts and all...:

Imageneering the future, now.
Comics are a privileged means of imagination. We are taking this word at its face-value, from imaginare, i.e., “to create an image (of something)”. Being comics a visual means – whether or not of a narrative nature – it becomes a platform in which ideas will be presented through a body, an image, a reality of sorts. And it’s cheaper than most of the other available visual means. You just need pencil, paper and a working brain.
As Baudelaire wrote, “Imagination is the queen of the truth, and the possible is one of its provinces.” This possible can only be understand as such in relation to the tangible, empirical world, but within the fiction world of comics, it is virtual, that is to say, it is real within it.
One way of approaching the theme of this conference and comics would be, for instances, that of the use of recent technology for or in the creation of comics – which would lead us to an entirely different approach, to wit, that of its reproducibility, the revisitation and recreation of the memory of comics as a form of art, and so on. However, we will circumscribe our approach to the use of the imagination within comics under the notion of technology and science.
Science fiction is a very interesting composed word. It almost sounds as an oxymoron, mixing two seemingly antagonistic things: if it’s fiction, it is not fact, and science is based on facts, even if these facts have solely a mathematical (mental) form. Science fiction has been with comics ever since they began, with Monsieur Pencil (1840) by Rodolphe Töpffer (even if you only accept Töpffer as the so-called “father of comics” to avoid further discussion at this moment). But it was mostly used for humour purposes, and criticism of societal blindness and prejudice, just has it had happened in Literature, with Cyrano de Bergerac’s L'Histoire comique des États et Empires de la Lune(1655), Voltaire’s Micrómegas (1752), or even Swift’s Gulliver’s Travels (1726).
I am not going to do a history of science fiction on comics, which would take too long, not to mention that, to be honest, it would be boring. Everyone knows about Buck Rogers and Flash Gordon, and all that, anyway.
This is to say that I could refer to a handful of authors who work on science fiction comics, understanding this concept as amply as possible, in order to include whatever other subgenres one would come across, such as “steam punk” or “science heroes”. Alan Moore would be a major star in this constellation, for instance.
I’ll be very brief but I hope that some ideas can be seen as useful for our discussion.
So, not only as a way of being a concise and direct, but also as an exercise of focalization, I would like to talk mainly of the experience of two comics authors, the Scottish writer Grant Morrison and the British writer Warren Ellis. Both of them work mainly for mainstream or midstream comics in the United States. I’ll go straight on to the works they’ve done which seem to be of interest for this occasion.
Grant Morrison is the creator of very, very weird comics. Although he works mainly today in mainstream publishers, including creating stories for household name characters such as Superman or Batman, he comes up with very strange storylines, using not only a good knowledge of comics history and pulp fiction, but also a bunch of free-floating references from anarchist literature, conspiracy theories, new age philosophies, Chinese divination systems, the Tarot, tantric sex magic and whatnot… He has explored realms of weird, fringe science in titles such as The Invisibles, The Filth, Animal Man, Doom Patrol, Seaguy, Vimanarama (which one can describe as Hindu Supergods Science Fiction) and We3 (which eventually will turn into a movie, and is about the conversion of pets into incredibly deadly war machines by the American military). Morrison works within the parameters of a fringe science concept in any given title, taking it to its last consequences. For instances, in Animal Man, the main character is able to tap into the “morphogenetic fields” of every single species. The notion of morphogenetic fields was proposed by Rupert Sheldrake but they are not mainstream science. Doom Patrol is about a group of extremely strange superheroes (stranger than the usual, that is, whether of the briefs-over-pants category like Superman or the angst-ridden teenage mutants like the X-men family), and their leader is always pushing the limit of both chaos and catastrophe theories. His Joker (Batman’s nemesis) was portrayed as someone who actually was supersane, and multiple personality disorder is seen as something good for our behaviour in the future, not as a hindrance. In one or two stories, he uses the concepts of Explicit and Implicit Order by David Böhm to explain the strange phenomena that happens to his characters and their worlds.
I wrote an article some years ago [Vértice no. 124, Set-Out 2005] about Morrison’s work as being similar to the Gedankenexperimenten, thought experiments (such as Schrödinger’s cat, for example)… There are many recurrent themes in his titles, such as reflections and mirrors, parallel worlds, passages in-between dimensions, about folds (as in singularity theory) and so on… Although he does not drawn them, and collaborates with many different artists, in many different books you find a recurrent image which is the so-called breaking of the fourth wall, used precisely to convey that idea of passage, extra-dimensions, etc. Characters fold the panels in which they are drawn, or they fall back into the white lines between panels, etc. It’s as if Morrison was using the formal specificities of comics’ language to give us that idea of passage.
As for Warren Ellis, also a writer with many artists working on his many titles, perhaps I can say that he basically works on two territories: that of hardcore science fiction like Orbiter or Ministry of Space or The Authority (with space ships, aliens, etc., but which can also be mixed with crime stories, adventure, superheroes, political fiction, etc.) and that of free will. From among his many stories, I can mention Global Frequency, about an agency that uses a network of brainy people to solve crimes or over the top problems such as hijackers of nuclear powerplants or genetic mad scientists, Lazarus Churchyard, Doktor Sleepless, City of Silence or Planetary, in which technology abounds and has gone awry: from telecommunication piercings to virtual links into the emotions of someone else, from satanic computer rituals to credit lines imbued in contact lenses, and so on… Good science fiction has usually a strong social dimension (also a critic to some of the present behaviours, of course, or an alert for the future), but Ellis comes up with worlds in which it is not easy to understand if they should be understood as utopias or dystopias. For instances, Ministry of Space is an alternative history, in which the German scientists behind V2 technology were brought to England, and thus making the British Empire the first to reach and colonize the Moon and Mars. Great advancement where technology is concerned, no doubt, but freedoms and liberties were kept under colonial rule (including segregation laws).
I mentioned “free will” in Ellis’ writings. This is a theme because in many moments, in different books, the characters or the situations ask why is technology not in the hands of everyone to invent and use? One example. At several points of his books, Ellis asks “why have we stopped going to the moon?” Now I’m sure many people here know of an objective, decisive answer for that, but the rhetorical, or better still, poetical question remains unanswered. And that is precisely the main purpose of Warren Ellis’ fictions, more or less into the hardcore sf genres or variations: the fact that technology development has been somewhat hijacked by corporations and cliques, therefore stealing the Future from the common “inventor”. When we were kids – or even as adults – we dreamt of flying to the moon, to space, to have a space gun or to ride a hovering car, or travel by teleportation… However, most science today, real hard fact science is done by remote control machines and mathematics. Not too much room for glorified juvenile dreams there, I guess. This is not a question of being wrong or right where science is concerned, it has to do with creating images, dreams, ideas.
The word, I believe, is imageneering. That is, the creation of ideas by a group of people (artists, in this case), in which there is no hindrance whatsoever, such as budgets or politics or, in fact, reality. So, perfect ideas can be reached (well, we could say that an idea, if it is an idea, is perfect in itself) in the realm of fiction. And as in a thought experiment, all the details can be thought of, tried out and pushed to their last consequences.
Comics are not better not worst than any art form. But it has a peculiar edge for being a means to create visually stories. A mixture of still images in sequence acting out the movements of characters, stories, worlds and ideas. They can be a tool for thinking, just as any other art form (even though I don’t want to reduce any or all art forms to any given function, mind you). They are, if you will, and to quote Warren Ellis once again, a blueprint for dreams.

Nota: agradecimentos à organização portuguesa do SHOT e a Nelson Dona, do FIDBA, pelo convite feito. As imagens foram colhidas da internet, e não das publicações em mão...

1 de outubro de 2008

Red Colored Elegy. Seiichi Hayashi (Drawn & Quarterly)

Duas mangás sob o signo do vermelho. 1.
Há uma adivinha anedótica muito conhecida na língua inglesa e bastante antiga: “o que é preto-e-branco e vermelho a toda a volta?”. A resposta é “os jornais”, e a razão é sobretudo sentida por se pensar naqueles jornais sensacionalistas – os “tablóides” – que apostam nas mais básicas e por vezes abjectas emoções do ser humano, a sua curiosidade mórbida e indiscreta, um abusivo interesse pelo denominador mais baixo... O sangue dos crimes passionais ou violentos que “pintam” os jornais.
Os dois livros de banda desenhada japonesa que discutiremos de seguida são a preto-e-branco e têm vermelho toda a volta (*). Porém, não poderiam estar mais longe dessa atitude mesquinha e débil que se adivinha na adivinha dos jornais... O seu preto-e-branco não suja as mãos e explorado de um modo tentado e pensado em todas as suas dimensões. E o vermelho surge antes como uma metáfora poderosa das emoções suscitadas e retratadas, e não um efectivo derrame passional. (Mais) 

Neige Rouge. Susumu Katsumata (Cornélius)

Duas mangás sob o signo do vermelho. 2.
Este outro livro tem uma natureza totalmente díspar em relação ao anterior. Se irmandades estabelece no seio da produção japonesa, será com Jun Hatanaka ou Shigeru Mizuki, ou alguns trabalhos curtos de Kazuichi Hanawa. Em relação aos primeiros, há o mesmo gosto pela revisitação de um tempo nostálgico, de um Japão que ia, se não desaparecendo, pelo menos se tornando mais diáfano, sob a luz fria da modernização, mas onde ainda havia algum espaço de sobrevivência para certas tradições, uma vivência mais campesina e mais coesa, mesmo que isso signifique um sentido de humor mais rude, baixo-ventre, enfim relacionado com o modo como se trabalhava, vivia e descomprimia. As afinidades com Mizuki prendem-se com a presença do fantástico ou do maravilhoso local, com as suas lendas, criaturas, fantasmas, ilusões. Mas sobretudo, com a despedida dos yokai (as criaturas) do mundo dos humanos (nesse sentido, seria curioso um estudo comparativo com as histórias de Gaiman e outros autores, para as tradições britânicas e/ou ocidentais), demonstrando-se a perda irreparável de outras dimensões com a chegada do mundo dito racional. O próprio traço de Katsumata é bem mais límpido e arredondado do que o de Hayashi (se exceptuarmos as intervenções dos “bonecos” da animação e a minimalização dos protagonistas), permitindo uma natureza mais próxima da mangá mais comercial, com desenhos mais suaves e “giros”, com o tipo de movimento, humor e tipificadas estratégias da mangá mais famosa... (Mais)