O texto que se segue é da autoria
de Thierry Groensteen. Tendo nós publicado o nosso artigo sobre o último livro
de Renaud Chavanne, Composition de la bande dessinée, e a entrevista então feita, no mais recente número do International Journal of Comic Art, em inglês,
naturalmente, Groensteen teve acesso a ele. Nessa leitura, o teórico francês
apercebeu-se de incorrecções na discussão tida, e exerceu o seu direito à
resposta. É ela que se apresenta aqui em baixo. Traduzimo-la para inglês, para
que venha a ser publicada no próximo número do IJOCA, mas aproveitamos também para a disponibilizar junto ao nosso
público, considerando ser justo fazê-lo, ainda que não acrescentemos quaisquer
comentários, exceptuando esta nota inicial. Esperando que os mal-entendidos aqui
implicados não tenham sido suscitados ou agravados pela nossa má interpretação
ou intervenção, ficam as palavras de Groensteen.
“Na entrevista que
Renaud Chavanne deu a Pedro Moura, publicada no último número do IJOCA, o meu colega estabeleceu
paralelos entre a sua obra, Composition
de la bande dessinée (2010), e o meu estudo anterior, Système de la bande dessinée (1999).
“Uma vez que não me
reconheço totalmente na maneira como o Sr. Chavanne dá conta das minhas
propostas teóricas, desejaria providenciar aqui – sem qualquer polémica –
alguns esclarecimentos, e agradeço à redacção do IJOCA por acolhê-los.
“Para começar,
permito-me apontar o quão surpreendente é que Renaud Chavanne, no seu livro,
jamais faça referência aos conceitos propostos pelos seus predecessores que já
haviam estudado a questão da ocupação do espaço da página, em particular Benoît
Peeters e eu mesmo. Poderíamps esperar
que ele debatesse as nossas propostas, mas ele prefere reinventar o seu
aparelho teórico ex nihilo, como se
fosse a primeira pessoa a inclinar-se sobre o assunto.
“Já havia escrito
em Bande dessinée et narration (2011)
que achava lamentável que Chavanne tivesse escolhido o termo ‘composição’ para
designar aquilo que é usualmente chamado em francês de mise en page [lit. “construção da página”]. Essa escolha lexical
leva, com efeito, ao inconveniente de tornar essa palavra, composição, indisponível para designar a disposição de motivos no interior da imagem, a oposição de
massas, a organização de linhas de força, etc., que é o seu emprego usual.
“Na entrevista com
Pedro Moura, Chavanne dá a impressão de acreditar que ‘composição’ é o
equivalente daquilo que eu havia chamado de ‘espácio-topia’ [spatio-topie], e que a ‘mise en page’ é,
nos meus escrito, a transcrição concreta, para cada prancha, das escolhas que revelam
da espácio-topia. Essa apresentação, porém, não é de todo exacta. Para começo, a
espácio-topia não é, nos meus escritos, um conceito operacional. É tão-simplesmente
uma palavra composta, uma categoria abstracta que se propõe num momento
preciso, para ter em conta em conjunto
duas dimensões que são de diferente natureza: aquela do espaço (caracterizada
por um formato e uma superfície) e aquela de um lugar (que designa uma
colocação precisa na página e no livro). Como tentei demonstrar que essas duas
dimensões eram complementares, precisava de um termo que permitisse frisar essa
articulação. Daí, espácio-topia. Mas
para tudo aquilo que revela da organização da página (a que Chavanne chama de
composição), o meu conceito é realmente, desde o início, o da mise en page, o qual entra num paradigma
coerente com os outros dois conceitos que são a découpage [o “corte”] e a tressage
[o “entraçamento”].
“Eu falo do sistema
espácio-tópico quando examino, uma a uma, as unidades espaciais da linguagem da
banda desenhada: a vinheta, o balão, a página, porque com efeito estas
unidades, quando juntas, fazem um sistema.
“Em suma, na sua
apresentação das minhas propostas teóricas, Chavanne procura introduzir
confusão onde ela não existe.
“O ponto forte do
livro de Renaud Chavanne, a que me naturalmente curvo, é a magnífica
multiplicidade de exemplos de pranchas que ele convoca e analisa. É verdade que
Système de la bande dessinée tem
muitas poucas análises de caso. Mas essa é uma questão que, em primeiro lugar,
deveu-se a circunstâncias editoriais: a colecção que acolheu o meu livro não
costuma ter ilustrações nenhumas, e foi preciso batalhar para conseguir
introduzir uma dezena. (Foi o editor que escolheu colocar o meu livro nessa
série, não eu). De seguida, os objectivos dos nossos livros diferem (Chavanne
trata de uma questão precisa, ao passo que eu abordo questões bem mais
diversas). E finalmente, sobre o plano metodológico, eu acho mais interessante
regressar várias vezes sobre os mesmos exemplos para poder fazer leituras
parciais sucessivas que mostram tudo aquilo que se pode tirar de uma mesma
página de banda desenhada.
“Chavanne aponta o
facto de que eu não reciclei muito os meus próprios conceitos nos meus escritos
que se seguiram. Na verdade, faço a distinção entre obras teóricas, livros de
arte (L’Art d’Alain Saint-Ogan), e
obras de vulgarização (La bande dessinée,mode d’emploi), ou aquelas que se dedicam a um tema iconográfico preciso
(como o rosto humano no caso de Lignes de
vie). Penso que não seria muito elegante da minha parte forçar por todos
eles um arsenal teórico complexo que teria de explicar a cada passo. Mas ele
pode ficar descansado: eu sirvo-me deles quando a ocasião se proporciona ou
quando a necessidade se faz sentir. Por exemplo, no meu estudo de The Cage, de Martin Vaughn-James, eu
mostro como essa obra se constrói como nenhuma outra sobre a operação a que
havia chamado tressage, um conceito
sobre o qual, de resto, me encontro precisamente a escrever para um novo estudo
que a expandirá e explicará com maior clareza.
“Uma última
rectificação, para terminar: nunca fui director do CNBDI, mas apenas director
do Musée de la bande dessinée, que é um dos departamentos que compõem o CNBDI.”
30 de julho de 2012
27 de julho de 2012
Tinta nos Nervos nos X Troféus Central Comics
Serve o presente post para indicar aos interessados que o catálogo da exposição Tinta nos Nervos se encontra a concurso na categoria "Melhor Publicação Técnica" dos últimos Troféus Central Comics (os X). Sendo público sermos um dos três membros do júri (este ano, excepcionalmente, reduzido), penso não ser grave fazer aqui alarde disso. Estão desde já convidados a participar e votarem em todas as categorias e trabalhos a concurso (boletim aqui), naquele que é o único prémio de público desta área em Portugal, com os seus desequilíbrios inevitáveis, mas que têm sido melhorados e, seja como for, é uma oportunidade única. Participem de forma livre e ponderada, com excepção da categoria indicada, na qual, enquanto leitores deste espaço, levam um "vale" obrigatório... Obrigado.
23 de julho de 2012
Quatro livros em torno de L’Association
A novela das transformações dos
últimos anos desta plataforma editorial, com saídas e entradas, regressos e
greves, coups e berraria, pública ou não, é demasiado intricada para ser
transformada num fio condutor único e inócuo. Talvez o que interesse é fazer um
balanço dos seus mais de vinte anos de existência, desta associação dedicada “à
espera de um polvo de uma banda desenhada particular e inovadora, seja por meio
da reprodutibilidade ou de qualquer outro meio (exposições, debates, etc.)”,
como rezam os estatutos (reproduzidos na íntegra em Utopie, e mitificadods
por Ayroles, cf. adiante). Aquela
expressão do “polvo” deve-se entender pelo facto de que na sua imediata
pré-história se tratava de L’Association pour L’Apologie du Neuvième Art Libre
(AANAL), fundada por Stanislas, Konture e Menu (em 1984, e associado ao fanzine
Lynx à tifs), e depois, em 1990, torna-se então L’Association à la
Pulpe. Esse nome também é notável pelo símbolo escolhido, uma hidra com tantas
cabeças quanto os seus fundadores-autores, de sete passando imediatamente para
seis, referentes a David B., Lewis Trondheim, Jean-Christophe Menu, Stanislas,
Killoffer e Mattt Konture.
Por exemplo, numa das últimas assembleias
gerais, como vem transcrito num blog que dá conta disso, Lewis Trondheim terá
dito, “Para mim, só há um problema, que é o Menu” , ao que este terá
respondido, “O problema até posso ser eu, mas se eu não estivesse aqui, não
haveria nada!” Como é óbvio, não tomaremos partido aqui das personalidades
envolvidas e/ou posicionamentos assumidos pelas “partes”, e acreditamos até que
a situação encontrará a meio-caminho as suas razões. Alguns destes livros que
trazemos à consideração dão conta de várias perspectivas, que mais do que
contradizerem se complementam e mostram como todos e quaisquer factos podem ser
interpretados e até sentidos de maneiras diferentes.
Também não podemos deixar de
sublinhar que a escolha destes quatro livros nasce de uma circunstancialidade,
de uma coincidência, de uma espera, e não de uma concertada convergência da
parte dos seus autores, e até se a faz na ausência, ignorância ou
secundarização de outros canais e projectos. Aliás, se o livro de Menu
corresponde ainda a uma fase em que ele estava tomando conta das rédeas da
plataforma, Quoi já se segue à sua saída. E poderíamos ainda ter
incluído outros livros, até da própria l’Association, como parte desta ideia de
balanço (poderíamos até indicar que alguns dos seus gestos têm sido balanços
sucessivos, quiçá parte daquelas batalhas de egos e direcções).
Este livro é criado por um
colectivo de investigadores e estudiosos da Universidade de Liège da banda
desenhada, necessariamente interdisciplinar, e trata-se de uma perspectiva
multifacetada sobre o projecto, tentando criar não tanto uma figura completa da
sua história, políticas, produção, personalidades, características, etc. mas
pelo menos suficientemente transversal para abordar todas esses aspectos.
Os capítulos são todos assinados
de forma singular (com excepção da introdução), e alternadamente apresentam um
estudo mais exclusivo sobre determinado aspecto ou textos mais descritivos,
gerais, informativos. Nos primeiros casos, fala-se da autobiografia, da
reportagem, da banda desenhada dita “muda”, das técnicas visuais, nos segundos
dos materiais exclusivos para associados, os projectos da Oubapo, a revista Lapin,
o projecto Comix 2000 (se bem que não explorando com maior exactidão os
problemas que a sua “mudez” representa na suposta “universalidade” da linguagem
da banda desenhada), ou sobre a nova geração de autores da casa. Nalguns casos,
os estudos são mesmo close readings, como no caso do estudo de
Christophe Dony sobre o livro 73304-23-4152-6-96-8 de Thomas Ott, ou
abordagens sobre Sfar (sobre o seu “estilo gráfico ‘espontâneo’”, que,
compreenderão os leitores do lerbd, tange as mesmas cordas do que
chamamos de “desenho caligráfico”), François Ayroles, Persepolis (o
único verdadeiro caso de best seller da casa, tendo atingindo um
público, “além-bêdê”, ainda que não de uma recepção crítica mais restrita), Manuel,
Shenzhen, etc.
Importante é a contextualização
da l’Association não enquanto gesto absoluto – inédito, irrepetível, singular,
isolado – mas como parte de um tecido de continuidades, históricas e de
afinidades editoriais e estéticas. Daí que o primeiro texto seja dedicado não à
l’Association mas à Futuropolis, que pode ser vista, a um só tempo, como primeiro
passo na direcção do que a Association cumpriria, como porto de abrigo aos
autores na sua juventude e aprendizagem, e como eixo de transformação e
plataforma de lançamento (e até de regresso, se compreendermos a aliança entre
Menu pós-Association com Robial na L’apocalypse). Mas tem que se compreender
que essa fase, de uma “contra-cultura interna” à banda desenhada nos anos 1970,
e como muito bem a caracteriza uma expressão de Björn-Olav Dozo, foi de facto
uma “autonomização inconclusa da banda desenhada” (43). Por outro lado, Erwin
Dejasse não nos deixa esquecer a relação íntima, quase confundível, com as
éditions Cornélius, com a qual dividiam espaço, distribuidora, autores e “rede
social”. Como escreve Menu no seu livro (de que falaremos a seguir), no momento
da fundação da l’Association, “há já uma História anterior, uma experiência
consequente ao nível do Colectivo, uma relativo conhecimento de técnicas de
impressão, as quais fazem com que desde o início a nova estrutura tenha os
meios de ultrapassar o terreno amador” (pg. 189 de Double, sublinhado no
original). Fala-se apenas de uma forma telegráfica de outros projectos como a
Fréon, a Amok, ego comme x, La Cinquième Couche, etc., mas sem um estudo mais
alargado, e, de resto, compreende-se esse “desequilíbrio” apenas na ideia de
que é de facto a Association que consegue conquistar um público não só mais
alargado, como também é ela quem acaba por influenciar outros projectos, quer
através de um formato como o da colecção Patte de Mouche, adaptado por tantas
outras plataformas independentes (inclusive a portuguesa Quadradinho; mas a
importância dos formatos nesta casa é de uma extrema produtividade, como quis
um artigo de Pascal Lefèvre, aqui),
à forma como uma editora mainstream como a Casterman se iria aproveitar
da fórmula formato-e-conteúdo Ciboulette/“livro literário” na sua Écritures,
etc. Já para não falar da forma concertada como a Éprouvette demonstrou
a possibilidade dos autores de banda desenhada serem capazes de coordenar e
exprimir reflexões teóricas sobre a sua própria prática como quaisquer outros
artistas.
O ensaio de Dozo dedica-se
sobretudo à fundação e experimentação contínua das autobiografias nesta
editora, sobretudo os três livros fundacionais (Approximativement, de
Trondheim, Livret de phamille, de Menu, e Journal d’un album, de
Dupuy & Berberian) e a espiral que lançavam entre si, e entre outros
materiais – criando o que o autor chama de “a autobiografia polifónica de uma
geração” (91). Porém, se este artigo aponta muitas das características
originais, marcantes desses gestos, e avança algumas robustas interpretações,
algumas das citações ou omissões não deixam de ser sinal de desequilíbrio, como
a suposta resistência aos géneros clássicos da banda desenhada, o que, não
deixando de ser verdade em relação à própria Association, não é assim no que
diz respeito aos autores em termos pessoais, visto tantos dos seus projectos
noutros locais (Lapinot, Donjon, Petit Vampire, etc.).
Um estudo das técnicas
narrativas e visuais, por Gert Meesters, contrasta a produção desta casa com o
que o ensaísta chama de “banda desenhada clássica”, seguindo métodos
quantitativos, comparando pranchas da revista Lapin com as de outras
revistas mais comerciais, sobretudo a Tintin reporter/Hello Bédé.
As suas análises são produtivas e as conclusões significativas, mas fica-nos a
impressão (não mais que isso, pois obrigaria a um contra-estudo) de que a
comparação falha por não tomar em conta a alteração profunda do contexto
histórico e social das publicações em questão: afinal de contas, o mainstream
francófono, nos anos 1990, não tem nas revistas regulares o mesmo cadinho de
lançamento junto ao grande público que tinha tido em décadas anteriores, e a
própria fórmula da Lapin repesca essa ideia antiga mas no seio de uma
lógica contemporânea, até mesmo “artística”, “literária”, “intelectual” de uma nova banda desenhada, que implica tanto
o experimentalismo como a inteligente utilização e citação da sua linguagem,
precisamente, “clássica”.
As reflexões de Menu começam bem
cedo, pelo menos de forma semi-pública na sua tese de licenciatura em artes
plásticas, em 1988 (e que seria publicada para os associados em 2003) e são
exploradas neste volume, ainda que sem uma dedicação mais centralizada e
crítica. No entanto, não é de todo secundário que se façam as necessárias
ligações entre todos os seus projectos, desde os primeiros fanzines até à
revista Labo, a qual, publicada pela Futuropolis em 1990, contaria com a
presença dos fundadores da editora, e outros autores. De certa forma, pode-se
dizer ser esse o ponto de partida oficial, ou pelo menos o nexo oficial do
projecto (que tem outros pontos de partida e muitas metástases). Entre “Sorte d’éditorial”,
publicada na Labo, e “Sorte d’épilogue”, no volume colectivo XX/MMX
(2010, que não lemos), Menu faz um retrato simétrico, ainda que invertido, da
situação editorial francesa entre os vinte anos que são então marcados pela
própria existência da Association: se na primeira história há uma espécie de
esperança de que as novas e pequenas editoras seguissem caminhos deveras
alternativos aos dinossauros que vemos digladiarem-se (metáforas para as
grandes editoras a lutarem pelos mesmos géneros, pelos mesmos espaços de
divulgação e circulação, etc.) – a personagem/avatar de Menu tem um X na cara
para representar a colecção especial da Futuropolis, e o pequeno dinossauro
apenas nos faz imaginar o pior -, a segunda mostra como algumas dessas pequenas
plataformas acabaram por apenas mimar as grandes e, por isso, cair na mesma
desgraça e fim. Não deixa de ser curioso pensar, todavia, que parte do que se
acusa Menu de ter feito é precisamente ter transformado uma associação de
autores, não-hierárquica e com projectos livres, no seu próprio projecto
editorial (e, dizem alguns, ditatorial), com os problemas inerentes. A
transformação ou regresso a um modelo anterior (não sem uma valsa complicada)
pode significar um seu relançamento, mas apenas o tempo o dirá.
Utopie é, portanto, a um só tempo, um
balanço, uma consideração global, um encómio mas também uma tentativa de fundar
um gesto crítico para a contribuição desta editora.
A inclusão deste livro neste grupo não deixa de ser um exercício
injusto da nossa parte, uma vez que não é sobre L’Association de modo directo
ou exclusivamente, ainda que cite a sua história e se a implique de um modo,
literalmente, íntimo. Esta é a tese de doutoramento de Menu, que, como
se depreende pelo título, parte da noção de Artaud do duplo para o descobrir
na banda desenhada, emergindo nas “perspectivas práticas, teóricas e editoriais”
(pg. 9), a que o próprio autor se entregou nas últimas décadas. Logo, este
livro deveria merecer uma leitura crítica mais específica, que lhe respeitasse
os conceitos e com eles entabulasse um diálogo, e não o subsumir à história da
Association, mas incorreremos em parte nesse erro aqui.
Valerá a pena uma descrição quase exaustiva da estrutura do livro.
Ele é dividido em três partes, a primeira sobre “limites e potencialidades”,
falando, em capítulos exclusivos, sobre a autobiografia, a Oubapo e os
cruzamentos entre a banda desenhada e a terceira dimensão, cada uma dessas “coisas”
vistas como potenciais “outros” no interior da banda desenhada, quer dizer,
como vias que desdobram a banda desenhada em novas direcções. A segunda parte, “mitos
e microcosmo”, discute a história da L’Association em todos os seus passos e
princípios (estéticos, editoriais, políticos, críticos, etc.), assim como
aborda as tradições e rupturas da história da banda desenhada, e procura “novas
perspectivas internas”, sublinhando conceitos tais como as de metaficção,
infraficção, fragmentos, heterotopias, etc. para descobrir formas “duplas” da
banda desenhada, e quase sempre citando obras compostas (editadas ou inéditas)
pelo próprio Menu. A terceira parte, “linguagem e fronteiras”, alarga a ideia
da história “clássica” (leia-se “fechada” e “alheia a experiências”) para
abordar exemplos de textos medievais, hieróglifos egípcios (tirando partido do
conhecimento da mãe, egiptóloga de renome), abarcar os ideogramas, e falar
mesmo de um “corpus fora de campo” desta área, com o grande livro de Charlotte
Salomon, ou citando Dino Buzzati ou Henry Darger. O último capítulo, ainda
nesta terceira parte, entrega-se a um balanço teórico e conceptual que continua
o edifício desta área de estudos, mas procurando entrosar cada noção (vinheta,
hiperquadro, espaço folheado, etc.) com a sua própria noção de “duplo”. Duplo
que a articula no seu próprio interior, como em relação às duas áreas criativas
imediatamente contíguas, a Arte e a Literatura (v. 482 e ss.). O seu alto
propósito é, nem menos nem mais do que um estudo sobre os elementos “ontologicamente
constitutivos” da linguagem da banda desenhada. De onde parte a ideia de que a
sua “equivocidade salutar é uma configuração [tournure] de
espírito paralela da qual o dispositivo da Banda Desenhada faz parte, e é
também a natureza equívoca desde meio suspeito que faz com
que seja incompreendido e marginalizado pelos defensores de uma sociedade unívoca”
(484, subl. ori.).
Alguns dos escolhos da argumentação do autor está no facto dele, em
termos gerais, afunilar a sua senda ao panorama francês, o que não deixa de
fortalecer aos seus próprios gestos autorais/editoriais como diferentes (o que
se diluiria, possivelmente, num outro enquadramento; e nem abordaremos a
questão de ele pessoalizar ou individualizar a vida da Association à sua
própria prática, desligada da de um colectivo); quer dizer, esta é uma opção
a-histórica e que é falha nas suas qualificações (por exemplo, pensar enquanto “excepção
da reprodução técnica/mecânica” em relação a textos que surgiram antes da
sua própria possibilidade, como os manuscritos medievais, é um
exercício apenas superficialmente interessante, sendo bem mais produtivo uma
inscrição mais correcta na história). Algumas das suas leituras de textos
alheios, como as de um manuscrito medieval de Villard de Honnecourt, são algo
essencialistas e até mitificantes em relação ao grande corpus da banda
desenhada, mas Menu deixa visíveis as razões para essas mesmas posições.
Diga-se de passagem que Menu está mesmo consciente deste estilo: “Nunca
escondi as minhas contradições e, bem pelo contrário, sempre cultivei os meus
paradoxos, que sempre me pareceram mais férteis do que definições unívocas”,
210). E essas linhas unem-se: “ultrapassando (…) essa dicotomia [do seu próprio
percurso] entre a minha tendência Spirou e a minha tendência Underground,
também integrei essas duas direcções num estádio mais consciente, e num campo
de acção mais alargado. Nesse sentido, classicismo e ruptura, bloco
de infância [associada às revistas Spirou, Pilote, Pif, Tintin, ou
Ric Hochet] e bloco da adolescência [Métal Hurlant], não são
mais do que dois registos, até mesmo duas ferramentas entre outras, no seio de
uma prática que se tornou plurívoca e polimorfa” (279, subl.
orig.).
Se bem que o estilo pessoal, por vezes controverso, senão mesmo
polemista, de Menu levante alguns obstáculos e o tornem algo desequilibrado na
argumentação - por exemplo, pela forma como defende necessariamente os seus
gostos provindos da infância (Macherot, Hergé, Tillieux, que ele chega a
afirmar como autores que criam ideias subversivas!, pg. 222) face a outros
textos -, a leitura deste tomo de mais de 500 páginas (na verdade, deveria ter
mais de 600, pelas indicações que remetem a um anexo final que parece
incompleto, mas poderá ser a nossa cópia somente) que aborda a Criação, a
Reflexão e a Produção da banda desenhada, por um dos mais activos e
interrogativos agentes da cena francesa da contemporaneidade não deixa de ser
uma plataforma intrigante, pedagógica e instigadora. Não há dúvida de que Menu,
à sua maneira, tem contribuído para uma banda desenhada “exigente e libertada
das suas contingências comerciais face a um microcosmos vendilhão e mesquinho [marchand
et borné]” (11). E, sendo uma tese no quadro de trabalho prático, é de uma
extrema produtividade ler excertos ou peças completas do autor que não só “ilustram”
como inflectem a discussão académica, ou dão-lhe uma extensão interrogante. Há,
portanto, sinais de uma “meta-prática” (definidas como “transposição para a
esfera da produção certas reflexões da prática criativa”, 211) que poderíamos
detectar, até certo ponto, entre nós, em Teresa Câmara Pestana, José Feitor,
Marcos Farrajota. E, na verdade, a leitura analítica de Menu dos seus próprios
trabalhos é apaixonante e obriga a uma cuidada leitura das suas conquistas.
Mesmo as suas falsas partidas, projectos inacabados, ideias abortadas, fragmentos
sem descrição possível, são vistas, e correcta e luminosamente, como partes de
um todo interpretável e significativo. Aliás, o elogio ao fragmento é uma das
partes mais decisivas de toda a argumentação de Menu. A sua inscrição como “actor”,
central ou até mesmo exclusivo - quase se pode tresler Menu a dizer, “après
moi, le Déluge” (ou, pelo menos, L’Apocalypse) - torna toda a discussão em algo
perigosamente titubeante em termos académicos (e remetemos para este texto da du9), mas mais uma vez convidamos à leitura cuidadosa do livro para
detectar quer os escolhos (bastos) e das lições (não displicentes).
Menu compreende que um dos problemas, a um só tempo criativo e
social, é que a banda desenhada sofre muitas vezes de uma apresentação
estática, e que mesmo os seus leitores mais fervorosos, senão precisamente
esses leitores mais fervorosos, querem sempre ler o mesmo, e não que ela
acompanhe o desenvolvimento intelectual, emocional e cultural de criança a
adulto. Quando Menu escreve, em relação a leitura da obra de Franquin, em
criança com Spirou e depois com Idées Noires, “Era como se eu
visse as minhas leituras a crescer ao mesmo tempo que eu” (27), dá conta de uma
possibilidade que nem sempre se verifica na maior parte dos leitores - que ora
abandonam esta linguagem como parte da sua infância/adolescência ora a
preservam somente num estado em que a ela remeta. Esta atitude não apenas é
notada nos coleccionadores, amantes bedéfilos e comentadores, como em toda uma
série de mal-entendidos entre o circuito artístico e a banda desenhada, que é
analisada com veemência e produtividade, sobretudo em relação a muitas
exposições que partem de comparativismos fáceis, redutores e até perigosos, da
qual a banda desenhada sai sempre “mal”. Em relação à Vraoum, por
exemplo, mas aplicável noutros contextos, escreve Menu: “com efeito, juntando
num mesmo local e em primeiro grau as obras de que provêem, elas não procuram
outros ecos senão as das personagens, da mitologia, do universo
dessas obras, e não da sua linguagem” (146, subl. ori.). Por isso,
torna-se muito interessante uma outra discussão, mais à frente, compreensível
na seguinte citação: “A ideia desta Erosão é simples, ela exprime a
salutar porosidade das fronteiras dos campos artísticos: em cada um destes territórios
[das fronteiras disciplinares], podemos encontrar uma forma de poder central
que tem a tendência (e muitas vezes o interesse) a calcificar o seu meio em
género, ao mesmo tempo que existe, nos extremos, uma marginalidade difusa,
propositadamente rebelde, cuja tendência é antes a de pactuar com os povos
vizinhos do que a obedecer às injunções do poder central. Desta forma, a Banda
Desenhada, quando não se contenta a imitar a digerir a si mesma, sabe
contaminar-se por múltiplas outras disciplinas, alimentando-se de várias
experiências e, abrindo-se a outra coisa, a desdobrar-se” (366, subl.
ori.). Na óptica de Menu, o trabalho da l’Association, que não se resume à
revista Lapin e ao incrível catálogo de livros e às experiências
oubapianas, mas igualmente aos objectos criados para os subscritores, a forma
como expunham e apresentavam publicamente os trabalhos, como se criava a imagem
(e o “auto-mito”) dos autores e das formas de produção, e à influência que se
sentiria rapidamente quer no circuito dos pequenos e/ou editores independentes
quer no mundo das editoras mais comerciais, em muito contribuiu para esses
desdobramentos em termos de género, de estilo, de linguagem, de materialidade
dos objectos, e de expressão económica e política, no que diz respeito à
distribuição e relação com a imprensa (nenhuma, na verdade), à venda e
comercialização, à relação com todos os agentes da equação
autor-leitor/produtor-consumidor.
Em conclusão, e regressando a Menu, subscrevemos esta ideia: “a
Banda Desenhada não existe, o que há são formas de bandas desenhadas,
cada vez mais diferentes” (220, subl. ori.). E l’Association contribui, de modo
a um só tempo controlado, contínuo e contundente, com muitas dessas diferentes
formas. Esta tese de Menu contribui para uma narrativa - não sem contornos
mitificadores e de uma subjectividade quase extrema - dessa mesma história, mas
igualmente para compreender os desdobramentos internos a esse capítulo da
produção.
Não há como evitar pensar neste livro como um “lavar a roupa suja em
praça pública” ou um “contra-ataque a Menu”. Com histórias assinadas e, nalguns
casos, baralhadas, de David B,, Charles Berberian, Jean-Louis Capron (da
Cornélius), Jean-Yves Duhoo, Killoffer, o associado desaparecido Mokeït, Joann
Sfar, Stanislas e Lewis Trondheim, este volume, que marca o regresso de muitos
destes artistas às rédeas da casa depois da saída (tempestuosa) de Menu,
parecer querer contar a sua própria versão dos factos. É mesmo contraponto de XX/MMX,
ou uma espécie de contra-comemoração, ou comemoração do aniversário por quem
tinha sido deixado “de fora”. Tendo-se previsto editar noutro local
(Shampooing), o regresso dos associados originais ao ponto de partida leva a
que este gesto surja no seu seio, e isso faz todo o sentido. O grande problema
desta publicação, compreendem os leitores, é que é de um interesse limitado,
apenas para aqueles que têm interesse na história particular deste grupo de
autores, ou o que ele representa na esfera social da banda desenhada francesa
contemporânea. É um exercício de ensimesmamento e de auto-importância
monumental.
A leitura deste livro é uma espécie de biografia de toda
l’Association, a partir destes outros membros (mas Konture está totalmente
ausente, assim como a de outros artistas, mais ou menos contínuos, como
Baudoin, de outra geração, ou, como muito bem aponta Capron, todos os
“assalariados” que trabalharam nesta plataforma). A formação das amizades, as
primeiras decisões. As invenções dos pormenores que compõem a casa editorial,
os primeiros deslizes, discussões e afastamentos. As reuniões, regressos e
cortes finais.
David B. e Trondheim tentam mostrar a sua versão dos factos, desde os
momentos da fundação até ao corte final, mas não conseguem fazer representar
Menu sem ser um controlador quase histérico (tal como ele próprio se faz
representar, na tese citada acima, enquanto coração, motor e génio isolado).
Mokeït recusa-se a tomar partido, e a sua versão dos factos mostra um retrato
mais matizado. Stanislas prefere o humor, e Killoffer prefere ainda uma posição
diplomática. Capron mostra uma terceira versão, enquanto colega “exterior” ou
de projecto, e tanto celebra a Association como não esconde que este mesmo
gesto, que estamos a ler, pode ser sinal de um fim. Sfar é uma espécie de
repórter equilibrado, e as páginas deste autor que haviam sido, de certa forma,
“censuradas” por Menu demonstram de imediato um rol de problemas graves numa
plataforma que se queria independente e alternativa nos modos de funcionamento.
Este livro é um gesto quase inédito. Autobiografia, biografia de
grupo, monografia sobre um projecto, desmontagem de uma personalidade, retrato
de uma época e de uma circunstância, tanto se pode revelar apaixonante e
contribuindo para um retrato cada vez mais complexo (a tal “novela” que citámos
logo ao início), ou, para quem não quiser saber destes pormenores e preferir
ler as excelentes produções editoriais da casa, um desvio inominável… Mas a
Association sempre se compôs de satélites…
Apenas a título de recado, ou
marcação de mais uma perspectiva, temos este pequeno livro. Na esteira de duas
obras anteriores dedicadas aos “momentos-chave” da história da banda desenhada,
e uma dedicada a um colega da editora (Mon Killoffer de poche), esta
pequena obrinha faz também parte deste balanço. Umas dezenas de imagens
recordam, de formas mais ou menos claras, outras pedindo um conhecimento íntimo
da história e dos pormenores das personalidades e projectos da l’Association,
os vintes anos discutidos nas outras obras com recurso a outras ordens de discurso.
Miscelânea a um só tempo nostálgica, diplomática, comemorativa, e de certa
forma melancólica, é uma forma talvez sucinta de recordar toda aquela aventura,
esperando eventualmente que se possam repetir tantos momentos decisivos (menos
os tristes).
20 de julho de 2012
Baba Yaga and The Wolf/Wax Cross. Tin Can Forest (Koyama Press)
Adeptos de Promethea ou de Hellboy encontrarão aqui seguramente um fio que se mantém no rumo
comum dessas outras obras: misticismo, folclore, lendas, magia, entrega às
forças ocultas, nocturnas, oníricas, telúricas, ctónicas, lunares, estelares,
sobrenaturais que navegam ainda nos interstícios do saber humano. Como usar a
banda desenhada numa função mágica, ou como usar elementos encantatórios para
conjurar um acto poético. (Mais)
19 de julho de 2012
All-Girlz Banzai/Zona Nippon. AAVV (Arga Warga/Zona)
Fará algum sentido falar de “mangá feita em português”? Uma vez que essa é uma pergunta repetida em tantos outros fóruns e nós próprios já a mencionámos, repetiremos esquematicamente algumas dessas considerações. Fazer sentido, faz, na medida em que há todo um grupo de autores e autoras que criam bandas desenhadas que obedecem a um conjunto mais ou menos restrito, mais ou menos imitável, de códigos de representação e figuração, estruturação e composição de página, e até mesmo de géneros e linguagem, que se encontram no cadinho da mangá - sobretudo aquela mais comercial e de maior circulação - propriamente dita. É como se esses autores, em vez de responderem às suas tradições mais próximas (portuguesa, europeia, ocidental, etc.), estabelecessem um diálogo, de recepção e transformação criativa, com uma outra mole cultural, sobretudo japonesa, mas que é já porosa também a outros palcos nacionais (Coreia, China, acima de tudo). (Mais)
18 de julho de 2012
The Art of Daniel Clowes, Modern Cartoonist. Alvin Buenaventura, ed. (Abrams)
Não se tratando propriamente de um catálogo da exposição dedicada ao artista no Oakland Museum of California, não obstante trata-se de um projecto editorial com ela relacionada, partilhando o título, a pessoa da comissária (Susan Miller), e, como é de esperar, muito dos materiais apresentados, com a diferença fundamental da forma diferente em que ambos são apresentados num espaço físico, tridimensional, que se atravessa com o corpo, e num livro, folheado pelos leitores.
Coffee table book, este projecto tanto sofrerá como auferirá desse descritivo. Do que ganha é a dimensão visual, como é de esperar. As reproduções e a quantidade de arte original, de esboços preparatórios, de páginas de sketchbooks, e até materiais de produção gráfica (separações de cores) é deslumbrante. O acesso a objectos coleccionados por Clowes, e que lhe serviriam de inspiração para personagens, objectos e ambientes das suas histórias, assim como fotografias de repérage, assim como os mais variados trabalhos comerciais (posters de filmes, capas de discos, logotipos para lojas, e até um projecto, com Charles Burns, para a Coca-Cola – a OK Soda de 1994), dão uma faceta mais volumosa da obra deste autor fundamental. Vemos um balanço completo de Eightball, discutivelmente a revista que construiu a fama e a linguagem de Clowes, assim como colaborações, adaptações, ilustrações, com muitos casos de pequenas bandas desenhadas curtas completas nestas páginas, ou trechos de obras maiores, sempre acompanhadas de notas ou legendas esclarecedoras.
O livro é acompanhado por alguns textos, mais ou menos ensaísticos, mas a esmagadora maioria deles são algo impressionistas, tais como o encómio (mas ainda assim iluminador) de Chris Ware e as considerações algo superficiais de Chipp Kidd; uma entrevista por Kristine McKenna apresenta-se como atravessando toda a carreira e vida, e misturando ambas as dimensões, mas parece-nos algo confusa, e sem grande possibilidade de fazer deslocar novos sentidos, novas informações ou novos posicionamentos de Clowes. Há outro texto sobre David Boring e as relações de Clowes com o cinema, por Ray Pride, mas não nos parece que também chegue a ideias muito claras. Susan Miller tem um texto sobre a capacidade de Clowes enquanto retratista/caricaturista, que demonstra como os instrumentos da História de Arte podem ser bem empregues no seu diálogo com a banda desenhada e ilustração. Ou seja, como se espera neste tipo de gestos editoriais (mas que enfraqueceria se pretendessem seguir os mesmos passos estruturais e críticos de um catálogo de arte), não encontraremos aqui materiais maciços. Com uma excepção.
Exemplar, todavia, é o texto mais alongado de Ken Parille, um conceituado crítico de banda desenhada. Concentrando-se nas quatro obras de maior fôlego de Clowes desde os anos 2000 – e nas suas versões em livro, não a serialização, a saber, Ice Haven (2005), Wilson (2010), The Death-Ray e Mister Wonderful (ambas de 2011) – Parille faz uma close-reading de alguns dos aspectos de cada um destes livros, obrigando os leitores a redescobrir as razões pelas quais Clowes é, com efeito, um autor determinante da contemporaneidade e, espera-se, influente. É impossível dar conta de todos os passos de Parille, sem se incorrer na repetição de todo o texto. Começando pela ideia mais geral (aparentada à de Thierry Groensteen) da “heterogeneidade gráfica”, o crítico fala do “fim do estilo”, precisamente para analisar, até mesmo comparativamente, as formas como Clowes multiplica a sua linguagem gráfica no interior de uma mesma narrativa, para chegar a uma definição de “afecto” como “o nosso estilo emocional do momento” (168), seguindo depois análises dos narradores duplos (da imagem e do texto), a grafia dos textos, as formas dos balões e legendas, a gestão das cores e texturas dos desenhos, das cenas de fantasia e de memória das personagens, das relações com os tempos diegéticos e da narrativa, passando por questões de representação, caricatura, fisionomia e empatia, a formatos das vinhetas e gestão dos silêncios. “As escolhas formais dão corpo [embody] à psicologia das personagens” (162) é corolário e epítome desta fabulosa lição.
Não deixa de ser inesperada, e algo contraditória, a forma como este crítico goza com a figura do crítico de banda desenhada no interior de Ice Haven, Harry Naybors, falando do jargão deste, ou das formas como lança as redes de interpretação, quando o próprio Parille, sem entrar nos abusos – sobretudo na esfera do patético e do pessoal – de Naybors, demonstra a capacidade que o crítico tem de iluminar um texto, para o elevar ao estatuto de obra de arte, como escrevera Benjamin.
Se bem que não apreciemos a utilização do vocábulo “evolução” para falar das torções internas e pesquisas cambiantes que presidem à obra de um qualquer artista, é visível a diferença entre os trabalhos de meados dos anos 1990 (Lloyd Llewellyn e etc.), devedores de uma inscrição retro e pós-underground, que recorda a um só tempo Jim Flora, Robert Williams, Beatnik jazz e hot rod, e aquela maior acalmia e cada vez mais profunda investigação pela natureza humana que começou, discutivelmente, com Ghost World (1994-1997). Mas este livro concentra-se sobretudo na última produção, quiçá secundarizando o humor corrosivo, mais adolescente do primeiro Clowes (perfeitamente irmanável com Peter Bagge, Joe Matt, John Ryan, Ivan Brunetti, etc.), e sublimando as obras que o colocariam mais próximo de toda uma produção de “graphic novels” mais “literárias” – pelas quais ganhar um reconhecimento crítico e académico determinado, aproxima-o de um cânone contemporâneo da banda desenhada norte-americana, e angaria prémios prestigiados (Pen Center) – e as suas dimensões de estilos variados – que o colocam ao lado de outros reinventores da linguagem em questão, como Ware.
Como possível cartografia da sua obra, ou balanço crítico, ou plataforma de descoberta dos vários níveis de produção, criação e pensamento, este livro não deixa de ser uma ferramenta oportuna, invejável de existir em relação a muitos outros autores.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
17 de julho de 2012
The Future of Text and Image. Ofra Amihay e Lauren Walsh, eds. (Cambridge Scholars Publishing)
Para além dos livros dedicados exclusivamente ao estudo ou apreciação da banda desenhada, o panorama académico vai também abrindo cada vez mais espaço nas suas publicações à inclusão de estudos que a elejam enquanto objecto de estudo sob o escrutínio das mais diversas metodologias, disciplinas ou focalizações temáticas. É o que tem sucedido, em contagem crescente, de há vinte anos a esta parte, sobretudo no contexto anglófono e, do que nos é possível determinar, germanófilo. É claro que existirão áreas que estarão desde logo mais sensibilizadas, quer no sentido emocional quer no fotográfico, a abarcarem-na, como a dos estudos as “conjunções literárias e visuais”, subtítulo desta colecção.
A relação entre o texto e as imagens é algo que tem fomentado, desde o seu surgimento no mundo ocidental, pelo menos, discussões profundas que tanto se referirão restritamente à grafia (palavra que deve compreender as marcas em ambos os casos), aos seus actos e elementos, e relações, como às implicações que têm sobre a visão ideológica do mundo, ou até mesmo sobre o aparelho cognitivo humano. De Platão a W.J.T. Mitchell, as discussões têm sido profícuas mas – como é próprio do pensamento humano – infindas, inconclusivas e sempre relançando-se. O nome de Mitchell não surge naquela frase como último ponto, nec plus ultra da discussão, mas sendo dele o texto curto de introdução a este livro, é justo que se o cite, pela forma decisiva e constante como tem contribuído para a mesma. Apesar de curto, este é desde logo um texto importante, já que o autor vai mais longe naquele conceito por ele cunhado de “imagemtexto”, aqui para marcar a indecibilidade das relações potenciais (ou virtuais, no sentido de Deleuze-Guattari) entre texto e imagem. O autor, nos seus vários livros, foi expondo como poderão existir relações de ruptura, de síntese e de relacionamento entre um e outra, à qual ele dava nome, tirando partido do significado dos traços gráficos que as unem, da seguinte forma: “imagem/texto”, “imagemtexto” e “imagem-texto”. Neste breve texto, Mitchell vai mais longe, como dizíamos, propondo o termo “imagemXtexto” ou “imagem X texto”, discutindo todo os cismas, abismos e cruzamentos possíveis, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade da correcção dos termos empregues quando da sua discussão.
Por exemplo, apesar do subtítulo do livro, “visual” não pode operar na mesma categoria conceptual de que “literário”, já que o primeiro termo apela à esfera dos sentidos e o segundo a uma particular codificação de signos, sendo a literatura também capturável pelos sentidos – para ler é preciso ver – e sendo muita da matéria visual, para mais a “artística”, subsumida a códigos sociais e de significação. No estudo deste “campo mais alargado e reflexão sobre estética, semiótica e todo o próprio conceito de representação”, que constitui um “tecido articulado multiplamente”, versam-se, e vogam-se por, “canais sensoriais (o olho e o ouvido)”, “funções semióticas (semelhanças icónicas e símbolos arbitrários)”, “modalidades cognitivas (tempo e espaço)” e “códigos operacionais (o análogo e o digital)” (pg. 4). Citando Aristóteles, Hume, Saussure, Peirce, Lacan, Barthes, Goodman, Foucault e Kittler, o autor compõe um quadro que não pretende ser nem síntese nem tabela de correspondências, mas palco de impressão conceptual, por assim dizer, de como estas tensões relacionais têm sido pensadas. Como escreve Marianne Hirsch no texto final, espécie de breve balanço do volume, estas relações “de implicação mútua, interrelação e tradução” levam a que, “no limiar do verbal, a linguagem se torna material, visual, multisensorial” (346), processo que obriga quase todos os autores dos ensaios aqui presentes a formularem novos termos, neologismos, palavras compósitas, que permitam dar à estampa verbal, ao discurso académico, à argumentação escrita, as noções relacionais (por exemplo, “memórias fototextuais”, “imigrescrita”, “heterocrónica”, “heteroposicional”, etc.). Isto é de uma grande importância para nós, recordando aquela forma que desejávamos ter utilizado para baptizar este espaço, mesclando os verbos portugueses “ler” e “ver” na sua primeira letra, procurando uma terceira grafia possível (“verler”?).
Os ensaios coleccionados neste volume abordam o espectro previsto por Mitchell. Fala-se do uso da fotografia em textos literários, quer romances, poemas ou autobiografias (J. R. Ackerley, Sebald, etc.), fala-se das inflexões materiais e construtivas que o digital permite à visualização de imagens, a escrita da poesia e à participação dos leitores, fala-se de atomização e unidade em relação à poesia visual (futurista, no caso) e de articulações entre obras literárias e pictóricas; envolvem-se os conceitos de descrição, de metaforização, de sinestesia, de orientação, em relação aos textos literários, e de memória, trauma, afecto, em relação a obras visuais. E falam-se dos postais – na verdade, uma magnífica “close reading” (Tanya K. Rodrigue) de um só exemplo - da PostSecret, como uma forma de imagemtexto particularmente apta para providenciar um quadro expressivo e interpretativo individual que contorna e evita discursos dominantes, como a autobiografia, por exemplo, que criam necessariamente rotinas simbólicas e, logo, “criam identidades essencialistas” (55-56).
É algo surpreendente, na leitura de determinados autores que se dedicam a temas próximos, como Didi-Huberman, Deleuze, Rancière, entre outros, que apesar de vasculharem “high and low” em busca de exemplos pertinentes para as interpretações e conceptualizações que fazem destas relações texto-imagem ou de imagenstextos, a banda desenhada nunca faça parte da equação de exempla, por maior que seja o seu escopo. É possível que parte disso se deva à falta de conquista cultural, intelectual e conceptual de que esta arte padece há décadas (ou será “estruturalmente”, “essencialmente”?). Todavia, dada a oferta imensa contemporânea, essa distracção é hoje insustentável. Mitchell considera a banda desenhada como uma “forma de arte compósita”, na qual nem “texto” nem “imagem” seriam descritivos suficientes mas tampouco uma adição, suplementação, ou simbiose entre os dois. Dá a entender que há uma especificidade, ou especificidades, neste meio, que a tornam, não necessariamente um palco privilegiado (i.e., superior) para a discussão, mas pelo menos determinante. Algo positivo naquele “x”.
O livro tem dois ensaios que abordam a banda desenhada, e sem surpresa são ambas autobiografias contemporâneas, de grande sucesso crítico. O primeiro é por Molly Pulda, um estudo comparativo entre Fun Home, de Bechdel, e uma autobiografia de Ackerley, sob a perspectiva de como ambos – escritores homossexuais que sondam as sexualidades respectivas dos pais, depois destes morrerem – tentam deslocar “segredos” a partir de interpretações subjectivas e pós-memoriais (cf.o conceito de M. Hirsch) dos arquivos imagísticos deixados pelos progenitores. O segundo, por Dale Jacobs e Jay Dolmage, estuda o livro Stitches, do ilustrador David Small, para sublinhar como “a banda desenhada representa um meio rico mas ansioso [fraught] na cartografia das formas como os corpos são moldados por deficiências e pelo trauma” (70), de maneira, portanto, a criar uma diferenciação reivindicativa da “voz própria” (e no caso da autobiografia de Small, isto tem um significado literal) em relação a uma cultura normativa. Em ambos os casos, porém, e pelas afinidades disciplinares entre os dois ensaios, a banda desenhada surge como uma possível forma de arte capaz de contribuir para a construção de individuações - “[um] sentido envolvente do Si torna-se gráfica e retoricamente demonstrado na página” (81) - à margem ou para além dos discursos homogeneizantes de géneros literários e artísticos, assim como um meio cujas especificidades na estruturação relacional entre texto e imagem obriga a uma “leitura” implicada, intricada, empática e produtiva.
Apesar da inegável qualidade de ambas estas obras citadas, e a forma como as duas abrem o campo da banda desenhada para temas mais humanamente profundos do que mais desabrida fantasia, ou com repercussões filosóficas e políticas mais imediatas em relação à polis contemporânea do que os géneros mais clássicos do humor, da aventura, etc., a verdade é que não deixa de ser sintomático que os tratamentos interdisciplinares e intelectuais – para além de questões de representação - sejam muitas vezes feitos sobre este tipo de obras. É um caminho possível, e é aquele que tem sido trilhado sobretudo. Poderá levar a uma ideia algo desequilibrada da pertinência dos objectos a estudar – por exemplo, a multimodalidade é analisável em toda a banda desenhada, independentemente de género, e até de qualidade (diga-se que Jacobs, noutros ensaios, aborda outras tipologias, mais mainstream inclusive) – ou até a um afunilamento do corpus – na verdade, trata-se do processo de canonização. Contudo, o mais importante de assinalar talvez seja mesmo o seu entrosamento com estes discursos. Regressando ao ensaio de Jacobs e Dolmage, entende-se a banda desenhada não somente como um encontro entre uma camada visual e uma camada textual, mas um locus onde “o visual, o alfabético, o espacial, e o gestual se combinam entre si para criarem uma sequência multimodal complexa” (80). Com futuro, certamente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
A relação entre o texto e as imagens é algo que tem fomentado, desde o seu surgimento no mundo ocidental, pelo menos, discussões profundas que tanto se referirão restritamente à grafia (palavra que deve compreender as marcas em ambos os casos), aos seus actos e elementos, e relações, como às implicações que têm sobre a visão ideológica do mundo, ou até mesmo sobre o aparelho cognitivo humano. De Platão a W.J.T. Mitchell, as discussões têm sido profícuas mas – como é próprio do pensamento humano – infindas, inconclusivas e sempre relançando-se. O nome de Mitchell não surge naquela frase como último ponto, nec plus ultra da discussão, mas sendo dele o texto curto de introdução a este livro, é justo que se o cite, pela forma decisiva e constante como tem contribuído para a mesma. Apesar de curto, este é desde logo um texto importante, já que o autor vai mais longe naquele conceito por ele cunhado de “imagemtexto”, aqui para marcar a indecibilidade das relações potenciais (ou virtuais, no sentido de Deleuze-Guattari) entre texto e imagem. O autor, nos seus vários livros, foi expondo como poderão existir relações de ruptura, de síntese e de relacionamento entre um e outra, à qual ele dava nome, tirando partido do significado dos traços gráficos que as unem, da seguinte forma: “imagem/texto”, “imagemtexto” e “imagem-texto”. Neste breve texto, Mitchell vai mais longe, como dizíamos, propondo o termo “imagemXtexto” ou “imagem X texto”, discutindo todo os cismas, abismos e cruzamentos possíveis, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade da correcção dos termos empregues quando da sua discussão.
Por exemplo, apesar do subtítulo do livro, “visual” não pode operar na mesma categoria conceptual de que “literário”, já que o primeiro termo apela à esfera dos sentidos e o segundo a uma particular codificação de signos, sendo a literatura também capturável pelos sentidos – para ler é preciso ver – e sendo muita da matéria visual, para mais a “artística”, subsumida a códigos sociais e de significação. No estudo deste “campo mais alargado e reflexão sobre estética, semiótica e todo o próprio conceito de representação”, que constitui um “tecido articulado multiplamente”, versam-se, e vogam-se por, “canais sensoriais (o olho e o ouvido)”, “funções semióticas (semelhanças icónicas e símbolos arbitrários)”, “modalidades cognitivas (tempo e espaço)” e “códigos operacionais (o análogo e o digital)” (pg. 4). Citando Aristóteles, Hume, Saussure, Peirce, Lacan, Barthes, Goodman, Foucault e Kittler, o autor compõe um quadro que não pretende ser nem síntese nem tabela de correspondências, mas palco de impressão conceptual, por assim dizer, de como estas tensões relacionais têm sido pensadas. Como escreve Marianne Hirsch no texto final, espécie de breve balanço do volume, estas relações “de implicação mútua, interrelação e tradução” levam a que, “no limiar do verbal, a linguagem se torna material, visual, multisensorial” (346), processo que obriga quase todos os autores dos ensaios aqui presentes a formularem novos termos, neologismos, palavras compósitas, que permitam dar à estampa verbal, ao discurso académico, à argumentação escrita, as noções relacionais (por exemplo, “memórias fototextuais”, “imigrescrita”, “heterocrónica”, “heteroposicional”, etc.). Isto é de uma grande importância para nós, recordando aquela forma que desejávamos ter utilizado para baptizar este espaço, mesclando os verbos portugueses “ler” e “ver” na sua primeira letra, procurando uma terceira grafia possível (“verler”?).
Os ensaios coleccionados neste volume abordam o espectro previsto por Mitchell. Fala-se do uso da fotografia em textos literários, quer romances, poemas ou autobiografias (J. R. Ackerley, Sebald, etc.), fala-se das inflexões materiais e construtivas que o digital permite à visualização de imagens, a escrita da poesia e à participação dos leitores, fala-se de atomização e unidade em relação à poesia visual (futurista, no caso) e de articulações entre obras literárias e pictóricas; envolvem-se os conceitos de descrição, de metaforização, de sinestesia, de orientação, em relação aos textos literários, e de memória, trauma, afecto, em relação a obras visuais. E falam-se dos postais – na verdade, uma magnífica “close reading” (Tanya K. Rodrigue) de um só exemplo - da PostSecret, como uma forma de imagemtexto particularmente apta para providenciar um quadro expressivo e interpretativo individual que contorna e evita discursos dominantes, como a autobiografia, por exemplo, que criam necessariamente rotinas simbólicas e, logo, “criam identidades essencialistas” (55-56).
É algo surpreendente, na leitura de determinados autores que se dedicam a temas próximos, como Didi-Huberman, Deleuze, Rancière, entre outros, que apesar de vasculharem “high and low” em busca de exemplos pertinentes para as interpretações e conceptualizações que fazem destas relações texto-imagem ou de imagenstextos, a banda desenhada nunca faça parte da equação de exempla, por maior que seja o seu escopo. É possível que parte disso se deva à falta de conquista cultural, intelectual e conceptual de que esta arte padece há décadas (ou será “estruturalmente”, “essencialmente”?). Todavia, dada a oferta imensa contemporânea, essa distracção é hoje insustentável. Mitchell considera a banda desenhada como uma “forma de arte compósita”, na qual nem “texto” nem “imagem” seriam descritivos suficientes mas tampouco uma adição, suplementação, ou simbiose entre os dois. Dá a entender que há uma especificidade, ou especificidades, neste meio, que a tornam, não necessariamente um palco privilegiado (i.e., superior) para a discussão, mas pelo menos determinante. Algo positivo naquele “x”.
O livro tem dois ensaios que abordam a banda desenhada, e sem surpresa são ambas autobiografias contemporâneas, de grande sucesso crítico. O primeiro é por Molly Pulda, um estudo comparativo entre Fun Home, de Bechdel, e uma autobiografia de Ackerley, sob a perspectiva de como ambos – escritores homossexuais que sondam as sexualidades respectivas dos pais, depois destes morrerem – tentam deslocar “segredos” a partir de interpretações subjectivas e pós-memoriais (cf.o conceito de M. Hirsch) dos arquivos imagísticos deixados pelos progenitores. O segundo, por Dale Jacobs e Jay Dolmage, estuda o livro Stitches, do ilustrador David Small, para sublinhar como “a banda desenhada representa um meio rico mas ansioso [fraught] na cartografia das formas como os corpos são moldados por deficiências e pelo trauma” (70), de maneira, portanto, a criar uma diferenciação reivindicativa da “voz própria” (e no caso da autobiografia de Small, isto tem um significado literal) em relação a uma cultura normativa. Em ambos os casos, porém, e pelas afinidades disciplinares entre os dois ensaios, a banda desenhada surge como uma possível forma de arte capaz de contribuir para a construção de individuações - “[um] sentido envolvente do Si torna-se gráfica e retoricamente demonstrado na página” (81) - à margem ou para além dos discursos homogeneizantes de géneros literários e artísticos, assim como um meio cujas especificidades na estruturação relacional entre texto e imagem obriga a uma “leitura” implicada, intricada, empática e produtiva.
Apesar da inegável qualidade de ambas estas obras citadas, e a forma como as duas abrem o campo da banda desenhada para temas mais humanamente profundos do que mais desabrida fantasia, ou com repercussões filosóficas e políticas mais imediatas em relação à polis contemporânea do que os géneros mais clássicos do humor, da aventura, etc., a verdade é que não deixa de ser sintomático que os tratamentos interdisciplinares e intelectuais – para além de questões de representação - sejam muitas vezes feitos sobre este tipo de obras. É um caminho possível, e é aquele que tem sido trilhado sobretudo. Poderá levar a uma ideia algo desequilibrada da pertinência dos objectos a estudar – por exemplo, a multimodalidade é analisável em toda a banda desenhada, independentemente de género, e até de qualidade (diga-se que Jacobs, noutros ensaios, aborda outras tipologias, mais mainstream inclusive) – ou até a um afunilamento do corpus – na verdade, trata-se do processo de canonização. Contudo, o mais importante de assinalar talvez seja mesmo o seu entrosamento com estes discursos. Regressando ao ensaio de Jacobs e Dolmage, entende-se a banda desenhada não somente como um encontro entre uma camada visual e uma camada textual, mas um locus onde “o visual, o alfabético, o espacial, e o gestual se combinam entre si para criarem uma sequência multimodal complexa” (80). Com futuro, certamente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
16 de julho de 2012
Breves notas sobre bravos fanzines. AAVV
Por ocasião da última
Feira Laica, e como já havia sucedido em ocasiões anteriores, verificámos que
as pequenas e médias indústrias da edição, ou frentes fanzinistas, não
esmorecem face à cada vez menor circulação pública ou atenção crítica das suas
produções (nem delas precisam, diga-se de passagem). Novos e velhos agentes,
contumazes ou debutantes, com maior ou
menor luxo, há uma contínua oferta. O que se segue não é mais do que um
apontamento sumário das impressões suscitadas por cada um destes títulos
obtidos.
Comecemos pelos
veteranos. Este número poderia ser chamado de “especial respigadura”, já que
consiste basicamente em trabalhos produzidos para projectos que ora foram
abortados – os casos das curtas de Tim Morris e Gigi i Gigi que seriam para a
defunta Quadrado, na sua vida da Bedeteca de Lisboa, e duas histórias de Marcos
Farrajota, de um projecto maior que poderá vir ou não a concretizar-se na sua
completude. A capa, por Dr. Urânio, surge como teaser de projectos seguramente a vir. Além desse gesto ao nível
editorial, o acto respigador de Farrajota é também sentido no interior das
próprias narrativas, que aliam temas mais ou menos comuns, e que ganham contornos
de intervenção política e social, de não apenas descontentamento e afastamento
em relação a certos confortos, como procurando mesmo, sobretudo no caso de
Farrajota, de alternativas para as formas como nos relacionamos com o mundo. A
capa mostra uma colagem de um espaço complexo, em que se mistura a ideia de um
gabinete de curiosidades (tudo ideias fósseis e taxidermizadas, como as utopias
citadas pelo editor?), o que parecem ser restos de tecnologia (as promessas
goradas da contemporaneidade?) e uma criatura com uma estranha máscara (a falha
das convenções sociais?) com um objecto indiscritível no tampo da mesa (um
objecto estético, apenas forma?). O mesinha,
sempre em provocação.
Tratando-se de uma
colecção de várias ilustrações “soltas” que Feitor havia criado para o seu blog
Escroque, há pelo menos duas
características que se tornam facilmente perceptíveis. A primeira é a contínua
obsessão de Feitor por desenhar animais, procurando nestes aquilo que podem revelar
do homem não só enquanto animal, como besta. A segunda é a dimensão política
que estas imagens, sobretudo sendo aliadas a breves comentários que tanto têm
de legenda, como de poema, como de prosa “gin tónica”, como de ditame, assumem
desde logo. Curiosamente, quase que se poderiam ler estas imagens como
exercícios práticos e alistados do cartoon
satírico-político, à moda de The Masses
ou Simplicissimus. É verdade que não há “alvos” directos e
reconhecíveis (salvo duas excepções, internacionais), sendo mais pautados pela
generalização, mas não são por isso menos contundentes, como aquela imagem do
“jovem” cujo interior da cabeça é um tijolo. E esta publicação não é tijolo que
parta janelas: abre-as.
Outra colecção, mas
desta feita de material alheio. Trata-se de uma série de reproduções das
magníficas, alucinadas e azuladas capas das também possivelmente alucinadas novelas
policiais de Grandes Mistérios - Grandes
Aventuras, publicadas entre a década de 1940 e 1960 por autores
portugueses, mas sob a capa fictícia (“fraude literária”, escreve Feitor) de
todo um universo de escritores internacionais. O morto foi ao baile, de Marcel Damar, Três enforcados numa corda, de Herbert Gibbons, e Aconteceu no camarote 13 e O mistério do quilómetro 196, ambos de
Richard Young, certamente darão o mote da coisa. O texto introdutório explica
as razões deste gesto (que terão repercussões no projecto Faca Romba, da Oficina do Cego), e pormenores da mesma colecção.
As capas originais não eram assinadas, e pelos vistos ainda hoje está por fazer
o trabalho de identificação, se bem que numa análise estilística seja quase
possível perceber que seriam pelo menos dois, ou três artistas (se aquelas que
optam por silhuetas não pertencerem ao ilustrador mais estilizado, mas que
contrasta com o que busca uma abordagem mais realista, mas também mais pobre em
termos dramáticos). Além disso, André Lemos, José Cardoso, Luís Henriques e
Jucifer, mas também o próprio Feitor na capa, apresentam novas versões de
algumas dessas capas. A organização não parece seguir nenhum critério óbvio,
mas é tentador querer criar, só com os títulos e as cenas das capas, que
parecem sempre trabalhar em torno dos mesmos temas e repetições, uma trama
unitária. Numa das capas (Um crime no
desconhecido), uma nota presa por uma faca reza da seguinte forma: “Não se
metam/ com a morte /A morte não/perdoa”. Seja.
Na Feira Laica
referida, os originais desta publicação encontravam-se expostos. Não seguiam,
de forma alguma, a ordem pela qual surgem no “espaço folheado” do fanzine, o
qual insufla sobre a ordem dos desenhos uma estruturação mais nítida, pelo
menos na relação que cada “bloco” opera no seu interior (a que poderíamos
chamar “o homem que escava”, “estátuas”, “comboio suburbano” e “diálogos
agónicos”) e, quem sabe, entre uns e outros. Formas de desenhar, temas,
materiais, estruturações compositivas, e até mesmo preocupações de tom e humor
apresentam-se de maneiras distintas, em diversidade. Encontramos aqui mais uma
vez, tal como em Fábricas, baldios,
algumas constantes preocupações: a relação com a história de arte, uma
taxonomia livre, a inscrição oblíqua da autobiografia do autor, da sua tarefa
de criação, ou notas sobre reflexão, sob a forma de vinhetas gráficas, que
terão maior ou menor grau de simbolismo. A citação de elementos naturais, como
a lama, o barro, a água como matérias-primas e plasmáveis, para criar obras. E
a flutuação entre uma abordagem virtuosa, multímoda, controlada da arte do
desenho, e uma gestualidade mais sumária, de esquisso, não vá a ideia
evolar-se.
Este é o último número
do fanzine auto-editado pelo artista, e mesmo não conhecendo a série completa,
imagina-se um passo “atrás” em relação a Estátua
falsai (o qual, tal como o outro projecto anterior, estando sob o domínio
editorial de outras plataformas, poderá ter tomado configurações mais
restritas, colaborativas, dialogantes, e nunca menos livres). Melhor dizendo,
encontramos aqui neste número as matérias-primas imagéticas (fotografias – de
pessoas, de troncos serrados, de couves altas, de estátuas, bonecos, animais -,
reproduções de obras de arte retiradas da sua longa história) que servem para as
pesquisas de Baptista. Na verdade, quase se pode imaginar Cleópatra como uma
espécie de Atlas (Richteriano) deste
jovem pintor e desenhador. Conjectura-se que apenas a longo prazo surgirão as
linhas-mestras que tornam todas estas distintas imagens num contínuo pano de
referências, ou então confirmando-se a sua diversidade como a matéria precisa
da sua criação. Tal como nos casos anteriores, há aqui uma qualquer ideia muito
livre, nada disciplinada, entre os mundos sociais da dita Arte (a pintura,
sobretudo) e da Banda Desenhada, em que uma bebe da outra, uma inflexiona a
outra, sem hierarquia nem primazia, mas antes num fluxo mútuo e imanente.
Tendo já abordado em
termos gerais este projecto, a sua continuidade parece assegurada. Temos capas
desenhadas por Rui Ricardo, que nas suas ilustrações com uma abordagem
cromática mais complexa do que os seus trabalhos mais “clássicos”, cria logo
uma história, uma cena e algum humor erótico à la Playboy anos 1950 nestas duas
imagens. Seguem-se alguns autores habituais do zine e outras novidades,
atravessando ora territórios expectáveis ora pequenas experimentações formais e
alucinadas. Uma das melhores peças é de André Pereira, mas dele falaremos mais
à frente, já que a sua história se repete no seu próprio zine. As sagas de
Afonso Ferreira, Aviv Itzcovitz, John Kurokawa continuam ou terminam, e
perguntamo-nos se a plataforma Ruru pensará em dar um passo em frente em termos
de editar histórias completas num só objecto (mas isso seria imitar práticas
comerciais, além-zinescas?). Rudolfo incorre seriamente na possibilidade de se
tornar igualmente importante no que diz respeito à abertura de um espaço
experimental na edição independente no nosso país, menos preocupado com métodos
de edição, inovações de linguagem e de inscrição política do que Feitor,
Pestana ou Farrajota, ou de trabalho de desenvolvimento interno aos géneros,
como o caso da Zona, do que a fabricação de um espaço intermédio, idêntico
àquele terceiro espaço contemporâneo norte-americano que mencionámos a
propósito de Adventure Time. Sinal
disso é a sua associação Zé Burnay e André Pereira, de que também falamos
adiante.
De acordo com
informações de outras publicações, esta trata-se de uma nova série por Rudolfo
que seguirá as pisadas de Tobias, uma espécie de avatar do autor (que é avatar
de si mesmo em vários graus) sob os auspícios de uma concatenação de
lugares-comuns em torno da cultura “nipónica”. Espécie de cruzamento entre Rusty Brown, auto-ficção depravada, e
ultra-sensitividade aos elementos que constituem a cultura dos jogos Nintendo,
animé, a mangá mais comercial, a colecção de bonecos e o cosplay, a tortura do
J-pop e a tendência para o “tentacle porn”, a narrativa é brevíssima (dez
páginas), mas parece preparar desde logo uma desordem narrativa promissora. Há
ainda materiais complementares que confirmam ser Rudolfo detentor de várias
abordagens possíveis, ora controlando uma grafite muito leve que recorda Renée
French, ora uma nervosa caligrafia que o coloca ao lado de uma série de autores
norte-americanos, a história principal é, porém aquela que segue uma produção
mais “clássica”, acabada, com artes-finais sólidas e uma composição austera.
Este zine agrega curtas
histórias, e desenhos ou ilustrações. O estilo de construções e sobreposição de
objectos, as tramas empregues por Burnay, e até mesmo as temáticas, fará
recordar um espaço criativo que tanto englobaria a arte de um Suehiro Maruo
como a venerável tradição dos mais fantasiosos ilustradores do metal. Algures
numa entrevista, Fernando Ribeiro (Moonspell) dizia algo como o heavy metal ser
uma espécie de fantasia dos fracos. Se assim o for, Burnay tira partido dessas
mesmas fantasias, ma sempre com um humor suficiente para revelar que não passam
disso mesmo: fantasias. Como muitos outros autores, Zé Burnay é um daqueles
iconoclastas – em referência à cultura média e burguesa – que opera por icono-construção.
Há porém menos uma preocupação pela elaboração de narrativas claras, mesmo
naquilo que passa mais próximo das “bandas desenhadas”, do que a eleição de uma
forma de composição quase análoga à da tattoo
art para criar blocos de ideias e de cenas, ora colocando no centro
personagens divinas ora oriundas de um fundo mais ou menos reconhecível, senão
mesmo expectável (tarantinadas, ódios a Bieber-Gaga, e coisas quejandas).
Energia brutal.
A história que surge a
abrir este fanzine é a mesma de Lodaçal
# 6, intitulando-se “Demiurgo”. Além desta, também as outras, algumas das quais
escritas por João Machado, tenham mais ou menos páginas (de 3 a 5), demonstram
desde logo que Pereira tem todos os ingredientes na mão para sustentar uma
longa história, de forma concertada, organizada, coesa, aliando a isso os seus
desenhos, a um só tempo, expressivos, legíveis e apropriados, que flutuam entre
abordagens mais elaboradas e outras mais rabiscadas (alguns pormenores, mas
talvez também por causa das referências semi-cthulhianas, recordam Troy Nixon).
Quer dizer, em contraste com muitos dos “novos talentos” que encontram nos
zines o total espaço de liberdade que é o deles, apresenta um estilo mais
convencional, mas por isso mais capaz de conquistar um espaço para fora desse
circuito. Por essa razão, não deixa de ser surpreendente que as histórias
pareçam criar uma promessa de complexidade a partir da qual sairia uma trama
maior, mas são como que “interrompidas”, em nome de uma mais imediata gratificação
sob a forma de humor, ou até mesmo de displicência melancólica. “Demiurgo” e
“Cigarros”, por exemplo, fazem pensar numa espécie de “universo diegético”
coerente. Veremos mais episódios? Continuaremos a perceber a origem do universo
sob os princípios esotéricos apresentados em “Demiurgo”? É possível misturar a
cabala e mecha? A epígrafe que o autor escolhe na abertura, tirada das cartas Magic: The Gathering (!) falam de uma
certa inércia inicial. Mas se Enjôo é
sinal de inércia, esperemos ver o início da mobilidade..
Esperando-se que o
autor continue o seu projecto maior semi-autobiográfico, este pequeníssimo
objecto apresenta uma simples e algo linear história, talvez sublimação de um
sonho ou episódio alucinado, plenamente informado por toda uma cultura pop (Planeta dos Macacos e E.Ts. a rodos),
com alguns laivos de iluminação esotérico-ecológica. Não havendo orçamento para
lançar o avatar de Campos – que protagoniza o encontro com chimpazés e aliens – no “Star Gate” de
Kubrick/Clarke, algumas vinhetas a preto-e-branco, fotocopiadas e agrafadas,
sobre o que um charro, ao som de P-Funk, pode provocar.
Nota: agradecimentos
aos editores e/ou artistas, pelas oferta ou descontos “forçados”.