Um dos melhores possíveis exercícios, a meu ver, na contínua e aturada tarefa de leitura da banda desenhada, para a sua abordagem crítica, é a aproximação de duas obras díspares através de elementos-chave que possam ter em comum. Esta é, de quando em vez, uma proposta perseguida no lerbd. As obras aqui aproximadas são os últimos livros dos autores francês Blutch e do canadiano Seth, com, respectivamente, Blotch. Oeuvres Complètes e George Sprott (em rigor, Blotch é a reedição em um só volume de trabalhos curtos da Fluide Glacial iniciados em 1999, mas agora surge-nos enquanto volume único, reorganizado, e até mesmo premiado; o livro de Seth foi também alvo da chamada “pré-publicação”, na secção “The Funny Pages”, do New York Times Magazine (disponível em pdfs, aqui). O material comum em questão é a seguinte: tratam-se de tentativas biografias sobre dois artistas ou homens do entretenimento, as suas relações com os pares e o mundo, e as suas repercussões na linguagem artística em que operam, ao mesmo tempo que desenham um retrato dos seus tempos particulares, os seus imaginários, os ares que os atravessavam e, ainda, constituem uma espécie de espelho distorcido do tempo actual, e até mesmo das pessoas dos seus criadores reais. E, claro está, tratarem-se de biografias de pessoas que jamais existiram. A comparação, porém, esgotar-se-á aí...
Sem querer generalizar, e sobretudo num campo tão perigoso como o de tomar as nacionalidades como correlação aproblemática de uma certa atitude de criação, podemos no entanto notar que a verve irónica e auto-derisória (o nome “Blotch” é tanto uma corruptela clara de “Blutch” quanto um recurso ao inglês para “mancha”) francesa é bem mais visível e aplicada no que na pesquisa poética do quotidiano do canadiano Seth. Ponto final na generalização. Brava parte dessas atitudes são pertença dos próprios autores, e pouco mais. Mas se nos recordarmos de uma brevíssima peça aqui debatida de Emile Bravo em torno da famosa obra de Jacobs numa versão nazi, ou relembrarmos o Pascin de Sfar, ou atentarmos a algumas das estratégias de Les Aventures d’Hergé, de Bocquet, Fromental e Stanilas, já para não falar da bateria de curtas dos autores de L’Association, os livros dentro dos livros de David B., encontraremos algo dessa ironia muito específica. No que diz respeito à transformação de uma obra de banda desenhada cuja história sirva de plataforma para se auto-pensar, também não estamos propriamente em território inovador, e que pode descender de obras tão longíquas como próximas, onde se encontrará desde Los Profesionales de Gimènez ao Cochquixtia: O Despertar de Diniz Conefrey.
As capas a cores dos álbuns anteriores de Blotch. Oeuvres Complètes, e a presente, aproximam-no, novamente, do Pascin, de Sfar, quer no fundo como na forma, e faz-nos adivinhar um Blutch capaz de reinventar um artista, Blotch, que não tivesse trabalhado em revistas como a Le Rire ou a Charivari (ou a Fluide Glacial, adiantada no seu universo ficcional, como se tivesse existido na Paris dos anos 30), mas antes num trabalho de ilustração mais “levantado”, em termos de apreciação social, como a de romances, clássicos da literatura, salões... No entanto, uma abordagem mais profunda e com saberes (que não possuo) sobre essas revistas republicanas, cosmopolitas e dadas a um entendimento largo do que significa a cultura e as artes, faria o entendimento do contraponto dessa fictícia Fluide Glacial conservadora mais notável. Já para não falar das associações à leitura de todas as revistas humorísticas ilustradas a uma certa tendência politizada “de esquerda” da época. Pois este Blotch é de um reaccionarismo e arrogância atrozes que nos faz condierá-lo uma personagem execrável. Todavia, é precisamente esse retrato o que nos permite encontrar o caminho para a auto-derisão, uma forma muito subtil de desenhar a caricatura de um certo posicionamento francês, nacionalista e xenófobo, cheio de si e cego à experiência da alteridade. Cada episódio (que presumo tenha sido apresentado individualmente na revista) é uma pequena parcela, uma história completa, da vida desse artista, que agregadas e ordenadas, nos oferecem um percurso quase completo. Existem memórias que podem ser falsas, ou pelo menos facciosas, já que parecem ser apresentadas (mesmo visualmente) apenas sob a perspectiva do próprio Blotch, sempre a seu favor, em gritante contraste com o que cnsegue desenvolver no seu presente: um uso curioso da capacidade da banda desenhada em apresentar visualmente aquilo a que nós apenas temos acesso verbalmente, e criando um paradoxo moral desta personagem.
Em torno deste Blotch, encontraremos outras personagens, que não são mais do que decalques de autores reais, colegas e amigos de Blutch, como Gouttelette (Michel Gaudelette), Larssinet (Manu Larcenet) e Goussein (Goosens), passando ainda pela colaboração de Thiriet para criar os gags do arquirival de Blotch, Jean Bonnot. Há ainda uma participação de um jovem autor belga, Georges Rémi, que mostrando a sua personagen “Tintin”, leva ao riso de desprezo dos artistas da falsa Fluide antiga (episódio na íntegra aqui). Há ainda toda uma procissão de nomes sonantes e famosos de personalidades que passaram pela Paris dos anos 20 e 30, usualmente passando “ao lado” de Blotch, que falha redondamente no que diz respeito ao desenvolvimento da herança do futuro. A personalidade de Blotch, racista, machista, nacionalista, quasi-fascista, é uma espécie, como vimos, de auto-caricatura de Blutch ele-mesmo, sem dúvida, mas quem sabe talvez do próprio francês mediano (que digo eu?, do ser humano mediano!). Terror em ponto pequeno através de humor em ponto grande.
Se em Pascin Sfar fazia-se valer das várias técnicas e abordagens matéricas do desenho para fazer passar a fluidez das sensações e experiências do pintor protagonista, Blotch recria uma Paris la foule com o seu próprio desenho, constante e legível, criando apenas bolsas de diferença, e de transporte temporal, através dos cartoons do seu protagonista e dos seus colegas, amigos ou inimigos. A “obra completa” de Blotch, portanto, resumir-se-á à meia-dúzia (15, para ser exacto) de cartoons que são apresentados no interior desta ficção. Esta é uma estratégia idêntica àquela de Seth em It’s a good life if you don’t weaken, em que se perseguia o autor-fantasma Kalo, se bem que o nível de diferenciação fosse, no autor canadiano, mais esbatido do que no francês. Para ele seguimos.
Nota final: por uma razão tecno-temperamental, o scanner não funciona, e todas as imagens foram retiradas aqui e dali, na internet.
Sem comentários:
Enviar um comentário