Serve o presente post para informar os interessados que temos a honra e o prazer de vir a estar presentes no Salão Europeu de Banda Desenhada em Bucareste, Roménia, na qualidade de comissários de uma pequena mas esperemos que significativa exposição. As condições da mesma ditaram a uma escolha reduzida mas substancial de quatro artistas, a saber, Filipe Abranches, Marco Mendes, Paulo Monteiro e Susa Monteiro. Sem quaisquer veleidades de hierarquia ou absolutos, estes quatro autores serão excelentes embaixadores da contemporaneidade desta arte entre nós.
Estaremos presentes pessoalmente, com uma brevíssima e panorâmica apresentação sobre a banda desenhada portuguesa, sobretudo a contemporânea, e somos capaz de mostrar o "Pássaros", animação de Filipe Abranches, e esperemos nessa oportunidade mostrar a nossa diversidade e qualidade, lançando, esperemos também, redes de contacto e oportunidades futuras.
Para todos os efeitos, visitem o site do evento. Na página do LEBD (apenas no Facebook) colocaremos na altura devida mais informações e/ou fotos.
20 de outubro de 2011
O céu é meu é meu o mar. Topedro e Stefana (auto-edição)
Quando lemos um livro, vamos descobrindo, página a página, frase a frase, e desenho a desenho (no casos dos nossos livros) os pequenos elementos que se vão coalescendo até uma ideia final, quando o fechamos (se bem que ela possa ir ganhando qualificações e novos contornos ao longo da sua vida nas nossas memórias, releituras, erros de interpretação e rememoração, novas leituras e intertextualidades)… Uma das questões mais interessantes e complexas é a relação entre a ordem do que nos é contado e a ordem pela qual recriamos esse universo quando nos lembramos dele, depois da leitura. Imaginem ou recordem-se de todas aquelas histórias que leram, viram, escutaram, que iam seguindo uma ordem cronológica muito própria, uma desarrumação criativa, ou até mesmo uma impossibilidade temporal (as metalepses): quando a desejam recontar a outra pessoa, as mais das vezes apagamos essa estranheza e reconstruímos essa narrativa numa estrutura linear e suave (“é sobre um homem que se esquece do nome da mulher e depois…”, “esta história é sobre um homem morto que não sabe que está morto e…”). É, por exemplo, o problema clássico da narratologia entre o tempo da história e o tempo da narrativa, ou entre a fabula e o sjuzhet, ou outros pares desta natureza. O problema é que essa discrepância é, nesse recontar nosso posterior, apagada e nega profundamente muito do prazer sentido no próprio momento da leitura. Quer dizer, parte do prazer, senão o imo desse mesmo prazer, está no percurso tacteante que perseguimos ao longo da leitura, na sensação de perdidos no denso bosque, nas promessas goradas de entendimento da ficção.
Este pequeno livro, oblongo, tem duas partes, separáveis e identificáveis fisicamente. Uma a que daremos o nome de “ficção”. A outra a que chamaremos de “explicação”. A primeira é-nos narrada por um narrador, tal qual, a segunda, pelo autor. A primeira pauta-se pelos contornos da ficção, a segunda tenta apresentar elos à realidade. A parte da ficção revela-se ser uma adaptação de um texto de Stefana Serafina, “The Daughter of Time”. Pequeno melodrama entre um professor de artes visuais norte-americano a dar aulas na FBAUL e uma das suas alunas, que se apaixona por ele, aventuras e fuga para a Zambujeira. A parte “explicativa” revela-se como diário do autor (António Pedro Monteiro Ribeiro, assinando Topedro), em que se explora um momento fugaz de férias na Zambujeira, quando o autor se cruza com uma vizinhas de arrendamento, búlgaras (uma delas, Stefana Serafina), e estas lhe enviam mais tarde, como forma de agradecimento e resposta a um breve desentendimento, “um argumento para um filme inspirado na minha figura”. Apesar do autor terminar com uma nota auto-derisória (“vanitas vanitatum…”), o jogo de reflexos entre as pessoas envolvidas é por demais claro. Retornos e devoluções de vários actos criativos cruzados, da realidade para a ficção e de regresso à realidade (ou vice-versa, o que não é a mesma coisa). E são estas informações finais aquelas patinas que se estendem por todo o livro, por toda(s) a(s) narrativa(s), que nos impedem de as poder ler aqui, de as interpretar e partilhar com os demais leitores, ou promessas de leitor, sem amalgamar toda essa experiência. Isto é, não é possível devolver essa inocência que se vai desfazendo ao longo da leitura. De novo, repetimos o que já foi dito tantas vezes, a crítica nunca é de livros a ler, mas lidos - aquele é o erro com que as recensões jornalísticas se revestem, pois servem apenas de aperitivo, de publicidade secundária, de uma espécie de exercício de empatia e simpatia para com o autor e os leitores, ambos pólos absolutamente secundários no combate com a própria obra, já que a intenção dos primeiros e dos segundos em nada pode coarctar a leitura efectiva da obra. Essa inocência desaparece para sempre no acto crítico.
Apesar do autor ter algumas relações com círculos independentes da banda desenhada (via Gambuzine), esta é, parece-nos, a sua primeira incursão no objecto impresso (por sinal, uma óptima escolha no mercado do print-on-demand). E este, o livro, leva logo a uma leitura muito particular, íntima, que nenhum outro objecto poderá permitir da mesma maneira tão física.
A intimidade porém, faz-se auscultar de várias maneiras em O céu é meu é meu o mar. Cada página é ocupada por apenas uma imagem, sendo essa imagem, pelo menos aparentemente, um fac-simile de uma página de um bloco de desenho, possivelmente papel de aguarela, pelas texturas reveladas sob as passagens das cores diáfanas e sobrepostas, que mal se contêm no interior de linhas pretas delineadas a pincel, aparo ou caneta de tinta-da-China. (se bem que é possível que haja, aqui e ali, manipulação digital para introduzir um pormenor mais realista, um logotipo de um sobrescrito, uma fotografia). Há portanto uma passagem entre o diário gráfico - e toda a política, digamos assim, que o rege: a sua intimidade, a sua vontade em encerrar-se no mínimo tempo de partilha, talvez mesmo a invisibilidade absoluta, a despreocupação esteticizante ou estilística, a proximidade com o gesto do rápido apontamento, fugaz e desimportante - e o livro ofertado à leitura - nessa esfera, o desejo de partilha absoluta, a sua entrega e perda junto ao leitor, a sua queda no objecto público, a integração social numa tradição, num género, num estilo, etc. Um não é de forma alguma o equivalente do outro. Se fisicamente podem não aparentar quaisquer diferenças, podem até mesmo confundir-se no mesmo objecto, os seus contornos ontológicos, e portanto éticos e estéticos, não são irmanáveis. São distintos em quase todos os seus pontos. Essa transformação é já em si mesma de um interesse agudo.
A intimidade da trama narrativa também é reveladora. A história, para além dos seus vaivéns autorais ou partilhados entre os seus co-autores, ou autores espelhando-se uns aos outros de várias maneiras, é também ela mesma de um reflexo clássico, quase um cliché, entre professor e aluna, mestre e discípula, clássica transferência, variações de Pigmalião e Lolita, tudo a um só tempo. A história está centrada na primeira pessoa de Paul Ridges, professor de pintura na FBAUL, de 53 anos, procurando criar rotinas em Portugal, e Maria (como não?), a jovem estudante, eterna jovem, apaixonada, sem amanhãs e preocupações, embevecida com o professor, ou com uma ideia que tem dele, e da liberdade, ou de uma ideia de liberdade que alimenta à força de sonhos. Depois seguem-se os diálogos costumeiros, primeiros aqueles em que as pessoas se tacteiam umas às outras, à procura de recostos e reentrâncias que possam ser comuns, depois os primeiros embates directos em que as emoções surgem à flor da pele, depois o ardor do consumo, depois o lento choque da realidade, e o desfecho, não totalmente dito mas detectável, trágico.
Os diálogos entre um e outro revelam daquelas filosofias que têm tanto de inocente como de ingénuo, mas sobretudo têm de embevecido e de mergulhado no acto de viver sem mais. “A vida não acaba. Apenas muda. Como o amor, nunca acaba. Acreditas na eternidade, Paul?”, pergunta Maria. A voz de Paul, porém, é tanto reveladora do peso da existência como do cinismo que quem vive de olhos mais abertos, e talvez menos apaixonados. “Vou só regressar à minha vida”.
O autor do livro opta por utilizar, para a “voz” de Paul, letras maiúsculas, e para a de Maria, regras mais normalizadas. Essa flutuação é algo desequilibrada, tornando a presença de Paul, já de si central, focalizadora da acção, demasiado pesada em relação à da sua jovem amante. O facto de serem letras mecânicas sobrepostas aos desenhos, sem traços de manualidade, tornam a sua presença visível algo fria e desligada da matéria visual. Esta pauta-se pelas características já apontadas, da leveza e brevidade do desenho ou da aguarela à vista dos objectos e das paisagens próprias do diário gráfico (mas há pelo menos um caso em que num só plano de composição se sobrepõem duas sensações do protagonista: a sensação da realidade e as sensações do foro interior, os “turbilhões abissais”). A opção por as colocar no centro de uma mancha negra tanto nos obriga a focar na imagem, e menos na sua presença no objecto, como nos isolam nelas. Há uma oscilação entre imagens na horizontal e outras na vertical, mas tirando o conteúdo imagético, não é claro qual o modo que se pretende instaurar como esse movimento, que momentos se desejam marcar com essa diferenciação, já que não parece coincidir com a narrativa. Já o facto das imagens coincidirem quase sempre com uma perspectiva ocular da própria personagem (com uma ou duas excepções) ajudam talvez a sublinhar a construção subjectiva de toda a história, fazendo com que todos esses elementos, em discrepância ou desequilíbrio interno, se encaixem precisamente na falta de unidade - psicológica, de humor, de vivência - da experiência humana (serão opções as que estão disponibilizadas em The Daugther of Time? Caso o sejam, as do livro revelam uma escolha mais desviante mas por isso mais apropriada à proximidade da intimidade desejada). E há ainda a última imagem, da parte “ficcional”, que parece querer roubar-nos à esfera das personagens principais, mas surge como uma ponta solta.
Seguem-se então as folhas do diário do autor, apenas a linhas pretas e manchas cinzentas (aguadas?), mais caligráficas ainda, e autobiográficas, servindo de coda explicativa ou contextualizadora do acto de transformações sucessivas que acabáramos de ler. Sobre essa relação entre as duas partes, já falámos acima.
Uma breve troca de impressões com o autor levou a um entendimento que o interesse maior ou original estava no gesto que é permitido cobrir pela manutenção dos diários gráficos, cuja natureza não se presta propriamente para as narrativas, mas antes para uma acumulação de ideias desconjuntas, ou inconjuntos, como queria Pessoa, em que poderão, decerto, emergir elos temáticos, visuais, ou outros, mas a causalidade não é de forma alguma obrigatória. O emprego de uma trama narrativa oferecida permite essa associação, ainda que não seja possível chegarmos a uma ideia final - nem tal é desejável - sobre a precedência das imagens sobre o texto, ou quais as condições de produção das mesmas em relação à “adaptação”, etc. O mais importante é tomarmos o encontro de dois movimentos aparentemente contraditórios: o acto livre, despreocupado, quase votado ao silêncio e à invisibilidade do acto diário do desenho, e a programação e implicações do desejo ficcional/narrativo. No blog do autor, encontraremos outras breves narrativas, ou até mesmo adaptações de (des)troços de obras lidas, situações relâmpago, cujo fascínio é facilmente apreensível por quem partilhar das mesmas sensações. Micro-narrativas num registo ainda mais caligráfico, e sem o recurso a cores, reforçando a ideia do apontamento, da captura da vontade momentânea. O que é curioso é que se nota ainda também numa recorrência de alguns temas, talvez mais marcado o do “encontro entre a espiritualidade religiosa e outras formas de entender o universo”, como escrevemos ao autor, incluindo a ciência. Mas talvez seja mais do que isso, talvez sejam os interstícios em que essas áreas se encontram e se interseccionam e se friccionam, libertando uma nova matéria de pensamento… A veia autobiográfica, pelo menos da “2ª” parte de O céu é meu… é possivelmente um pequeno desvio, mas apenas o tempo ou novas experiências publicadas dirão qual o seu factor de permanência.
Nota final: um agradecimento ao autor, pela oferta do seu livro. Para mais informações ou obter uma cópia, ver o blog do autor. As nossas desculpas pela falta de qualidade das imagens, não imputáveis ao autor.
Este pequeno livro, oblongo, tem duas partes, separáveis e identificáveis fisicamente. Uma a que daremos o nome de “ficção”. A outra a que chamaremos de “explicação”. A primeira é-nos narrada por um narrador, tal qual, a segunda, pelo autor. A primeira pauta-se pelos contornos da ficção, a segunda tenta apresentar elos à realidade. A parte da ficção revela-se ser uma adaptação de um texto de Stefana Serafina, “The Daughter of Time”. Pequeno melodrama entre um professor de artes visuais norte-americano a dar aulas na FBAUL e uma das suas alunas, que se apaixona por ele, aventuras e fuga para a Zambujeira. A parte “explicativa” revela-se como diário do autor (António Pedro Monteiro Ribeiro, assinando Topedro), em que se explora um momento fugaz de férias na Zambujeira, quando o autor se cruza com uma vizinhas de arrendamento, búlgaras (uma delas, Stefana Serafina), e estas lhe enviam mais tarde, como forma de agradecimento e resposta a um breve desentendimento, “um argumento para um filme inspirado na minha figura”. Apesar do autor terminar com uma nota auto-derisória (“vanitas vanitatum…”), o jogo de reflexos entre as pessoas envolvidas é por demais claro. Retornos e devoluções de vários actos criativos cruzados, da realidade para a ficção e de regresso à realidade (ou vice-versa, o que não é a mesma coisa). E são estas informações finais aquelas patinas que se estendem por todo o livro, por toda(s) a(s) narrativa(s), que nos impedem de as poder ler aqui, de as interpretar e partilhar com os demais leitores, ou promessas de leitor, sem amalgamar toda essa experiência. Isto é, não é possível devolver essa inocência que se vai desfazendo ao longo da leitura. De novo, repetimos o que já foi dito tantas vezes, a crítica nunca é de livros a ler, mas lidos - aquele é o erro com que as recensões jornalísticas se revestem, pois servem apenas de aperitivo, de publicidade secundária, de uma espécie de exercício de empatia e simpatia para com o autor e os leitores, ambos pólos absolutamente secundários no combate com a própria obra, já que a intenção dos primeiros e dos segundos em nada pode coarctar a leitura efectiva da obra. Essa inocência desaparece para sempre no acto crítico.
Apesar do autor ter algumas relações com círculos independentes da banda desenhada (via Gambuzine), esta é, parece-nos, a sua primeira incursão no objecto impresso (por sinal, uma óptima escolha no mercado do print-on-demand). E este, o livro, leva logo a uma leitura muito particular, íntima, que nenhum outro objecto poderá permitir da mesma maneira tão física.
A intimidade porém, faz-se auscultar de várias maneiras em O céu é meu é meu o mar. Cada página é ocupada por apenas uma imagem, sendo essa imagem, pelo menos aparentemente, um fac-simile de uma página de um bloco de desenho, possivelmente papel de aguarela, pelas texturas reveladas sob as passagens das cores diáfanas e sobrepostas, que mal se contêm no interior de linhas pretas delineadas a pincel, aparo ou caneta de tinta-da-China. (se bem que é possível que haja, aqui e ali, manipulação digital para introduzir um pormenor mais realista, um logotipo de um sobrescrito, uma fotografia). Há portanto uma passagem entre o diário gráfico - e toda a política, digamos assim, que o rege: a sua intimidade, a sua vontade em encerrar-se no mínimo tempo de partilha, talvez mesmo a invisibilidade absoluta, a despreocupação esteticizante ou estilística, a proximidade com o gesto do rápido apontamento, fugaz e desimportante - e o livro ofertado à leitura - nessa esfera, o desejo de partilha absoluta, a sua entrega e perda junto ao leitor, a sua queda no objecto público, a integração social numa tradição, num género, num estilo, etc. Um não é de forma alguma o equivalente do outro. Se fisicamente podem não aparentar quaisquer diferenças, podem até mesmo confundir-se no mesmo objecto, os seus contornos ontológicos, e portanto éticos e estéticos, não são irmanáveis. São distintos em quase todos os seus pontos. Essa transformação é já em si mesma de um interesse agudo.
A intimidade da trama narrativa também é reveladora. A história, para além dos seus vaivéns autorais ou partilhados entre os seus co-autores, ou autores espelhando-se uns aos outros de várias maneiras, é também ela mesma de um reflexo clássico, quase um cliché, entre professor e aluna, mestre e discípula, clássica transferência, variações de Pigmalião e Lolita, tudo a um só tempo. A história está centrada na primeira pessoa de Paul Ridges, professor de pintura na FBAUL, de 53 anos, procurando criar rotinas em Portugal, e Maria (como não?), a jovem estudante, eterna jovem, apaixonada, sem amanhãs e preocupações, embevecida com o professor, ou com uma ideia que tem dele, e da liberdade, ou de uma ideia de liberdade que alimenta à força de sonhos. Depois seguem-se os diálogos costumeiros, primeiros aqueles em que as pessoas se tacteiam umas às outras, à procura de recostos e reentrâncias que possam ser comuns, depois os primeiros embates directos em que as emoções surgem à flor da pele, depois o ardor do consumo, depois o lento choque da realidade, e o desfecho, não totalmente dito mas detectável, trágico.
Os diálogos entre um e outro revelam daquelas filosofias que têm tanto de inocente como de ingénuo, mas sobretudo têm de embevecido e de mergulhado no acto de viver sem mais. “A vida não acaba. Apenas muda. Como o amor, nunca acaba. Acreditas na eternidade, Paul?”, pergunta Maria. A voz de Paul, porém, é tanto reveladora do peso da existência como do cinismo que quem vive de olhos mais abertos, e talvez menos apaixonados. “Vou só regressar à minha vida”.
O autor do livro opta por utilizar, para a “voz” de Paul, letras maiúsculas, e para a de Maria, regras mais normalizadas. Essa flutuação é algo desequilibrada, tornando a presença de Paul, já de si central, focalizadora da acção, demasiado pesada em relação à da sua jovem amante. O facto de serem letras mecânicas sobrepostas aos desenhos, sem traços de manualidade, tornam a sua presença visível algo fria e desligada da matéria visual. Esta pauta-se pelas características já apontadas, da leveza e brevidade do desenho ou da aguarela à vista dos objectos e das paisagens próprias do diário gráfico (mas há pelo menos um caso em que num só plano de composição se sobrepõem duas sensações do protagonista: a sensação da realidade e as sensações do foro interior, os “turbilhões abissais”). A opção por as colocar no centro de uma mancha negra tanto nos obriga a focar na imagem, e menos na sua presença no objecto, como nos isolam nelas. Há uma oscilação entre imagens na horizontal e outras na vertical, mas tirando o conteúdo imagético, não é claro qual o modo que se pretende instaurar como esse movimento, que momentos se desejam marcar com essa diferenciação, já que não parece coincidir com a narrativa. Já o facto das imagens coincidirem quase sempre com uma perspectiva ocular da própria personagem (com uma ou duas excepções) ajudam talvez a sublinhar a construção subjectiva de toda a história, fazendo com que todos esses elementos, em discrepância ou desequilíbrio interno, se encaixem precisamente na falta de unidade - psicológica, de humor, de vivência - da experiência humana (serão opções as que estão disponibilizadas em The Daugther of Time? Caso o sejam, as do livro revelam uma escolha mais desviante mas por isso mais apropriada à proximidade da intimidade desejada). E há ainda a última imagem, da parte “ficcional”, que parece querer roubar-nos à esfera das personagens principais, mas surge como uma ponta solta.
Seguem-se então as folhas do diário do autor, apenas a linhas pretas e manchas cinzentas (aguadas?), mais caligráficas ainda, e autobiográficas, servindo de coda explicativa ou contextualizadora do acto de transformações sucessivas que acabáramos de ler. Sobre essa relação entre as duas partes, já falámos acima.
Uma breve troca de impressões com o autor levou a um entendimento que o interesse maior ou original estava no gesto que é permitido cobrir pela manutenção dos diários gráficos, cuja natureza não se presta propriamente para as narrativas, mas antes para uma acumulação de ideias desconjuntas, ou inconjuntos, como queria Pessoa, em que poderão, decerto, emergir elos temáticos, visuais, ou outros, mas a causalidade não é de forma alguma obrigatória. O emprego de uma trama narrativa oferecida permite essa associação, ainda que não seja possível chegarmos a uma ideia final - nem tal é desejável - sobre a precedência das imagens sobre o texto, ou quais as condições de produção das mesmas em relação à “adaptação”, etc. O mais importante é tomarmos o encontro de dois movimentos aparentemente contraditórios: o acto livre, despreocupado, quase votado ao silêncio e à invisibilidade do acto diário do desenho, e a programação e implicações do desejo ficcional/narrativo. No blog do autor, encontraremos outras breves narrativas, ou até mesmo adaptações de (des)troços de obras lidas, situações relâmpago, cujo fascínio é facilmente apreensível por quem partilhar das mesmas sensações. Micro-narrativas num registo ainda mais caligráfico, e sem o recurso a cores, reforçando a ideia do apontamento, da captura da vontade momentânea. O que é curioso é que se nota ainda também numa recorrência de alguns temas, talvez mais marcado o do “encontro entre a espiritualidade religiosa e outras formas de entender o universo”, como escrevemos ao autor, incluindo a ciência. Mas talvez seja mais do que isso, talvez sejam os interstícios em que essas áreas se encontram e se interseccionam e se friccionam, libertando uma nova matéria de pensamento… A veia autobiográfica, pelo menos da “2ª” parte de O céu é meu… é possivelmente um pequeno desvio, mas apenas o tempo ou novas experiências publicadas dirão qual o seu factor de permanência.
Nota final: um agradecimento ao autor, pela oferta do seu livro. Para mais informações ou obter uma cópia, ver o blog do autor. As nossas desculpas pela falta de qualidade das imagens, não imputáveis ao autor.
17 de outubro de 2011
Four Color Fear. Greg Sadowski, ed. (Fantagraphics)
O fascínio pelo terror é algo de muito antigo na experiência humana, presente até mesmo na necessidade da criação de figuras aterradoras, existentes no folclore de todas as culturas, e desde logo nas descrições literárias mais recuadas da Antiguidade, com as suas qualificações específicas. Mas a sua manipulação criativa num género literário, que depois se verteria noutros modos narrativos, como o cinema e a banda desenhada (o teatro não seria excepção, pense-se no Grand Guignol), tem as suas raízes imediatas no Gótico do século XVIII. Esse género ganharia contornos específicos a cada um dos seus momentos de desenvolvimento histórico, e - aproximamo-nos do material da antologia que nos traz aqui - nos anos 1950, nos Estados Unidos, ganharia especificidades que bebiam das circunstâncias político-culturais em que se inseria. Recordemos algumas: a esperança versus o medo do nuclear, o conforto materialista e caseiro do pós-guerra e a ameaça “invisível” dos Comunistas no interior do país, novas formas de violência presentes sobretudo na delinquência juvenil, um entendimento dos limites da ciência e dos terrores que dela poderiam nascer… mas não são apenas esses os temas que encontraremos nas histórias de Four Color Fear. Forgotten Horror Comics of the 1950s. Encontraremos aqui também outros princípios que revelarão princípios de xenofobia (literalmente “medo do estrangeiro”), de superioridade moral e civilizacional perante uma outra cultura, machismo, desconfiança do génio artístico e de modos de expressão diferentes, etc. Até o LSD tem um papel numa das histórias, desenhada por Basil Wolverton. (Mais)
16 de outubro de 2011
Os Animais Domésticos. Maria João Worm (Quarto de Jade)
Em termos de produção, este livro contém material feito antes de Electrodomésticos Classificados, com o qual estabelece mais do que uma afinidade, quer dizer, para além da óbvia relação de pertencer à mesma mão autoral, partilha elos semânticos, iconológicos, temáticos, etc. Essa informação, porém, é um problema em si mesmo. Por um lado, trata-se de uma camada cujo acesso não é universal aos leitores, logo, é totalmente desprovida de importância para a leitura, interpretação e fruição da obra da sua parte (tal como é a liberdade de ler um livro de uma autora e não ler um outro da mesma, e isso não significar uma leitura mais pobre necessariamente). Por outro, mal ela surge, é impossível dissipá-la e não querer que estabeleça uma qualquer pressão de interpretação sobre o livro e, até retrospectivamente, sobre o outro.
Este é um objecto belíssimo, em acordeão, impresso em offset, mas baseado em trabalhos da artista em linogravura (julgamos nós), feitos sobre papel de seda, multicoloridos, com legendas escritas numa ponta de lápis afinadíssima e ainda a intervenção de carimbos. Tudo isto faz parte do arsenal material de Maria João Worm, que sempre foi não apenas pluridisciplinar mas totalmente livre, flutuante e mesclado. O resultado são 9 imagens, cada uma com um animal (nalguns casos aos pares, num só dois animais) diferente ocupado numa tarefa doméstica - passar a ferro, lavar os rodapés estender a roupa, lavar a loiça. Há ainda um texto final, que pode ser visto como uma mistura de texto explicativo e programático, pequeno poema em prosa, ou condutor de ideias. Nele, a autora (imaginemos que se trata de um exercício autobiográfico) conta como quando começou a cumprir tarefas domésticas as suas referências eram do mundo da arte, o que a levaria a ser como “Bonnard a dar banho à loiça” ou “Matisse nas molas”… O resultado é que a sua “profissão sincera era a de doméstica plástica”. Que cada animal ou par de animais seja uma projecção de uma mesma pessoa parece estar prometida na capa da publicação, onde uma mulher se encontra numa pausa do seu trabalho, rodeada dos seus animais. O que veremos no interior serão o seu sonho acordado?
Este livro não é narrativo, no sentido em que não tem uma situação unívoca que se vai complexificando e desenvolvendo ao longo das páginas. Não há cruzamentos entre as personagens, nem momentos de cronologias múltiplas. Trata-se tão-somente de uma colecção de imagens díspares, todas unidas pelas tarefas domésticas e pelo facto de serem animais antropomorfizados a cumprirem-nas. Esta antropomorfização é feita de uma forma simples, sem recorrer a transformações icónicas ou figurativas sobre os animais (uma das mais usuais estratégias na ilustração infantil, por exemplo), ou manipulação das escalas, com a excepção das suas posições ou gestos. Na verdade, recorda-nos o emprego que Ladislaw Starewicz fazia com os insectos nos seus filmes de animação, cujos resultados são sempre unheimliche.
De certa forma, é como se fosse uma forma de dar corpo ou imagem a uma tradição popular portuguesa, que encontra nos “Contos da Carochinha” a sua prestação mais acabada. Seria interessante levantar daí as implicações sócio-culturais, os papéis que os animais tinham para representarem tipos da paisagem portuguesa, a distribuição de papéis ao longo de linhas sexuais, económicas e culturais, e tentar encontrar que ecos poderiam ter com estes animais domésticos. Estas imagens, e os seus brevíssimos textos explicativos, legendas quase desprovidas de qualificativos, criam uma imagem ideal do espaço doméstico, semi-ficcional semi-realista. Os pormenores gráficos, a forma como alisam a representação e tornam cada um destes espaços numa superfície (independentemente de serem trabalho de gravura, que implica sempre uma ideia de profundidade, de escavamento dessa mesma superfície lisa original, e esta questão complicar-se-á com o uso das cores), concorrem para essa imagem idealizada.
Se bem que não apresente um mesmo nível de complexidade, este livro de Worm aparenta-se ainda com os emblemata clássicos, como os de Alciato. Invertendo a presença de dois textos (o mote, inscriptio, e um poema narrativo/explicativo, subscriptio) e uma imagem (pictura), a artista apresenta sempre duas imagens - uma maior, gravada, e uma menor, carimbada - e uma brevíssima frase. No entanto, a relação da imagem menor, icónica, esquemática, carimbada, não traz uma dimensão de desdobramento da primeira imagem, mas apenas uma sua simplificação, uma espécie de sublinhado, de ponto final. As imagens gravadas apresentam sempre um trabalho de duas ou três cores (não contando com o branco da não-impressão), levemente descentrados ou não respeitando os contornos dos objectos, ou até mesmo em que cada cor se comporta como uma superfície autónoma, todas elas sobrepostas sem hierarquias claras, o que leva a uma sensação de desfocamento, de perda de controlo (onde, até à década de 1970, isto seria visto como um erro de impressão, Maria João Worm explora-o na sua totalidade como mais um instrumento de expressão e criação plástica). Daí que a segunda imagem menor possa servir de contraponto decisivo.
Ao mesmo tempo, a moldura branca em torno das imagens centrais, a sua colocação no centro da página, e as letras a lápis muito bem desenhadas, fará recordar também um álbum de fotografias, no qual quem o compõem anota uma breve rememoração, para mais tarde recordar. Daí que algumas sejam meramente descritivas, sem mais - “1 Porco passa a ferro se 1 Peixe borrifar a água” -, outras acrescentem informações circunstanciais - “2 Coelhos estendem a roupa num dia de vento” - , outras ainda atinam numa sensação da personagem - “1 Gato a sacudir minuciosamente um pano do pó á janela”. Claro que aquele “se” da primeira frase já possui em si mesmo a promessa de um desdobramento maior narrativo, estabelecendo uma relação, mais do que de cooperação, de dependência entre um e outro, senão mesmo hierárquica. Porque é que o peixe poderá não borrifar a água? Por uma briga anterior? A relação entre os dois encontra-se frágil?
Os usos que este livro poderá conter, parece-nos, é tão alargado quanto o número dos seus eventuais leitores. É um livro que nos parece habitar um território tão vasto quanto reduzido, onde se cruzarão muitas fronteiras, de livro de artista a livro ilustrado infantil, de exercício plástico a mais um bloco na operação contínua da obra de Maria João Worm.
No fim do dia, é um livro, unidade autónoma e provida de vida própria, e isso é já em si uma enorme conquista.
Nota final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro. As imagens foram retiradas do próprio blog da autora. “Quarto de Jade” passa a ser o nome oficial das publicações desta autora, na companhia das de Diniz Conefrey, e alguns futuros títulos já se prometem neste volume.
Este é um objecto belíssimo, em acordeão, impresso em offset, mas baseado em trabalhos da artista em linogravura (julgamos nós), feitos sobre papel de seda, multicoloridos, com legendas escritas numa ponta de lápis afinadíssima e ainda a intervenção de carimbos. Tudo isto faz parte do arsenal material de Maria João Worm, que sempre foi não apenas pluridisciplinar mas totalmente livre, flutuante e mesclado. O resultado são 9 imagens, cada uma com um animal (nalguns casos aos pares, num só dois animais) diferente ocupado numa tarefa doméstica - passar a ferro, lavar os rodapés estender a roupa, lavar a loiça. Há ainda um texto final, que pode ser visto como uma mistura de texto explicativo e programático, pequeno poema em prosa, ou condutor de ideias. Nele, a autora (imaginemos que se trata de um exercício autobiográfico) conta como quando começou a cumprir tarefas domésticas as suas referências eram do mundo da arte, o que a levaria a ser como “Bonnard a dar banho à loiça” ou “Matisse nas molas”… O resultado é que a sua “profissão sincera era a de doméstica plástica”. Que cada animal ou par de animais seja uma projecção de uma mesma pessoa parece estar prometida na capa da publicação, onde uma mulher se encontra numa pausa do seu trabalho, rodeada dos seus animais. O que veremos no interior serão o seu sonho acordado?
Este livro não é narrativo, no sentido em que não tem uma situação unívoca que se vai complexificando e desenvolvendo ao longo das páginas. Não há cruzamentos entre as personagens, nem momentos de cronologias múltiplas. Trata-se tão-somente de uma colecção de imagens díspares, todas unidas pelas tarefas domésticas e pelo facto de serem animais antropomorfizados a cumprirem-nas. Esta antropomorfização é feita de uma forma simples, sem recorrer a transformações icónicas ou figurativas sobre os animais (uma das mais usuais estratégias na ilustração infantil, por exemplo), ou manipulação das escalas, com a excepção das suas posições ou gestos. Na verdade, recorda-nos o emprego que Ladislaw Starewicz fazia com os insectos nos seus filmes de animação, cujos resultados são sempre unheimliche.
De certa forma, é como se fosse uma forma de dar corpo ou imagem a uma tradição popular portuguesa, que encontra nos “Contos da Carochinha” a sua prestação mais acabada. Seria interessante levantar daí as implicações sócio-culturais, os papéis que os animais tinham para representarem tipos da paisagem portuguesa, a distribuição de papéis ao longo de linhas sexuais, económicas e culturais, e tentar encontrar que ecos poderiam ter com estes animais domésticos. Estas imagens, e os seus brevíssimos textos explicativos, legendas quase desprovidas de qualificativos, criam uma imagem ideal do espaço doméstico, semi-ficcional semi-realista. Os pormenores gráficos, a forma como alisam a representação e tornam cada um destes espaços numa superfície (independentemente de serem trabalho de gravura, que implica sempre uma ideia de profundidade, de escavamento dessa mesma superfície lisa original, e esta questão complicar-se-á com o uso das cores), concorrem para essa imagem idealizada.
Se bem que não apresente um mesmo nível de complexidade, este livro de Worm aparenta-se ainda com os emblemata clássicos, como os de Alciato. Invertendo a presença de dois textos (o mote, inscriptio, e um poema narrativo/explicativo, subscriptio) e uma imagem (pictura), a artista apresenta sempre duas imagens - uma maior, gravada, e uma menor, carimbada - e uma brevíssima frase. No entanto, a relação da imagem menor, icónica, esquemática, carimbada, não traz uma dimensão de desdobramento da primeira imagem, mas apenas uma sua simplificação, uma espécie de sublinhado, de ponto final. As imagens gravadas apresentam sempre um trabalho de duas ou três cores (não contando com o branco da não-impressão), levemente descentrados ou não respeitando os contornos dos objectos, ou até mesmo em que cada cor se comporta como uma superfície autónoma, todas elas sobrepostas sem hierarquias claras, o que leva a uma sensação de desfocamento, de perda de controlo (onde, até à década de 1970, isto seria visto como um erro de impressão, Maria João Worm explora-o na sua totalidade como mais um instrumento de expressão e criação plástica). Daí que a segunda imagem menor possa servir de contraponto decisivo.
Ao mesmo tempo, a moldura branca em torno das imagens centrais, a sua colocação no centro da página, e as letras a lápis muito bem desenhadas, fará recordar também um álbum de fotografias, no qual quem o compõem anota uma breve rememoração, para mais tarde recordar. Daí que algumas sejam meramente descritivas, sem mais - “1 Porco passa a ferro se 1 Peixe borrifar a água” -, outras acrescentem informações circunstanciais - “2 Coelhos estendem a roupa num dia de vento” - , outras ainda atinam numa sensação da personagem - “1 Gato a sacudir minuciosamente um pano do pó á janela”. Claro que aquele “se” da primeira frase já possui em si mesmo a promessa de um desdobramento maior narrativo, estabelecendo uma relação, mais do que de cooperação, de dependência entre um e outro, senão mesmo hierárquica. Porque é que o peixe poderá não borrifar a água? Por uma briga anterior? A relação entre os dois encontra-se frágil?
Os usos que este livro poderá conter, parece-nos, é tão alargado quanto o número dos seus eventuais leitores. É um livro que nos parece habitar um território tão vasto quanto reduzido, onde se cruzarão muitas fronteiras, de livro de artista a livro ilustrado infantil, de exercício plástico a mais um bloco na operação contínua da obra de Maria João Worm.
No fim do dia, é um livro, unidade autónoma e provida de vida própria, e isso é já em si uma enorme conquista.
Nota final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro. As imagens foram retiradas do próprio blog da autora. “Quarto de Jade” passa a ser o nome oficial das publicações desta autora, na companhia das de Diniz Conefrey, e alguns futuros títulos já se prometem neste volume.
10 de outubro de 2011
Baby's in Black. Arne Bellstorf (Self-made Hero)
In Jonathan Lethem’s The Fortress of Solitude, one of the protagonist’s friends, Linus, plays a little game, which we could call “The Beatles Game”. It consists in contrasting the four personalities of the band with any other four-person formation from TV shows, movies and whatnot. “‘The Beatle thing is an archetype, it’s like the basic human formation. Everything naturally forms into a Beatles, people can’t help it.’
‘Say the types again.’
‘Responsible-parent genius-parent genius-child clown-child.’
‘Okay, do Star Wars.’
‘Luke Paul, Han Solo John, Chewbacca George, the robots Ringo.’
And so they go on. But if such a basic human formation is true, if it makes up an actual archetype, would there be room for a fifth member?
The history of The Beatles is well known, and “fifth Beatle” has already become an expression on its own in the English language, standing for an ellusive complement to an already perfect arrangement of elements. Necessary? Perhaps not. But its inclusion, even if virtual, becomes a base for reflection, the dreams of history, and for the nostalgia of that which would never be.
As the subtitle of this book proclaims - The Story of Astrid Kirchherr & Stuart Sutcliffe -, the events portrayed are disclosed within a few months. 18 months, to be precise, from October 1960, when the group that would eventually become The Beatles was only a rock’n’roll hired band in a seedy bar, in the seedy streets of Hamburg, by the infamous Reeperbahn (where “The memories are short but the tales are long”, sings Tom Waits), until April 1962, Sutcliffe’s death. A death that would mark not only the end, of course (of Stuart’s life, his engagement to Astrid, the path of an emerging visual artist, a moment in time) but also a beginning (the adulthood of The Beatles, and the emergence of an era, which Jon Savage, in an excerpt included in this edition, calls “Pop Modernism", the turn of a page in time and a fashion that would brand the years to come and still ellicits awe today). The Beatles are not the centre of the book, although they may act as a surplus of attention, a sort of decentred hub. Their story in Hamburg is fairly well-known, and this is not what the book is about “the [first and original] fifth Beatle”, but about the love that blossomed between the not-so-great bass player but artistically and intellectually curious Sutcliffe and the magnetic young photographer Kirchherr.
In a few exchanged emails, Arne Bellstorf explained: “The conversations with Astrid took place during a few afternoons. I guess it was just a few hours before I started working on the storyboard. As for the ‘facts’ I tried to stick to Astrid’s version of the events, since it is her story. I read a lot about the Beatles in Hamburg and had a kind of timeline: when they arrived, when they switched to the Top Ten, when they had their first recording sessions etc., but for the rest of the book, the mood and atmosphere, everything regarding the art school pupils (the ‘existentialists‘), I simply included a few photographs and Astrid's anecdotes”. And in fact, throughout the book we feel that the author is less interested in reconstructing the historical events - although he does present them - than the mood and the cumplicity of the main characters.
For the most part, Baby’s in Black is a straightforward, realist account of things, but the narrative is interspersed now and then by a recurrent dream sequence, visually based on the most famous Kirchherr’s self-portrait: in front of a mirror, she stands behind her Rolleicord, and above her, some branches reach down towards her, like slow black ink in water, a dubious shadow. The dream shows a small forest with bare trees, Astrid walking amongst them, and a black scarf floating by and getting caught in the branches. Later on, after she meets Stuart, the dream also becomes a daydream fantasy (actually, night, but okay), with Stuart walking with her, kissing her, the scarf tight around his neck, and Elvis’ Love me Tender playing as the soundtrack. By the end of the book, Astrid finds herself alone again in the forest, the scarf once again caught around the branches, and a mirror reflecting her face. These scenes stand as a poetical sign of Stuart’s and Astrid’s bond, as fleeting as it was powerful, perhaps even more powerful because it was fleeting, and therefore becoming a fantasmatic bliss, frozen perfect forever.
It is a book of ghosts, of course, of mirrors and smoke, corroborated with a final quote from Cocteau’s Orpheus. But ghosts whose presence serves for the purpose of underlining the importance and gravitas of their swift passage. To some extent, and thinking within the medium of comics, the very opening of Grant Morrison’s The Invisibles saga also calls forth the ghosts of John Lennon and Stuart Sutcliffe to push its own story forward. In the case of this book, there is a strange, eulegistic tone, both sad and wonderful at the same time, underlined by the very material qualities of Bellstorf’s art in this particular project. This is a magnificent balance between line work and charcoal pencils.
In fact, Bellstorf’s art is slightly different from his previous work. His soft, round, stylized characters are still there, somewhat influenced by the comingling of various traditions, from the ligne claire to manga, but his black-and-white is looser, perhaps even softer, and with a little more volume. The presence of charcoal swirls and scribblings make up shadows, clouds, and facial blushes. Other textures remind me of Amanda Vähämäki’s prodigious use of the pencil, and this brings a much warmer, organic quality to Bellstorf’s oeuvre, precisely what is needed for the depiction of this love affair.
In accordance to the culture of the times, there are many scenes of people smoking everywhere, and even though the lines of the smoke are slightly different from the other objects’, places’ and characters’, these lines go beyond mere representation and are extended throughout the book as its basic, uncategorized matter. The black is alive and slowly dissolves everything into itself. Even life. Even love.
There are moments, however, in which the black-and-white drawings seem to carry the memory of a few bright colour notes, as in the first Reeperbahn scene, with its opening top panel, and with its lettered neon signs flashing through the pencils.
Most of the page’s composition opts for a simple approach: regular 2 x 3 grids, with many variations consisting in the fusion of two panels into one long horizontal one. Sometimes a page may only contain three of these longer panels, but they are used to depict the aspects of an ambient, whether with characters represented in them or not, the latter case to create establishing shots, the former for a better comprehension of the placement of the characters. The author also chooses more often than not mid shots and close-ups, framing the characters so that most of what surrounds them is almost eclipsed, so that we concentrate on their exchanges, expressions and body language. Although Bellstorf has a cartoonish style, the lively, look-alike expressions of his characters are dead-on, which is especially visible in the more recognizable faces (Paul McCartney’s and John Lennon’s). However, his silent, de-centered panels - used to depict the scenes in which Stuart is painting, for instance - or the extreme close-ups - for intense scenes, only underline the effective difference of that choice, making them even more intensive. Here and there, the panel’s borders lose their straight lines due to the overwhelming balloons with the lyrics of the blaring songs that traverse the space.
The textual layer of the book is also nuanced in many ways. It is, at one time, simple and profound, growing from circumstantial banter between Astrid and the band members to more ascertained and confident dialogue between the lovers. The original German version has text in German, of course, but all the Beatles’ lines are written in English, with a translation at the end of the book. This is somewhat lost in its English translation, apart from a sentence or two (granted, more German-speaking comics-readers would be able to read English than the opposite). This underlines the way the loving bond between Astrid and Stuart is formed, outside or besides language, through a visual, overall attraction, and not a direct knowledge through spoken dialogue. Arne Bellstorf conveys this beautifully by the way emotions and silences are channeled. Stuart is represented as the strong, silent type, while John is quite talkative and a charmer. It comes as no surprise, however, to see that Lennon’s outspoken, flirty lines fails to capture Astrid’s interest, who is oblivious to them, and who seems irrevocably drawn to Stuart’s silent, intense reciprocated looks... This is really a very intelligent and telling manner the author creates for a creative process of “love at first sight”. Astrid is portrayed as a strong, independent woman, supported by her mother (the father is absent), which is also very telling for the culture of the time. It is Astrid who arranges for the first photo shoot with the band. It is she who invites the coy Stuart to the riverbanks alone. Also, it is Stuart, not Astrid, who changes the most, as love does change lovers who become closer to one other. Although this may be true or not, and the details of that pop history are explored elsewhere, we witness Astrid introducing them to a different world than those of the rockers’: Sartre, Juliette Gréco, Stravinsky, the mop top haircut, black turtlenecks, the androgynous and ethereous look, all slowly become part of the band’s lexicon… “You’re the most amazing bird I‘ve ever met, you know?”, says John. He’s right, but she’ll be flying in another direction.
Apart from direct quotes - when the band’s playing, the juke box blaring, a record playing, or the songs in the dream -, there seems to be a few puns with known rock’n’roll verses and titles. It’s not only the title itself, but also several lines, as when Astrid mentions, in relation to the branches she has on her room, “I painted it black”. There can be no doubt that some of the verses of the songs resonate with the events depicted, sometimes contrastingly: “Love me Tender” acts as a sort of counterpoint to what actually happens in the end. Or perhaps it is a promise that is, unfortunately, not kept, for Death cuts it short.
Stuart’s death happens “off-stage”, if we can say it in this way. It happens and resonates through six pages in which sound - as it is rendered in comics, through speech balloons and onomatopoeias (wholly absent from this book) - increasingly disappears, first with emptied balloons, then with awkward perspectives, and then with no characters… One last page shows Astrid meeting John and Paul at the airport. John asks, “Where’s Stuart?”, but no answer is given.
One of Gréco’s most famous songs is the one written by Jacques Prévert, Les Feuilles Mortes. In it, one verse goes: “Mais la vie sépare ceux qui s’aiment,/ Tout doucement, sans faire de bruit” [“But life pulls those who love each other apart, so sweetly, in silence]. Perhaps Bellstorf is following that lesson in this final moment. Its painful silence is much more powerful than melodramatic screams.
A thank you to the publisher, for sending me a review copy.
Nota: este texto foi escrito originalmente em inglês, a pedido da editora; agradecimentos a Miriam Sampaio, pela revisão.
‘Say the types again.’
‘Responsible-parent genius-parent genius-child clown-child.’
‘Okay, do Star Wars.’
‘Luke Paul, Han Solo John, Chewbacca George, the robots Ringo.’
And so they go on. But if such a basic human formation is true, if it makes up an actual archetype, would there be room for a fifth member?
The history of The Beatles is well known, and “fifth Beatle” has already become an expression on its own in the English language, standing for an ellusive complement to an already perfect arrangement of elements. Necessary? Perhaps not. But its inclusion, even if virtual, becomes a base for reflection, the dreams of history, and for the nostalgia of that which would never be.
As the subtitle of this book proclaims - The Story of Astrid Kirchherr & Stuart Sutcliffe -, the events portrayed are disclosed within a few months. 18 months, to be precise, from October 1960, when the group that would eventually become The Beatles was only a rock’n’roll hired band in a seedy bar, in the seedy streets of Hamburg, by the infamous Reeperbahn (where “The memories are short but the tales are long”, sings Tom Waits), until April 1962, Sutcliffe’s death. A death that would mark not only the end, of course (of Stuart’s life, his engagement to Astrid, the path of an emerging visual artist, a moment in time) but also a beginning (the adulthood of The Beatles, and the emergence of an era, which Jon Savage, in an excerpt included in this edition, calls “Pop Modernism", the turn of a page in time and a fashion that would brand the years to come and still ellicits awe today). The Beatles are not the centre of the book, although they may act as a surplus of attention, a sort of decentred hub. Their story in Hamburg is fairly well-known, and this is not what the book is about “the [first and original] fifth Beatle”, but about the love that blossomed between the not-so-great bass player but artistically and intellectually curious Sutcliffe and the magnetic young photographer Kirchherr.
In a few exchanged emails, Arne Bellstorf explained: “The conversations with Astrid took place during a few afternoons. I guess it was just a few hours before I started working on the storyboard. As for the ‘facts’ I tried to stick to Astrid’s version of the events, since it is her story. I read a lot about the Beatles in Hamburg and had a kind of timeline: when they arrived, when they switched to the Top Ten, when they had their first recording sessions etc., but for the rest of the book, the mood and atmosphere, everything regarding the art school pupils (the ‘existentialists‘), I simply included a few photographs and Astrid's anecdotes”. And in fact, throughout the book we feel that the author is less interested in reconstructing the historical events - although he does present them - than the mood and the cumplicity of the main characters.
For the most part, Baby’s in Black is a straightforward, realist account of things, but the narrative is interspersed now and then by a recurrent dream sequence, visually based on the most famous Kirchherr’s self-portrait: in front of a mirror, she stands behind her Rolleicord, and above her, some branches reach down towards her, like slow black ink in water, a dubious shadow. The dream shows a small forest with bare trees, Astrid walking amongst them, and a black scarf floating by and getting caught in the branches. Later on, after she meets Stuart, the dream also becomes a daydream fantasy (actually, night, but okay), with Stuart walking with her, kissing her, the scarf tight around his neck, and Elvis’ Love me Tender playing as the soundtrack. By the end of the book, Astrid finds herself alone again in the forest, the scarf once again caught around the branches, and a mirror reflecting her face. These scenes stand as a poetical sign of Stuart’s and Astrid’s bond, as fleeting as it was powerful, perhaps even more powerful because it was fleeting, and therefore becoming a fantasmatic bliss, frozen perfect forever.
It is a book of ghosts, of course, of mirrors and smoke, corroborated with a final quote from Cocteau’s Orpheus. But ghosts whose presence serves for the purpose of underlining the importance and gravitas of their swift passage. To some extent, and thinking within the medium of comics, the very opening of Grant Morrison’s The Invisibles saga also calls forth the ghosts of John Lennon and Stuart Sutcliffe to push its own story forward. In the case of this book, there is a strange, eulegistic tone, both sad and wonderful at the same time, underlined by the very material qualities of Bellstorf’s art in this particular project. This is a magnificent balance between line work and charcoal pencils.
In fact, Bellstorf’s art is slightly different from his previous work. His soft, round, stylized characters are still there, somewhat influenced by the comingling of various traditions, from the ligne claire to manga, but his black-and-white is looser, perhaps even softer, and with a little more volume. The presence of charcoal swirls and scribblings make up shadows, clouds, and facial blushes. Other textures remind me of Amanda Vähämäki’s prodigious use of the pencil, and this brings a much warmer, organic quality to Bellstorf’s oeuvre, precisely what is needed for the depiction of this love affair.
In accordance to the culture of the times, there are many scenes of people smoking everywhere, and even though the lines of the smoke are slightly different from the other objects’, places’ and characters’, these lines go beyond mere representation and are extended throughout the book as its basic, uncategorized matter. The black is alive and slowly dissolves everything into itself. Even life. Even love.
There are moments, however, in which the black-and-white drawings seem to carry the memory of a few bright colour notes, as in the first Reeperbahn scene, with its opening top panel, and with its lettered neon signs flashing through the pencils.
Most of the page’s composition opts for a simple approach: regular 2 x 3 grids, with many variations consisting in the fusion of two panels into one long horizontal one. Sometimes a page may only contain three of these longer panels, but they are used to depict the aspects of an ambient, whether with characters represented in them or not, the latter case to create establishing shots, the former for a better comprehension of the placement of the characters. The author also chooses more often than not mid shots and close-ups, framing the characters so that most of what surrounds them is almost eclipsed, so that we concentrate on their exchanges, expressions and body language. Although Bellstorf has a cartoonish style, the lively, look-alike expressions of his characters are dead-on, which is especially visible in the more recognizable faces (Paul McCartney’s and John Lennon’s). However, his silent, de-centered panels - used to depict the scenes in which Stuart is painting, for instance - or the extreme close-ups - for intense scenes, only underline the effective difference of that choice, making them even more intensive. Here and there, the panel’s borders lose their straight lines due to the overwhelming balloons with the lyrics of the blaring songs that traverse the space.
The textual layer of the book is also nuanced in many ways. It is, at one time, simple and profound, growing from circumstantial banter between Astrid and the band members to more ascertained and confident dialogue between the lovers. The original German version has text in German, of course, but all the Beatles’ lines are written in English, with a translation at the end of the book. This is somewhat lost in its English translation, apart from a sentence or two (granted, more German-speaking comics-readers would be able to read English than the opposite). This underlines the way the loving bond between Astrid and Stuart is formed, outside or besides language, through a visual, overall attraction, and not a direct knowledge through spoken dialogue. Arne Bellstorf conveys this beautifully by the way emotions and silences are channeled. Stuart is represented as the strong, silent type, while John is quite talkative and a charmer. It comes as no surprise, however, to see that Lennon’s outspoken, flirty lines fails to capture Astrid’s interest, who is oblivious to them, and who seems irrevocably drawn to Stuart’s silent, intense reciprocated looks... This is really a very intelligent and telling manner the author creates for a creative process of “love at first sight”. Astrid is portrayed as a strong, independent woman, supported by her mother (the father is absent), which is also very telling for the culture of the time. It is Astrid who arranges for the first photo shoot with the band. It is she who invites the coy Stuart to the riverbanks alone. Also, it is Stuart, not Astrid, who changes the most, as love does change lovers who become closer to one other. Although this may be true or not, and the details of that pop history are explored elsewhere, we witness Astrid introducing them to a different world than those of the rockers’: Sartre, Juliette Gréco, Stravinsky, the mop top haircut, black turtlenecks, the androgynous and ethereous look, all slowly become part of the band’s lexicon… “You’re the most amazing bird I‘ve ever met, you know?”, says John. He’s right, but she’ll be flying in another direction.
Apart from direct quotes - when the band’s playing, the juke box blaring, a record playing, or the songs in the dream -, there seems to be a few puns with known rock’n’roll verses and titles. It’s not only the title itself, but also several lines, as when Astrid mentions, in relation to the branches she has on her room, “I painted it black”. There can be no doubt that some of the verses of the songs resonate with the events depicted, sometimes contrastingly: “Love me Tender” acts as a sort of counterpoint to what actually happens in the end. Or perhaps it is a promise that is, unfortunately, not kept, for Death cuts it short.
Stuart’s death happens “off-stage”, if we can say it in this way. It happens and resonates through six pages in which sound - as it is rendered in comics, through speech balloons and onomatopoeias (wholly absent from this book) - increasingly disappears, first with emptied balloons, then with awkward perspectives, and then with no characters… One last page shows Astrid meeting John and Paul at the airport. John asks, “Where’s Stuart?”, but no answer is given.
One of Gréco’s most famous songs is the one written by Jacques Prévert, Les Feuilles Mortes. In it, one verse goes: “Mais la vie sépare ceux qui s’aiment,/ Tout doucement, sans faire de bruit” [“But life pulls those who love each other apart, so sweetly, in silence]. Perhaps Bellstorf is following that lesson in this final moment. Its painful silence is much more powerful than melodramatic screams.
A thank you to the publisher, for sending me a review copy.
Nota: este texto foi escrito originalmente em inglês, a pedido da editora; agradecimentos a Miriam Sampaio, pela revisão.
Grano Blu. Anke Feuchtenberger (Canicola)
Poderá parecer-nos estar a viver num momento em que existe uma maior diversidade de papéis femininos, ou de construções criativas e ficcionais em que o papel das mulheres atinge uma expressividade maior, mais efectiva e central, e mais moldada ao que hoje acreditamos ser a experiência da realidade. No entanto, essa consideração, sem quaisquer tipo de qualificações, estaria demasiado presa às circunstâncias do nosso próprio tecido cultural, que por vezes encontra na noção de “progresso” uma aplicabilidade quase universal. Estamos melhor agora do que antes, pensamos. E se isso é mais “verdade” no que diz respeito à tecnologia e ciência e saúde, também se verificará noutros campos da existência humana, como nas artes ou na justiça social. Afinal, conquistaram-se mais direitos, não é? (Mais)
6 de outubro de 2011
The Bayeux Tapestry. The Comic Strip. Gilles Pivard e Arthur Shelton (OREP)
Penso que a apresentação geral da Tapeçaria de Bayeux é por demais conhecida. No essencial deve guardar-se o facto de que se pode olhá-la tanto quanto um documento histórico (todos os artefactos o são, é certo, mas há uns mais que outros) e como obra de arte (pelas suas específicas características formais e estilísticas), criada algum tempo, mas pouco depois, da Batalha de Hastings, a 14 de Outubro de 1066, que ela própria retrata. Essa foi, em suma, a batalha que opôs aquele que seria o herdeiro legal da coroa da Inglaterra (de acordo com a história contada na própria Tapeçaria), Guilherme II da Normandia, depois ganhando o cognome de “O Conquistador”, e os povos saxónicos que não queriam “estrangeiros” reinando as suas terras. Opunham-se, de um lado, os exércitos “franceses” de Guilherme e, do outro, os defensores “britânicos” de Haroldo II, genro do rei anterior, Eduardo o Confessor, e “traidor” da confiança que tinha com Guilherme, a quem havia antes prestado vassalagem, cumprindo o desejo de Eduardo em ter em Guilherme um bom e pacificador rei do seu reino. Enfim, marca o início do reinado normando da Grã-Bretanha. Esta obra famosíssima tem a história dessa batalha como a última e climática cena de um ano de acontecimentos em seu torno, desde a morte de Eduardo a toda a rocambolesca trama que relaciona os outros dois soberanos. A narrativa é clara: Eduardo quer dar continuidade à paz, passando o testemunho a Guilherme, pedindo a Haroldo que passe a mensagem; este é levado pelo interesse dos barões saxões e usurpa a coroa; Guilherme responde a esta afronta com a guerra, e sai vitorioso. Simples, linear, sem problemas? Veremos.
Outro aspecto importante é que não é uma tapeçaria, mas sim um bordado: algodão de uma contida mas expressiva paleta (apenas 8 cores) em 70 m por 50 cm (a parte final perdeu-se, o que só por si abre caminho a interpretações, algumas das quais dignas de thrillers policial-históricos contemporâneos) de imaculado linho.
Existirão muitos outros livros que oferecem reproduções de maior qualidade do bordado histórico, com maiores introduções históricas e até com argumentos e complementos mais alargados e profundos, do que esta edição. A curiosidade está no facto deste livro de divulgação dar continuidade a uma integração problemática no campo da banda desenhada desta obra de arte medieval, ou torná-la acessível a um público mais jovem (não há dúvida, até por outros projectos análogos da mesma editora e dos mesmos autores, de que o seu público-alvo estará em idade escolar, cujos programas incluirão sem dúvida uma abordagem aos eventos retratados) através de mecanismos formais desenvolvidos na banda desenhada moderna.
Não há forma de diminuir o fascínio que esta peça tem exercido nos mais variados campos. Todos e quaisquer elementos que a compõem, toda e qualquer perspectiva que se possa aplicar é passível de rasgados elogios, discussão e contínua fruição: ao nível da técnica, da representação, das informações sobre costumes e gestos, vestes e alimentação, estratégias militares e armamento, aspectos de falcoaria, trabalhos agrícolas, a inclusão de representações das fábulas de Esopo nas margens, a aparição do que seria chamado de “Cometa Halley”, não há nível que não provoque rios de tinta, como se costuma dizer. Mas há muitos outros aspectos por desvendar de forma cabal, de figuras misteriosas e incompreendidas até agora, a atribuições de nomes ou nomenclaturas nada claras (“Turold”, por exemplo).
A própria factura do bordado é extremamente complexa e nada linear. As atribuições da encomenda são múltiplas (o bispo Odo irmão de Guilherme, ou Edite, irmã de Haroldo?), tal como a sua função original (celebração da vitória normanda ou acusação de usurpação de Guilherme?; curiosamente, a inclusão das lendas de Esopo é vista pelos defensores dessas duas posições como variação do tema central, ora contra Haroldo, ora contra Guilherme). O papel de propaganda, que seria tão caro à banda desenhada do século XX, não é de todo alheio a esta obra. Por exemplo, crê-se que a seta cravada no olho de Haroldo, que o mata, é uma adição posterior, para sublinhar o seu estatuto de “abjurador”. Mas também é possível que a propaganda fosse até em detrimento do poder de Guilherme, tal como poderá ter estado revestido tão-somente de um mero propósito de entretenimento moralista para a nova classe nobre da nova dinastia.
E a sua história material, a sua própria sobrevivência, é também alvo de curiosidades, desde a sua momentânea perda à sua redescoberta no século XVII, e todas as vicissitudes ou breves glórias que sofreu, desde o ataque Calvinista à Catedral de Bayeux até às mãos de Napoleão movendo-a para Paris ou o misterioso telegrama de Himmler desejando apossar-se dela.
Ainda hoje a Tapeçaria é matéria de amor-ódio entre franceses e ingleses. A que “nação” pertencerá? Independentemente do seu propósito original, quiçá irrecuperável para sempre, esta obra tem um papel definidor no regime de construção da tradição homogeneizante dos povos (a “invenção da tradição”, de Hobsbawn e Ranger) - e seus nacionalismos - que implica, apesar de historicamente as relações entre saxões e ingleses, por um lado, e normandos e franceses, por outro, não ser, de forma alguma, linear e estanque. Para a tessitura da história inglesa, esta é uma peça fundamental, já que os normandos de Guilherme são mais uma adição aos anteriores bretões, depois os anglo-saxões, depois os dinamarqueses… Quer dizer, a história da Inglaterra, tal como a de quase todas as outras nações (na sua acepção moderna, e Portugal não é excepção) é feita do encontro e cruzamento e mescla de povos diversos, em circunstâncias diversas, com resultados diversos. Não existe qualquer possibilidade de encontrar uma linha narrativa, ou um tema, no sentido musical, idêntico e transversal da formação de uma nação. A não ser, eventualmente, uma: a da violência.
Afinal de contas, o episódio narrado por este “texto” (recordemo-nos de que a Tapeçaria contem uma faixa principal de imagens, acompanhada de alguns textos, nomes, descritivos, e ainda de complementos imagéticos; e, para mais, esta versão em banda desenhada explora substancialmente a cena final da Batalha de Hastings) é de uma violência típica com que são constituídas as origens das nações. Ernest Renan escreveu, num texto de 1882 (“Qu'est-ce qu'une nation?”), que “o esquecimento, e direi mesmo, o erro histórico, são um factor essencial da criação de uma nação”. E não haverá maior instrumento de esquecimento e de consolidação do erro histórico em “verdade” do que os processos mitificadores (e aqui é preciso ter em mente o seu sentido etimológico de narrativa) proporcionados por objectos como este, reforçada pela “guerra justa”? A sua estória acaba por ser um sinal superior do que aquele da história propriamente dita.
O mesmo se estenderia para com o discurso em torno das origens e formação desta forma de arte a que damos o nome, por agora, de “banda desenhada” (por agora pois o termo é relativamente recente e poderá, quem sabe, desaparecer em breve, substituído por outro). À força da repetição acrítica, acriteriosa e supostamente indiscutível - ex.: “como todos sabem, formas de contar histórias em imagens remetem aos tempos pré-históricos” -, a Tapeçaria de Bayeux torna-se um dos Ur-exempla da banda desenhada enquanto arte transhistórica, eterna e universal (é citado repetidamente por livros de divulgação, introduções apressadas, etc.). Como diz Kunzle, faz parte do típico desporto de uma “história enlatada que mergulha ao acaso na história geral da arte”…
A aplicação da expressão “first comic strip” não é, portanto, incomum nas referências à Tapeçaria. De facto, a acção está representada na faixa central da longa tira de linho, sem quaisquer divisões de cena a não ser os espaços “interdiegéticos”, perfazendo uma superfície que deve ser lida da esquerda para a direita. Não é o primeiro, nem seguramente o único objecto que poderia ser encontrado com essas características, bastando recordar o rolo de Joshua (Codex Vaticanus, do século X, escola Bizantina). A partição da Tapeçaria em unidades visuais-narrativas menores (“vinhetas”), a sua estruturação em pranchas de banda desenhada, inclusive uma dupla prancha com a cena dos navios partindo em direcção às Ilhas Britânicas, e a inclusão de uns quantos balões de fala (não empregando propriamente o texto original, mas imaginando os diálogos de forma a acentuar a acção) e onomatopeias, serve para enfatizar essa filiação, reintegrar este objecto numa tradição moderna mas, ao mesmo tempo, como vimos, a tornar mais acessível, ou acessível de um modo específico, o texto original num veículo hodierno.
Possivelmente - ou melhor, de certeza - os autores simplificaram algumas das dificuldades do texto original (não apenas da matéria verbal mas também das representações imagéticas menos claras), abrandaram os pontos controversos e confusos, procurando (re)criar uma narrativa mais linear e de fácil apreensão, sem dúvida com o intuito de ofertar uma primeira abordagem, necessária para uma posterior e mais profunda investigação. A análise narratológica dos acontecimentos, por exemplo, permitiria a descoberta de uma trama mais complexa do que qualquer sinopse poderá alguma vez apresentar. Por exemplo, se se tivesse em conta o papel, nada secundário sob a luz das possíveis análises contemporâneas, das três figuras femininas, aparentemente em segundo e breve plano na Tapeçaria. É nestes sentidos que as leituras feministas (ou advindas dos estudos culturais) podem despertar significados objectivos (no sentido em que estão objectificados no texto) e revelatórios. Mas esses aspectos estão aqui suspensos.
As especulações históricas e políticas em torno da Tapeçaria de Bayeux são, previsivelmente, multidão, mas essas não poderão ser alvo desta brevíssimo post, até por exigirem um conhecimento que não nos pertencerá jamais. Talvez não haja outro pedaço da invenção humana à qual a expressão “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto” não seja mais exacta, literal até. Talvez o livro de Andrew Bridgeford, 1066, the Hidden History of the Bayeux Tapestry seja aquele que apresenta uma versão mais elaborada e, também, convincente, mas no campo da história, nunca nada é definitivo.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
Outro aspecto importante é que não é uma tapeçaria, mas sim um bordado: algodão de uma contida mas expressiva paleta (apenas 8 cores) em 70 m por 50 cm (a parte final perdeu-se, o que só por si abre caminho a interpretações, algumas das quais dignas de thrillers policial-históricos contemporâneos) de imaculado linho.
Existirão muitos outros livros que oferecem reproduções de maior qualidade do bordado histórico, com maiores introduções históricas e até com argumentos e complementos mais alargados e profundos, do que esta edição. A curiosidade está no facto deste livro de divulgação dar continuidade a uma integração problemática no campo da banda desenhada desta obra de arte medieval, ou torná-la acessível a um público mais jovem (não há dúvida, até por outros projectos análogos da mesma editora e dos mesmos autores, de que o seu público-alvo estará em idade escolar, cujos programas incluirão sem dúvida uma abordagem aos eventos retratados) através de mecanismos formais desenvolvidos na banda desenhada moderna.
Não há forma de diminuir o fascínio que esta peça tem exercido nos mais variados campos. Todos e quaisquer elementos que a compõem, toda e qualquer perspectiva que se possa aplicar é passível de rasgados elogios, discussão e contínua fruição: ao nível da técnica, da representação, das informações sobre costumes e gestos, vestes e alimentação, estratégias militares e armamento, aspectos de falcoaria, trabalhos agrícolas, a inclusão de representações das fábulas de Esopo nas margens, a aparição do que seria chamado de “Cometa Halley”, não há nível que não provoque rios de tinta, como se costuma dizer. Mas há muitos outros aspectos por desvendar de forma cabal, de figuras misteriosas e incompreendidas até agora, a atribuições de nomes ou nomenclaturas nada claras (“Turold”, por exemplo).
A própria factura do bordado é extremamente complexa e nada linear. As atribuições da encomenda são múltiplas (o bispo Odo irmão de Guilherme, ou Edite, irmã de Haroldo?), tal como a sua função original (celebração da vitória normanda ou acusação de usurpação de Guilherme?; curiosamente, a inclusão das lendas de Esopo é vista pelos defensores dessas duas posições como variação do tema central, ora contra Haroldo, ora contra Guilherme). O papel de propaganda, que seria tão caro à banda desenhada do século XX, não é de todo alheio a esta obra. Por exemplo, crê-se que a seta cravada no olho de Haroldo, que o mata, é uma adição posterior, para sublinhar o seu estatuto de “abjurador”. Mas também é possível que a propaganda fosse até em detrimento do poder de Guilherme, tal como poderá ter estado revestido tão-somente de um mero propósito de entretenimento moralista para a nova classe nobre da nova dinastia.
E a sua história material, a sua própria sobrevivência, é também alvo de curiosidades, desde a sua momentânea perda à sua redescoberta no século XVII, e todas as vicissitudes ou breves glórias que sofreu, desde o ataque Calvinista à Catedral de Bayeux até às mãos de Napoleão movendo-a para Paris ou o misterioso telegrama de Himmler desejando apossar-se dela.
Ainda hoje a Tapeçaria é matéria de amor-ódio entre franceses e ingleses. A que “nação” pertencerá? Independentemente do seu propósito original, quiçá irrecuperável para sempre, esta obra tem um papel definidor no regime de construção da tradição homogeneizante dos povos (a “invenção da tradição”, de Hobsbawn e Ranger) - e seus nacionalismos - que implica, apesar de historicamente as relações entre saxões e ingleses, por um lado, e normandos e franceses, por outro, não ser, de forma alguma, linear e estanque. Para a tessitura da história inglesa, esta é uma peça fundamental, já que os normandos de Guilherme são mais uma adição aos anteriores bretões, depois os anglo-saxões, depois os dinamarqueses… Quer dizer, a história da Inglaterra, tal como a de quase todas as outras nações (na sua acepção moderna, e Portugal não é excepção) é feita do encontro e cruzamento e mescla de povos diversos, em circunstâncias diversas, com resultados diversos. Não existe qualquer possibilidade de encontrar uma linha narrativa, ou um tema, no sentido musical, idêntico e transversal da formação de uma nação. A não ser, eventualmente, uma: a da violência.
Afinal de contas, o episódio narrado por este “texto” (recordemo-nos de que a Tapeçaria contem uma faixa principal de imagens, acompanhada de alguns textos, nomes, descritivos, e ainda de complementos imagéticos; e, para mais, esta versão em banda desenhada explora substancialmente a cena final da Batalha de Hastings) é de uma violência típica com que são constituídas as origens das nações. Ernest Renan escreveu, num texto de 1882 (“Qu'est-ce qu'une nation?”), que “o esquecimento, e direi mesmo, o erro histórico, são um factor essencial da criação de uma nação”. E não haverá maior instrumento de esquecimento e de consolidação do erro histórico em “verdade” do que os processos mitificadores (e aqui é preciso ter em mente o seu sentido etimológico de narrativa) proporcionados por objectos como este, reforçada pela “guerra justa”? A sua estória acaba por ser um sinal superior do que aquele da história propriamente dita.
O mesmo se estenderia para com o discurso em torno das origens e formação desta forma de arte a que damos o nome, por agora, de “banda desenhada” (por agora pois o termo é relativamente recente e poderá, quem sabe, desaparecer em breve, substituído por outro). À força da repetição acrítica, acriteriosa e supostamente indiscutível - ex.: “como todos sabem, formas de contar histórias em imagens remetem aos tempos pré-históricos” -, a Tapeçaria de Bayeux torna-se um dos Ur-exempla da banda desenhada enquanto arte transhistórica, eterna e universal (é citado repetidamente por livros de divulgação, introduções apressadas, etc.). Como diz Kunzle, faz parte do típico desporto de uma “história enlatada que mergulha ao acaso na história geral da arte”…
A aplicação da expressão “first comic strip” não é, portanto, incomum nas referências à Tapeçaria. De facto, a acção está representada na faixa central da longa tira de linho, sem quaisquer divisões de cena a não ser os espaços “interdiegéticos”, perfazendo uma superfície que deve ser lida da esquerda para a direita. Não é o primeiro, nem seguramente o único objecto que poderia ser encontrado com essas características, bastando recordar o rolo de Joshua (Codex Vaticanus, do século X, escola Bizantina). A partição da Tapeçaria em unidades visuais-narrativas menores (“vinhetas”), a sua estruturação em pranchas de banda desenhada, inclusive uma dupla prancha com a cena dos navios partindo em direcção às Ilhas Britânicas, e a inclusão de uns quantos balões de fala (não empregando propriamente o texto original, mas imaginando os diálogos de forma a acentuar a acção) e onomatopeias, serve para enfatizar essa filiação, reintegrar este objecto numa tradição moderna mas, ao mesmo tempo, como vimos, a tornar mais acessível, ou acessível de um modo específico, o texto original num veículo hodierno.
Possivelmente - ou melhor, de certeza - os autores simplificaram algumas das dificuldades do texto original (não apenas da matéria verbal mas também das representações imagéticas menos claras), abrandaram os pontos controversos e confusos, procurando (re)criar uma narrativa mais linear e de fácil apreensão, sem dúvida com o intuito de ofertar uma primeira abordagem, necessária para uma posterior e mais profunda investigação. A análise narratológica dos acontecimentos, por exemplo, permitiria a descoberta de uma trama mais complexa do que qualquer sinopse poderá alguma vez apresentar. Por exemplo, se se tivesse em conta o papel, nada secundário sob a luz das possíveis análises contemporâneas, das três figuras femininas, aparentemente em segundo e breve plano na Tapeçaria. É nestes sentidos que as leituras feministas (ou advindas dos estudos culturais) podem despertar significados objectivos (no sentido em que estão objectificados no texto) e revelatórios. Mas esses aspectos estão aqui suspensos.
As especulações históricas e políticas em torno da Tapeçaria de Bayeux são, previsivelmente, multidão, mas essas não poderão ser alvo desta brevíssimo post, até por exigirem um conhecimento que não nos pertencerá jamais. Talvez não haja outro pedaço da invenção humana à qual a expressão “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto” não seja mais exacta, literal até. Talvez o livro de Andrew Bridgeford, 1066, the Hidden History of the Bayeux Tapestry seja aquele que apresenta uma versão mais elaborada e, também, convincente, mas no campo da história, nunca nada é definitivo.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
5 de outubro de 2011
É de noite que faço as perguntas. David Soares et al. (Saída de Emergência, FIBDA, CNCCR)
Haverá certamente várias perspectivas a partir da qual analisar este livro. Escolhamos algumas.
David Soares será, esperemos nós, um autor sempre interessado em manter parte da sua criatividade associada à banda desenhada. Desde que o autor foi desbravando caminho pelo bosque da literatura, que conquistou com cada vez maior segurança e sucesso, é natural que o seu esforço enquanto artista de banda desenhada tenha encontrado menos espaço, ainda que se tenham verificado alguns contactos, quer com a pequena história com Richard Câmara num dos catálogos do FIBDA, o Mucha, e até poderíamos citar a novela Batalha, pela presença das imagens de Daniel Silvestre da Silva. Tanto os romances como as novelas como os contos de Soares têm procurado sempre um ponto de equilíbrio, fulgurante, entre o ancoramento na mais material das histórias, a mais desgarrada e livre das fantasias, e uma pesquisa sempre presente das sombras mais perenes da alma humana. Se bem que acreditemos que o processo deste livro possa ter atravessado vários níveis de colaboração no que diz respeito ao argumento - uma eventual obrigação aqui, um pedido ali, uma deferência noutro momento (por exemplo, algumas referências à Amadora enquanto palco de episódios históricos) -, o convite a Soares abriu caminho a esta resposta inteligente, criativa e pessoal de uma encomenda que poderia se ter coberto de contornos extremamente espartilhados e secos.
Podemos encontrar variadas características contínuas do escritor: as redes densas e significativas de citações; a preocupação em espalhar elementos recorrentes que concorrem para a emergência de uma tressage - os eléctricos, a mão sobre o papel, as breves metáforas visuais que consistem na invasão do plano visual por objectos antes realistas e depois transformados em símbolos -; a utilização recorrente de breves trechos de três vinhetas (à la H. Kurtzman?) numa tira para representar pequenas acções ou momentos de tensão emocional marcadas; a presença de criaturas ou objectos que ganham, mesmo que por um breve momento, uma centralidade máxima, objectual e que, logo, são carregadas com uma energia especial (a esfinge da televisão - filme fictício? símbolo da contemporaneidade? espelho da realidade retratada? -, a árvore que cresce, os soldadinhos de chumbo, e o ecrã amarelo da televisão)... E vejamos outras duas, que precisam de maior desenvolvimento.
Em primeiro lugar, a procura de linhas de força trans-históricas que tornem qualquer gesto num dos elementos de um padrão maior. O caso-chave é o do gesto de Manuel de Arriaga falando ao público, com o dedo indicador levantado e, no fundo, a nova bandeira da República portuguesa, com a esfera armilar e o escudo real, que permite fazer uma puxada de imagens para o passado, com o rei D. Manuel I e depois Hermes Trismegisto, cada um com a sua própria esfera armilar. O que torna esta associação interessante é que a “faixa” do texto não a domina nem confirma, e não existem pistas certeiras a que perspectiva pertencerá essa associação. Será do narrador? De uma das personagens citadas? Ou do próprio nível do meganarrador da banda desenhada? E que tipo de revelação quererá ela despertar? A decisão caberá ao leitor, tal como a de eleger que sentidos possíveis serão colhidos nessa associação, ficando assim a responsabilidade de encontrar esse tal padrão maior totalmente nas suas mãos, não sendo de forma alguma um sentido imposto, digamos assim, pela matéria discursiva. É antes um convite.
Depois, temos ainda a presença do acto da escrita como signo metalinguístico, a tarefa do escritor, testemunha mas também moldador da memória futura. O narrador é um pai que escreve uma carta ao filho, esbirro do regime em curso, adivinhamos. Dessa forma, inverte-se a relação familiar e literária famosa da Carta ao Pai de Kafka. Recordemo-nos de dois aspectos da vida literária do autor checo: o de que a carta nunca seria remetida e o do seu desejo expresso em queimar os seus escritos depois da morte (mas secretamente sabendo que esse cumprimento nunca seria feito, ou melhor, secretamente desejando a sua sobrevivência: pois, caso contrário, porquê fazer esse pedido a Brod, e não a alguém que desprezasse a sua escrita, o que não faltaria na família?). Esta nossa associação talvez seja abusiva e supérflua, mas há como que resquícios dessa outra carta neste livro, pois nós mesmos lemos - e vislumbramos as livres associações da memória, da imaginação, dos sonhos e dos medos do pai-que-escreve - as palavras que, no final, são apenas remetidas ao último correio do fogo imolador (mais um acto alquímico, caro a David Soares). [este elemento é também signo de tressage/entraçamento do livro: ver imagens abaixo do post].
A grande diferença é a ausência da matéria do fantástico ou mesmo do absurdo. Não há fuga do pesado realismo. Ou haverá? Não nos referimos somente à matéria plástica e criativa indicada (nesse sentido, há sempre uma flutuação entre vários regimes de representação), estamos a falar da camada da diegese, que se parece manter sempre nos trâmites da realidade histórica. No entanto, talvez a razão pela ausência do absurdo literário se paute pelo facto de que essa mesma realidade histórica já encerraria em si um sinal de absurdo total. A noite na qual o narrador faz perguntas, e isto apesar das suas próprias palavras, só encontraria a resposta certa numa outra madrugada, que apenas viria em 1974.
Estamos a insistir na parte do trabalho de David Soares, mas tal não significa que estejamos ou desejemos sequer secundarizar o esforço e contributo dos artistas envolvidos, já que este projecto conta, como se vê, com Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre da Silva. No entanto, é preciso fazer a ressalva que a escrita de É de noite se pautará, quase de certeza, por um guião completo, dominado pelo escritor e estruturado em vários, se não todos, dos seus níveis, como é notável pelas características indicadas acima. A escolha dos artistas, seja como for, é curiosa, na medida em que, sendo variada, orbita em torno de um núcleo coeso de desenhadores - com a excepção de Richard Câmara - que preferem uma linha mais naturalista, credível, e, no caso deste livro em particular, que exploram uma expressividade contida, sem melodramas. De novo, o peso pelo realismo é maior. E uma vez que a escrita se mantém idêntica, o programa da narrativa é coerente, e a planificação unívoca, há uma visível opção maior por momentos isolados, estáticos, mas representativos das acções maiores do que uma exploração por episódios menores, de acção (daí a ausência de muitos diálogos, de transições circunscritas, etc.).
Os capítulos inicial e final, assim como os separadores - imagens de televisores com imagens que recuperam um tema visual de cada capítulo - são de Richard Câmara, autor cuja abordagem é bem mais estilizada que os outros autores. O que é curioso é que, em contraste com a esmagadora maioria da produção de banda desenhada e de ilustração deste autor, estas páginas são tanto mais livres no seu traço como negras (exceptuando o amarelo doentio e libertador, a um só tempo), o que apenas sublinha com vigor o momento “presente” da história. Esse tempo poderá ser visto, com facilidade, para o longo regime do governo salazarista, mas parece que se deseja ir bem mais além do que um retrato meramente histórico, e até bem mais além do que o mero simbólico, para poder abrir o seu espaço de representação a algo de mais profundo e até partilhável com outros regimes análogos, regimes de noites silenciosas, escuras e cobertas de medo. Parêntesis políticos em que os primeiros e, ainda hoje os sentimos, últimos grilhões são aqueles que se instituem nas próprias mentes dos cidadãos, um medo que penetra os ossos e cada gesto diário: assim, mesmo com a queda dos regimes no papel e nas bandeiras, eles podem continuar a exercer o seu poder para além da tumba.
Notas: agradecimentos ao FIBDA, pela oferta do livro; e pelo dia de hoje, viva a República!
David Soares será, esperemos nós, um autor sempre interessado em manter parte da sua criatividade associada à banda desenhada. Desde que o autor foi desbravando caminho pelo bosque da literatura, que conquistou com cada vez maior segurança e sucesso, é natural que o seu esforço enquanto artista de banda desenhada tenha encontrado menos espaço, ainda que se tenham verificado alguns contactos, quer com a pequena história com Richard Câmara num dos catálogos do FIBDA, o Mucha, e até poderíamos citar a novela Batalha, pela presença das imagens de Daniel Silvestre da Silva. Tanto os romances como as novelas como os contos de Soares têm procurado sempre um ponto de equilíbrio, fulgurante, entre o ancoramento na mais material das histórias, a mais desgarrada e livre das fantasias, e uma pesquisa sempre presente das sombras mais perenes da alma humana. Se bem que acreditemos que o processo deste livro possa ter atravessado vários níveis de colaboração no que diz respeito ao argumento - uma eventual obrigação aqui, um pedido ali, uma deferência noutro momento (por exemplo, algumas referências à Amadora enquanto palco de episódios históricos) -, o convite a Soares abriu caminho a esta resposta inteligente, criativa e pessoal de uma encomenda que poderia se ter coberto de contornos extremamente espartilhados e secos.
Podemos encontrar variadas características contínuas do escritor: as redes densas e significativas de citações; a preocupação em espalhar elementos recorrentes que concorrem para a emergência de uma tressage - os eléctricos, a mão sobre o papel, as breves metáforas visuais que consistem na invasão do plano visual por objectos antes realistas e depois transformados em símbolos -; a utilização recorrente de breves trechos de três vinhetas (à la H. Kurtzman?) numa tira para representar pequenas acções ou momentos de tensão emocional marcadas; a presença de criaturas ou objectos que ganham, mesmo que por um breve momento, uma centralidade máxima, objectual e que, logo, são carregadas com uma energia especial (a esfinge da televisão - filme fictício? símbolo da contemporaneidade? espelho da realidade retratada? -, a árvore que cresce, os soldadinhos de chumbo, e o ecrã amarelo da televisão)... E vejamos outras duas, que precisam de maior desenvolvimento.
Em primeiro lugar, a procura de linhas de força trans-históricas que tornem qualquer gesto num dos elementos de um padrão maior. O caso-chave é o do gesto de Manuel de Arriaga falando ao público, com o dedo indicador levantado e, no fundo, a nova bandeira da República portuguesa, com a esfera armilar e o escudo real, que permite fazer uma puxada de imagens para o passado, com o rei D. Manuel I e depois Hermes Trismegisto, cada um com a sua própria esfera armilar. O que torna esta associação interessante é que a “faixa” do texto não a domina nem confirma, e não existem pistas certeiras a que perspectiva pertencerá essa associação. Será do narrador? De uma das personagens citadas? Ou do próprio nível do meganarrador da banda desenhada? E que tipo de revelação quererá ela despertar? A decisão caberá ao leitor, tal como a de eleger que sentidos possíveis serão colhidos nessa associação, ficando assim a responsabilidade de encontrar esse tal padrão maior totalmente nas suas mãos, não sendo de forma alguma um sentido imposto, digamos assim, pela matéria discursiva. É antes um convite.
Depois, temos ainda a presença do acto da escrita como signo metalinguístico, a tarefa do escritor, testemunha mas também moldador da memória futura. O narrador é um pai que escreve uma carta ao filho, esbirro do regime em curso, adivinhamos. Dessa forma, inverte-se a relação familiar e literária famosa da Carta ao Pai de Kafka. Recordemo-nos de dois aspectos da vida literária do autor checo: o de que a carta nunca seria remetida e o do seu desejo expresso em queimar os seus escritos depois da morte (mas secretamente sabendo que esse cumprimento nunca seria feito, ou melhor, secretamente desejando a sua sobrevivência: pois, caso contrário, porquê fazer esse pedido a Brod, e não a alguém que desprezasse a sua escrita, o que não faltaria na família?). Esta nossa associação talvez seja abusiva e supérflua, mas há como que resquícios dessa outra carta neste livro, pois nós mesmos lemos - e vislumbramos as livres associações da memória, da imaginação, dos sonhos e dos medos do pai-que-escreve - as palavras que, no final, são apenas remetidas ao último correio do fogo imolador (mais um acto alquímico, caro a David Soares). [este elemento é também signo de tressage/entraçamento do livro: ver imagens abaixo do post].
A grande diferença é a ausência da matéria do fantástico ou mesmo do absurdo. Não há fuga do pesado realismo. Ou haverá? Não nos referimos somente à matéria plástica e criativa indicada (nesse sentido, há sempre uma flutuação entre vários regimes de representação), estamos a falar da camada da diegese, que se parece manter sempre nos trâmites da realidade histórica. No entanto, talvez a razão pela ausência do absurdo literário se paute pelo facto de que essa mesma realidade histórica já encerraria em si um sinal de absurdo total. A noite na qual o narrador faz perguntas, e isto apesar das suas próprias palavras, só encontraria a resposta certa numa outra madrugada, que apenas viria em 1974.
Estamos a insistir na parte do trabalho de David Soares, mas tal não significa que estejamos ou desejemos sequer secundarizar o esforço e contributo dos artistas envolvidos, já que este projecto conta, como se vê, com Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre da Silva. No entanto, é preciso fazer a ressalva que a escrita de É de noite se pautará, quase de certeza, por um guião completo, dominado pelo escritor e estruturado em vários, se não todos, dos seus níveis, como é notável pelas características indicadas acima. A escolha dos artistas, seja como for, é curiosa, na medida em que, sendo variada, orbita em torno de um núcleo coeso de desenhadores - com a excepção de Richard Câmara - que preferem uma linha mais naturalista, credível, e, no caso deste livro em particular, que exploram uma expressividade contida, sem melodramas. De novo, o peso pelo realismo é maior. E uma vez que a escrita se mantém idêntica, o programa da narrativa é coerente, e a planificação unívoca, há uma visível opção maior por momentos isolados, estáticos, mas representativos das acções maiores do que uma exploração por episódios menores, de acção (daí a ausência de muitos diálogos, de transições circunscritas, etc.).
Os capítulos inicial e final, assim como os separadores - imagens de televisores com imagens que recuperam um tema visual de cada capítulo - são de Richard Câmara, autor cuja abordagem é bem mais estilizada que os outros autores. O que é curioso é que, em contraste com a esmagadora maioria da produção de banda desenhada e de ilustração deste autor, estas páginas são tanto mais livres no seu traço como negras (exceptuando o amarelo doentio e libertador, a um só tempo), o que apenas sublinha com vigor o momento “presente” da história. Esse tempo poderá ser visto, com facilidade, para o longo regime do governo salazarista, mas parece que se deseja ir bem mais além do que um retrato meramente histórico, e até bem mais além do que o mero simbólico, para poder abrir o seu espaço de representação a algo de mais profundo e até partilhável com outros regimes análogos, regimes de noites silenciosas, escuras e cobertas de medo. Parêntesis políticos em que os primeiros e, ainda hoje os sentimos, últimos grilhões são aqueles que se instituem nas próprias mentes dos cidadãos, um medo que penetra os ossos e cada gesto diário: assim, mesmo com a queda dos regimes no papel e nas bandeiras, eles podem continuar a exercer o seu poder para além da tumba.
Notas: agradecimentos ao FIBDA, pela oferta do livro; e pelo dia de hoje, viva a República!
4 de outubro de 2011
Listmania! (O Cânone na Banda Desenhada)
No rescaldo das Primeiras Conferências de Banda Desenhada em Portugal, de que daremos notícias em breve, e na convergência da nossa participação em dois projectos relativamente análogos, a saber, o livro, 1001 Comics: You Must Read Before You Die, dirigido por Paul Gravett (leiam mais aqui), e o Top 10/Top 115 do blog Hooded Utilitarian (vejam aqui e procurem todos os documentos e discussões associados), deixamos, para a leitura dos interessados (e pacientes: atenção, documento de 13 páginas!), um pequeno ensaio algo desorganizado sobre a ideia do cânone ou da canonização literária aplicado ao campo da banda desenhada. Esperemos que sirva algum propósito.
Podem consultá-lo aqui.
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