23 de novembro de 2004
UM FANZINE É...
Um fanzine é, acima de tudo, um espaço de liberdade. Um espaço no qual os intervenientes têm toda a liberdade de expressão possível. Isso porque o fanzine, assim como outros meios de expressão existentes (nada vive sozinho), vive à margem dos vários campos de poder, sejam estes económicos, políticos, e outros, inclusive os das hegemonias culturais, insistentes em hierarquias de gostos e ou processos de criação. Isto não quer dizer que este ou aquele autor, ao criar um fanzine, não esteja a responder aos campos da criação cultural - ao fazer um trabalho de género, que procure se referenciar em trabalhos de outras pessoas, que procure chegar a um público mais alargado ou mais elitista - ou ao económico - como "trampolim" de chegar a publicações mais comerciais, ou tentando competir com elas - ou ao político - sobretudo no que diz respeito às publicações "de intervenção" ou com grande expressividade social. (Mais)
In the Shadow of No Towers. Art Spiegelman (Pantheon; ed. esp., Norma, ed. fr. Casterman)
Como é possível que, a um só tempo, seja perigoso ler este livro com expectativas criadas por Maus, e também operativo não esquecer essa ligação? É possível, na medida em que se Art Spiegelman tem algo de diferente, é a sua capacidade quase única em trabalhar na fronteira artificial que separa a forma e o conteúdo da banda desenhada. Não se trata de um livro taxativa e escorreitamente narrativo ou fechado, mas é ainda um livro sobre um tema obsessivo do autor: o modo como a memória pessoal se reintegra no consenso social, por um lado, e numa tradição específica da criação da banda desenhada (a criação de uma verdadeira memória?). Spiegelman procede, através duma multiplicidade de formalismos funcionais, à explicitação do que sentiu imediatamente antes, imediatamente depois e durante o fenómeno a que chamamos "11 de Setembro". É um livro confessional, político, expressivo, ensaístico, e para além disso, numa harmonia caótica, se tal é possível. O texto introdutório e o ensaio final (e o "apêndice") não só consolidam o propósito dessa "Não-Sombra", como apontam os limites do território em que o autor trabalha (a memória).
(publicado em Mondo Bizarre 21)
Na prisão. Hanawa Kazuichi (ed. fr., Ego comme X; ed. ingl. e esp., Fanfare/Ponent Mon)
A palavra medíocre, no seu sentido primário, significa "a meio da subida de uma montanha". Ainda que nem sempre nos possamos obrigar a sofrer experiências-limite, é perfeitamente possível apreciarmos ao máximo o meio de um caminho, se descobrirmos onde se encerra a mais subtil das belezas nele próprio. Hanawa foi um dos participantes da Garo, a plataforma de lançamento de uma manga menos convencional, menos devedora a Tezuka, e mais autoral. Preso três anos por posse ilegal de armas de fogo, essa experiência levá-lo-ia à criação deste livro, que mostra a sua vida na prisão. Fã e "discípulo" de Tsuge Yoshiharu, também Hanawa prefere menos melodrama e mais atenção às subtilezas que podem compor (ou antes decompor) "o tempo que passa". Numa imagem que mostra a sala de jantar, indica-se o local da "Ratoeira. Às vezes apanham-se ratos". Essas ratoeiras estão espalhadas pelo livro todo, e servem para nos apanhar quase imperceptivelmente. Numa leitura descuidada uma colecção de narrativas pedestres, este é antes um livro que segue o coração, a cabeça e o estômago: a contínua dissertação sobre comida, a concentração nos movimentos das mãos e dos rostos, as pequenas relações ora tensas ora desprendidas entre as pessoas, os momentos em que a representação física se altera com alguma metáfora visual, a adaptação de uma canção infantil, são apenas indícios dissemelhantes e dispersos numa obra quase arrítmica e, por isso, mais imitativa da vida. (Em 2002, foi adaptado ao cinema).
(publicado em Mondo Bizarre 21)
Montanhas de Verde na Serra de Sintra. João Paulo Cotrim e Alain Corbel (Área Metropolitana de Lisboa)
Usualmente, quase por princípio, um projecto institucional que envolva a criação com um fito determinado estabelece delimitações dentro das quais é difícil algum movimento livre. Mas quando entregue a autores competentes - na melhor acepção da palavra - esses fitos são apropriados e empregues, juntos ao talento, para alcançar novos e diferentes frutos. Reinventando os propósitos (talvez seja um preconceito meu) limitados ou estreitos desse projecto, nomeadamente a sensibilização ecológica, geográfica, etc., os autores atingem algo mais pessoal, Cotrim sublimando cada vez mais a sua escrita sinestésica e Corbel gerindo o equilíbrio entre uma linguagem ora despojada ora metafórica. Ainda que não seja a melhor das plataformas para estes autores que já provaram noutros trabalhos a capacidade de experimentação e diferenciação que possuem, não deixa este de ser um livro interessante no seu percurso. Terceiro volume de uma colecção dirigida sobretudo aos jovens, acompanhamos Ana na descoberta da Serra de Sintra. A colaboração das cores de Alex Gozblau e a consultadoria científica de José Manuel Marques são seguramente peças importantes neste jogo equilibrado duma colaboração criativa e mutuamente exponenciadora.
(publicado em Mondo Bizarre 21)
Blood Orange. Vários, # 1 - 3 (Fantagraphics)
Para quem não pode estar a par e passo dos artistas mais alternativos dos principais focos de criação de banda desenhada no mundo (leia-se "centros"), ou perdeu a oportunidade de comprar os fanzines que publicaram esses trabalhos, surgem de vez em quando estes projectos editoriais que pretendem fixar de uma forma mais permanente essas fabricações. Alternando material de vários fanzines norte-americanos ou inéditos e éditos de artistas menos conhecidos (ex., J. Hankiewicz, Huizenga, a holandesa Hartjes, o brasileiro Fábio Zimbres) com outros mais famosos (Altergott, Collier, Regé Jr.), e ilustrações (sketchbook de G. Baseman), parece que o editor Chris Polkki pretende também um retrato geral de uma tendência alargada de criação. Os próximos números prometem-se maiores (80 e tal páginas) e juntando artistas de muitos quadrantes, desde americanos, a europeus como a malta do Le Dernier Cri e Fréderic Poincelet e a fabulosa "scary-cute" japonesa Junko Mizuno.
(publicado em Mondo Bizarre 21)
17 de setembro de 2004
Broderies. Marjane Satrapi (L’Association)
Satrapi abomina que a encerrem nesse inexistente género e aprisionante preconceito político da banda desenhada (e de tudo o resto) conhecido como "feminina". E chega mesmo a recusar convites que a integrem em exposições da "criação feminina" desse modo. Não obstante, a autora do ainda não sobejamente conhecido Persepolis resolve revisitar o território das memórias, estas últimas mais recentes, sob o signo exclusivo da mulher. Mais, um grupo de mulheres iranianas, que fala de tudo e mais alguma coisa, de narizes, coisas várias que se cosem, chá, chaves, fugas, mas sobretudo de homens, sejam eles amantes ou maridos, amados ou odiados. O estilo continua simples, a preto e branco, o que não impede Satrapi de nos ofertar com soluções extremas e constantemente surpreendentes num livro feito sobretudo de diálogos. Para um público exigente e aberto à mais pessoal das expressividades, Broderies (Bordados) serve muitos objectivos: aproximarmo-nos de uma realidade que não nos é familiar (o Irão das últimas décadas), abalar as diferenças (o que move as mulheres é universal), alertar-nos (da Internacional Machista) e até mesmo fazer-nos rir com momentos tristes.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Enfants C’est L’Hydragon qui passe. Jean-Claude Forest (Casterman)
Das várias definições de Calvino, um clássico pode ser "o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo". O ponto importante é o pólo "actualidade-ruído de fundo"; Calvino não explicita se se refere à nossa (leitores actuais) contemporaneidade ou à da obra. Seja como for, é justo que na (desiquilibrada) colecção Classiques a Casterman inclua este álbum dos anos 80 do autor de Barbarella. Como todo e qualquer livro, este também tem a sua dimensão de virtuosismo técnico, de propósitos estéticos e de âmbito político, mas talvez não sejam muitos os livros de banda desenhada que alcancem este equilíbrio interior desses propósitos que parecem claros e por isso mesmo mereça esse nome de "clássico". Superficialmente, é a história de um jovem rapaz, Jules (quase-andrógino, nas feições e nos comportamentos), e as relações tempestuosas com uns (a mãe, os "inimigos"), cúmplices com outras (o pai, o velho Original), e outras ainda mais dúbias (com Lili Tambour, uma "andrógina"?). O que se busca é compreender o jovem? Ou os caminhos desaparecidos de uma Europa feita de canais? O por que razão um pássaro de cabeça de vidro pode significar algo mais que um sonho concretizado? Uma obra contida, textualmente densa e de temporalidade curiosa, mas ainda assim uma interessante reminiscência de um tempo que não se dá como perdido.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Caravane. Jorge Zentner e Bernard Olivié (FRMK-Frémok)
"O nosso percurso - explica-me um guia - abre uma ferida na paisagem. A esta ferida... alguns chamam-na de caravana." Outro tipo de feridas são os versos, cuja etimologia remete precisamente para os "sulcos" que se abrem na terra arada. E é a poesia, até mesmo entendida como apenas um mecanismo de retórica, que compõem este livro; é como se fosse uma espécie de colecção de aforismos de um homem que atravessa o deserto: intermitentemente, apresentam-se frases curtas numa folha em branco (mas não branca), ou 3 pranchas que estruturam em banda desenhada uma ideia do que é uma caravana, um deserto, a vida. O escritor de Le Bruit de le Givre (com Mattoti) reúne-se mais uma vez com Bernard Olivié, para publicar um livro cuja simplicidade superficial (o desenho, a planificação, os cinzentos) sustenta a pretensão de apresentar literariamente uma vida mais fiel aos impulsos humanos do que aquela que levamos (nós, urbanos). O fim da viagem é como "um fruto maduro que cai de uma árvore seca", mas as compotas permitem uma continuação do seu usufruto. Dependendo dos gostos por compotas com mais ou menos açúcar, é o que Caravane é, umas vezes pejado de sensibilidade, outras de sentimentalismo.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Pasolini – Une Recontre. Davide Toffolo (Casterman)
"Que significa ser comunista hoje?" era a pergunta que Nanni Moretti se fazia em Palombella Rossa. A importância estava na absoluta necessidade em revermos quem somos e porque lutamos a cada nova etapa. Igualmente, "quem é Pasolini?" não se trata de uma pergunta a uma ignorância, mas sim a uma intensidade. Toffolo é músico e autor de bandas desenhadas famosas em Itália para um público alargado (Animali, Fragoli, Fandango), e este é talvez o seu trabalho mais pessoal. Autoretratando-se, é contactado por um Sr. Pasolini, que nunca se entende se é o verdadeiro ou se um sósia ou se um fantasma (o site indicado no livro existe, tal como o sósia). Através de uma série de entrevistas a esse misterioso alter-ego, constrói-se um mapa do pensamento do poeta, realizador e, acima de tudo, livre-pensador. Homenagem, revisão de um espírito, o contrário de uma hagiografia, este é um objecto estranho que desafia a catalogação. Não cai nos termos simples de uma biografia, nem tampouco de adaptação, mas antes de um verdadeiro exercício de cidadania cultural ao apropriar-se das forças e do significado pessoal de Pasolini para si-mesmo, para no-lo ofertar com a maior das generosidades. Na capa, esconde-se uma caveira espreitando. Porque também a morte é uma personagem sempre presente neste livro.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
Soupe Froide. Charles Masson (Casterman)
Um alienado social escapa do asilo onde se encontrava porque lhe serviram um prato de sopa fria, e isso tinha sido um atentado à sua dignidade humana. Na verdade, tinha sido um engano. Acompanhando a fuga desse homem, e todos os seus pensamentos, e vendo o que se passa ao mesmo tempo com as pessoas com as quais há relação (a filha, a ex-mulher, o médico, a enfermeira que servira a sopa), tentamos reconstruir o mundo que lhe sobra. Que é primeira obra de Charles Masson, médico, nota-se na qualidade do ritmo, nas desnecessárias repetições (até mesmo quando o objectivo é o esgotamento pela repetição), e até numa certa romantização do trabalho de um médico (é um quem assume a palavra no fim; o autor como personagem?). Não deixa de ser interessante colocar a banda desenhada como forma de expressão das preocupações específicas de uma profissão cujas consequências sociais são aqui exploradas. O autor parece querer-nos mostrar que o alienado é, acima de tudo, um homem, mas pergunto-me se essa compaixão é suficiente para construir um bom livro. É redimido, porém, pela sua despretensão e frontalidade.
(publicado em Mondo Bizarre no. 20)
8 de julho de 2004
Elektra And Wolverine, The Redeemer. Greg Rucka, Yoshitaka Amano. (Marvel Comics)
De todo o trabalho de escritor de Rucka, é óbvio que as minhas preferências caem sobre Whiteout e Whiteout: Melt (na Oni Press), entre outras coisas menores. Esta não é a primeira vez que se dedica à escrita de um romance em que usa personagens e universos de bd, tendo-o feito antes com o Grendel de Matt Wagner em Grendel: Past Prime (Dark Horse) e com a adaptação da sua série do Batman, Batman: No Man's Land (DC/Vertigo). Não há surpresas nenhumas aqui e não se pense estar perante qualquer exemplo de boa prosa.
No entanto, gostando do trabalho de Yoshitaka Amano, sobretudo das ilustrações que fez para The Sandman: The Dream Hunters, de Neil Gaiman (DC/Vertigo), apostei na compra deste livro. Todavia, apesar da matemática, nem sempre mais por mais dá mais. O problema em Elektra And Wolverine, The Redeemer não é propriamente que a arte e o argumento falhem, mas sim que essa união não se produza. A ilustração é bela em alguns exemplos, mas pouco serve à história, por vezes nem sequer coincide a acção visual com a textual! Poderia ser uma experiência interessante, e levar a um terceiro sentido (que é o que a união em bd faz), mas nada se realiza. Whiteout pareceu-me um livro com personagens fortes e vivas, mas este cai numa série de típicos clichés. As personagens de Wolverine e Elektra, mesmo no mainstream dos super heróis e vilões, são de facto interessantes mas nada se explora de verdadeiramente inovador neste livro. E Avery, a razão do encontro dos dois, é superficial, apesar da patética tentativa de simulá-la como evoluindo emocionalmente pela narrativa fora. Se alguma porção curiosa há, aponto o aparente triângulo familiar. Porém...
Cusp. Thomas Herpich (Alternative Comics)
É absolutamente discutível o que define algo como alternativo, underground, etc. Não é minha intenção entrar nessa discussão. Parto do princípio de que existem algumas características vagas o suficiente para haver um acordo em o que colocar nesta esfera. E dos muitos trabalhos publicados no respectivo panorama norte-americano em bd, que é bastante activo e difícil de acompanhar se de longe, existem muitos exemplos do que se poderá chamar “pedradas no charco”. Sempre surgem trabalhos frescos e inovadores e surpreendentes, mas há sempre uns mais “pedrada” que outros. Como Cusp de Thomas Herpich. Com um formato de revista regular, é a todos os níveis um livro total, um belo objecto em que cada uma das 40 páginas está cheia de sentidos abertos, e com uma das mai belas capas vistas nos últimos tempos no mercado americano... Esta é uma colecção de material vário, sendo a maior parte trabalhos de uma só página (19 de 23) que Herpich tinha de submeter a cada semana num curso de “cartooning” durante os seus anos de Universidade. Herpich jamais criara banda desenhada antes, e mesmo o seu conhecimento do meio era vago e pontual, apesar de aos poucos se ter aproximado da órbita “alternativa”. Nunca existira um verdadeiro intuito em publicar isto tudo, até um amigo insistir em que apresentasse o trabalho a Jeff Mason, editor da Alternative Comics. Assim, algo que poderia nunca ter visto a luz do dia ou ter sido distribuído pelos circuitos da small press ou dos mini-comix acabou por ser publicado desta forma.
O facto de que a origem destas páginas está associada não a um projecto coeso de criação mas algo espaçado não implica necessariamente falta de coerência no conjunto final. É verdade que nalguns casos poderíamos ser recordados do que Scott McCloud apelida de sequências de painéis do tipo non-sequitur. Porém, eu diria antes o modo holístico que a bd é atinge em Herpich uma coerência especial, graças a uma voz muito particular, que não se preza a uma apresentação linear dos temas ou dos preceitos. Há uma grande diferença de trabalho para trabalho, é certo... algumas coisas parecem simples anedotas, ou ilustrações, ou gags, outras já buscam um significado mais sério, uns painéis são mais estruturados que outros, há desenhos mais elaborados e outros mais imprecisos ou “abonecados”, no que parece uma busca constante por uma conjunto diverso de efeitos.
Temo que ao usar o termo “experimental”, se esteja a reduzir esse mesmo trabalho a algo que não tem o direito de ser apresentado novamente ou praticado regularmente, mas apenas como se fosse algo descartado após uso... Ainda assim, Herpich aceita esta visão de “experimental”, confessando não procurar utilizar as mesmas técnicas duas vezes: não se julgando com intenções de contar, de moralizar sobre a vida com determinado conto, inclina-se antes a pensar os vários modos de fazer bd. Uma aproximação mais formal, portanto.
Ao nos depararmos com algumas das recensões sobre Cusp (e disponibilizadas no site da editora), vemos que os juízos sejam negativos ou positivos acabam por tocar num mesmo aspecto da obra. Por exemplo, Andrew D. Arnold (Time) parece-me correcto quando compara a peças de Herpich a poesia, no sentido em que esse género formal de literatura permite, no geral, uma interpretação mais alargada que outro qualquer... Herpich confessa que, talvez com alguma ingenuidade, lhe agrada esta comparação, quer por legitimar o seu trabalho, quer por de facto preferir pequenos aspectos da condição humana a grandes narrativas... O artigo em 4th Rail aplica várias vezes as palavras “surreal” e “esquisito” (weird), e ainda diz que «a narrativa parece propositada e gratuitamente esquisita e vaga». Penso que esta análise não vai ao encontro dos valores transmitidos pelas pequenas peças de Herpich. Quiçá o que se designa por “vago” seja antes, no caso presente, uma economia de meios: acima de tudo, o autor busca apresentar algo através de informação mínima e minimal. Uma das qualidades apontadas por Italo Calvino em Seis Propostas para o Novo Milénio, a rapidez. Mesmo que algumas das peças, (como exemplo, "What Went Wrong" – uma piada sobre a Internet quer pelo acrónimo www quer pelas formas de ecrã desta página com erros? - ou "She Didn’t") sejam mais gratuitas do ponto de vista narrativo, o autor não considera esse um aspecto negativo nas suas opções como criador de bd.
O que me impressionou em primeiro lugar com Cusp foi a aparente dissimilitude de temas. Algumas das histórias, como "Gold Suits” e “Bound”, parecem mergulhar numa violência inusitada, por vezes visivelmente carnal por outras num sentido maioritariamente psicológico mas sempre ameaçador para além desse mesmo momento... mas outras, como “Dr. Cranbury”, “Pilgrim” e “Werewolves”, parecem querer atingir aquela esfera do gracioso, onde paira a filosofia do carpe diem e dos contos zen, onde se esconde uma lição por detrás da aparente conclusão desconcertante.
Mas temas recorrentes despontam aqui e além, em detalhes: os animais selvagens e a natureza, a interacção dos humanos com esse ambiente, uns mitos mais conhecidos que outros (parece-me ver uma versão sublimada e pós-moderna de "Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare em Eros"*, a maior estória do livro), anedotas porcas sem grande piada, uma atenção especial pelas mãos (das mais bonitas que já vi desenhadas) e a abundância de painéis silenciosos ou mesmo em branco que garantem um ritmo pausado, de um sereno fôlego, a cada história... Mas todos os temas, visíveis ou não, enraízam-se nas experiências pessoais do autor. Como a adolescência, presente de uma forma tangencial, e na qual Herpich aprecia explorar “as lutas e medos contra a mudança” e a consequente “irreversibilidade da mudança”... tudo isto uma forma sublimada de autobiografia.
No fim, tenho a sensação de estar perante um livro completo, acabado. Talvez não seja honesto dizer que Cusp é um trabalho maduro, e que ainda seremos testemunhas do crescimento do autor, mas para já, parecem-nos estes bons auspícios. Tendo trabalhado até recentemente para o famoso criador de animação Bill Plympton, está ocupado agora com o próximo livro. No entanto, como este será feito tendo esse objectivo permanente e claramente na mente, e ainda tendo em conta as expectativas dos seus recém-adquiridos leitores e fãs, a “sua mente artística hipersensitiva” tem-se abalado com isso...
Notas: * As 5ª e 6ª páginas desta história foram trocadas na montagem do livro. Está disponível em formato PDF no site da editora. www.indyworld.com/altcomics
Este artigo foi feito com a ajuda directa do autor, com que troquei alguns emails; algumas das citações neste texto são suas. Faço públicos aqui os meus agradecimentos pela gentileza e rapidez com que o fez. Contactem: thomasherpich@hotmail.com
Blankets. Craig Thompson (Top Shelf)
A publicidade, as expectativas e a recepção deste último livro de Craig Thompson (que editara na mesma editora há uns anos antes Good-bye, Chunky Rice) foram bastante vincadas. O merecimento é total. Chunky Rice utilizava animais animados (tartarugas, ratos) para uma parábola sobre ir embora de um sítio, deixando amores para trás. Muitas outras pequenas peças de Thompson versavam temas muito diversos, por vezes colaborava com outros escritores, mas houve sempre um interesse geral pela condição humana, as relações entre as pessoas, às quais se apelidam por falta de outros vocábulos mais acertados “amizade”, “amor”, “companheirismo”, etc. Em Blankets, todos esses aparentemente desconexos temas apresentam-se com uma coesão quase confessional.
Esta é uma obra extremamente pessoal, não só por ser baseada em acontecimentos reais da vida do autor – ou assim o faz entender - , nem sequer por trazer ao proscénio da página cenas difíceis de confessar (alguns episódios passados com o irmão, particularmente, parecem revelar algum ultrapasse emotivo), mas sobretudo por estar envolvido em cada página o visível idioma identificativo do autor. Craig Thompson não é propriamente um inventor de linguagem ou de recursos narrativos na banda desenhada. Isto é, os processos pelos quais ele define a macro- e as microestruturas de todo o livro não levantam problemas de originalidade, redefinições, ou novos empregos. Mas o que Thompson é capaz de fazer é empregar todos esses “truques”, todos esses mecanismos para levar a bom cabo a sua história. Nesse aspecto de ser atento às existentes técnicas e empregá-las comedida e equilibradamente, lembrar-me-ia Matt Madden, seu companheiro em armas também nas aventuras pela Europa, em termos de contactos com L’Association. Porém, parece-me que se no caso de M. Madden as coisas são feitas de uma forma axiomática, quase programática, Thompson opta por uma subtileza nem sempre comum. Blankets não é uma pedrada no charco, nem the next big thing, nem pretende levantar questões imensas na arte em que se inscreve. Mas é, sem dúvida, um livro maravilhosamente bem-pensado e construído, porque vivido ao máximo na sua feitura. O autor confessou várias vezes que foi delicada e custosa, para mais pela decisão inicial de não a editar em episódios, num formato mais normal de comic book, mas antes avançar até ao seu término, durasse o tempo que durasse, custasse o que custasse, e editá-lo neste formato final, de mais de 500 páginas. Outro aspecto difícil foi lidar novamente com o seu período da infância e da adolescência – da qual saiu há pouco, visto ter 28 anos - , a qual foi passada no seio de uma família ultra-religiosa, conservadora em muitos dos temas que ele próprio viria a abordar (sexualidade, criatividade, espírito de missão no mundo), e que por pouco o iria abafar, não se desse o caso de ter “fugido”...
A velocidade de leitura de Blankets é curiosa. Uma das formas de entendermos a funcionalidade do espaço entre cada vinheta – a que S. McCloud indica com o ridículo nome de “sarjeta” (“gutter” não pode funcionar, já que esse é um mecanismo que nos livra de desperdício, e o espaço entre as vinhetas é precisamente onde se encerra a Arte Invisível de que o próprio McCloud fala) – é similar à da morfologia das conjunções. De uma forma muito simples, podemos dizer que C. Thompson consegue um ritmo bem cadenciado, sobretudo pelo uso de conjunções copulativas, numa sucessão sintáctica de causas e consequências (acrónicas, note-se), que exige a um primeiro nível uma leitura rápida, que não se abrande. Mas ao mesmo tempo, apresenta-nos uma estrutura formal dos painéis (a “utilização retórica”, segundo a terminologia de B. Peeters) que nos convida a uma “degustação” mais lenta, que se repita.
Haverá muito por onde se pudesse debater a qualidade deste livro. O significado de “blankets” não só como, denotativamente, a colcha que lhe é ofertada, mas os vários níveis metafóricos que vai assumindo ao longo da diegese. A divisão em capítulos e os títulos de cada um. A opção em estruturar o grande corpo da narrativa num tempo relativamente linear, mas intercalá-lo com inúmeras analepses e prolepses (por vezes encaixadas) que apenas aumentam a tensão e o desenlace de determinados episódios (como os da brincadeira boçal e perversa do baby-sitter masculino a Craig e depois ao irmão). A interposição de interpretações, citações e histórias da Bíblia – a educação de C. Thompson foi abafadamente religiosa, e estes são temas que já expusera em Bible Doodles. A equilibrada forma como utiliza pranchas com estruturas clássicas e claras e logo a seguir experimentalismos mais arrojados no seu design geral. O uso de painéis “silenciosos” para desacelerar o ritmo e aprofundar o que se explicita (conjunções explicativas). A transfiguração do “real” representado para uma metáfora visual alargada (um mecanismo intimamente relacionado com as técnicas da bd). E mais um par de coisas... Um recurso interessante, e que ainda gostaria de salientar, é o do “Tinkerbell effect”, uma espécie de floco de neve em filigrana que se encontra na lombada do livro, mas que atravessa todas as suas páginas como um símbolo multímodo. Apesar de ser tão simplesmente um dos elementos de padrão da colcha que receberá (pág. 181), atravessa uma sucessão de funções. Aparece pela primeira vez como efeito de um sonho (42), para se associar mais intimamente com o fascínio do amor e a sua transfiguração divina (306), apesar de ter já servido de impressão da passagem entre escuridão e luz (181), ilusão (209), emblema da ascensão e queda das almas (293), e mais tarde passa a ser como que corrompido, utilizado a paixonetas passageiras (552-553), terminando como simples floco de neve de uma outra “colcha” que tudo encerra. Veja-se em especial como essas formas se complexificam e cruzam entre as páginas 417 e 437: há aqui um crescendo cujo vértice é o amor físico entre Craig e Raina, seguido de um tema contínuo, e logo um decréscimo na relação. Sturm und Drang em tom de amores adolescentes.
A dor e uma espécie de nostalgia por algo que não deixa saudades, as emoções que atravessam estas páginas, que representam acima de tudo o cortar com as origens educativas pesadas, que Thompson vê agora ter ultrapassado, é coroada com o gesto, bastante significativo, de dedicar estes mesmos Blankets à sua “família, com amor”.
Top Shelf: Marietta, 2003. 502 págs., preto e branco. USD 29,95.
The Filth. Grant Morrison, Chris Weston, Gary Erskine. (DC Comics/Vertigo)
Na introdução que Morrison escreveu para a primeira colecção da sua série Animal Man, iniciada em 1988, o autor confessa que foi surpreendido pela resposta positiva da parte dos leitores pelo episódio The Coyote Gospel, pois ele pensava estar a escrever “algaraviadas absolutamente ilegíveis” (“absolute unreadable gibberish”), e que isso o influenciou a tornar isso mesmo no seu métier. Escolha excelente, levando-o à série de sucesso (que é possível venha trazer mais um filme aos ecrãs) The Invisibles e, logo de seguida, a esta. Tendo chegado já ao fim, é possível que venha a ser reunida num só volume. Se The Invisibles poderá agradar aos leitores que se deliciaram com as alucinações das personagens de O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco – ou que de facto crêem nessas conspirações todas por detrás de tudo – The Filth mete uma mudança acima - a nona, “mais rápida que a velocidade um muro”. Agentes secretos cujo intuito é utilizar a tecnologia permissível na dimensão da banda desenhada resgatando-a para a nossa realidade, repúblicas independentes em cruzeiros de luxo, macacos comunistas inteligentes a servirem de assassinos, pornografia científica e regiões feitas de excremento demoníaco são alguns dos ingredientes desta verdadeira pocilga de referências, onde tudo pode ser despejado e nos atola enquanto a lemos...
Pop Gun War. Farel Dalrymple (Dark Horse)
A Dark Horse parece lentamente apostar – voltando aos seus tempos primeiros – na edição de autores mais independentes e relativamente desconhecidos. Dalrymple contou com o apoio da Xerix Foundation para esta edição que colecciona a sua publicação pop gun war, que saíra pela Cryptic Press/Absence of Ink. Já Diana Schutz o tinha convidado para a antologia Happy Endings, revelando alguma relação com esta editora.
Dalrymple faz parte de uma geração de autores de banda desenhada norte-americanos (e de outros países) que se inscreve na tendência geral de utilizar um certo realismo maravilhoso nas suas histórias: tal como nos livros dos irmãos Hanuka, como disse atrás, também aqui está presente o espectro que anima escritores como Etgar Keret, Murakami, Auster. Este último é possível que seja uma forte influência, já que a cidade em que a acção de p.g.w. se inscreve – e a sua topologia, personagens, ambientes exteriores e interiores -, recorda uma Nova Iorque transmutada pelo onírico e o absurdo, que no fim de tudo, revela os mais sensíveis dos sentimentos: o medo, as incertezas da adolescência, a amizade, a coragem, tal como a prefaciadora do livro indica. Vejamos se a continuação desta saga leva a um maior aprofundamento das suas personagens ou algum nível de desenlace, já que este volume apenas parece colocar-nos as questões e pouco mais.
Teratoid Heights. Mat Brinkman. (Highwater Books)
A primeira vez que vi o trabalho de Brinkman foi no livro da SPX de 2000: duas páginas entre outros trabalhos de Jim Drain e Ben Jones, que também não conhecia, e por momentos pensei tratar-se de um só artista trabalhando vário estilos numa espécie de nonsense... A história era a de uns gigantes que trabalham para umas criaturas e entram em greve, não querendo destruir os inimigos dos seus mestres. Mais tarde, encontrei uma paródia-homenagem à Marvel por uma série de artistas alternativos, a Coober Skeber. Nesse pequeno volume, mais seis páginas estranhíssimas, que apenas mostravam uma personagem (a mesma?) movendo-se, encontrando um casulo e sendo transformado pelo contacto com ele. Aparentemente, tratava-se do Warlock de Kirby e, mais tarde, de Jim Starlin (até à data , não entendi a ligação, a menos que seja pelo casulo). Os desenhos eram ainda mais rabiscados do que os primeiros.
Entretanto, descobri o grupo de artistas de Fort Thunder (sobre o qual saiu um enorme artigo num dos últimos The Comics Journal), recebi alguns dos jornais por eles publicados, e comecei a entender a linguagem de Brinkman, integrada nesses mesmos propósitos artísticos mais gerais. De certa forma, a criação de bds de Brinkman parte de uma tendência geral de alguns círculos artísticos que retornaram à figuração e narratividade nas suas peças, encontrando muito na linguagem da bd um meio perfeito a essa expressão procurada. Esse reencontro entre uma linguagem de ilustração e narrativa, bd e outras artes visuais parece-me ser uma tendência global, se incluirmos nessa leitura as variadíssimas exposições comissionadas por Chris Perez, com muitos artistas da área de San Francisco, a carreira de artistas como Raymond Pettitbon e outros (visite-se http://www.newimageartgallery.com/) e, até em Portugal, a exposição de Pedro Zamith na galeria Monumental.
Teratoid Heights reúne pequenas histórias, algumas inéditas, outras éditas: é como se estivéssemos sendo testemunhas de um documentário de um outro planeta, habitado por várias espécies de morfologias estranhas à nossa compreensão, e os seus idiossincráticos metabolismos e comportamentos, quer individual quer social. Todas elas inseridas numa cadeia complexa de relações, umas de amizade, simbiose, ou simples convivência, outras de competência ou até de encontros feitos por puro acaso. Se cada um dos episódios pode ser desconcertante ou até anedótico, inconsequente em si-mesmo, a apresentação global destas peças leva à nossa consideração deste universo narrativo como algo realmente identificável como tal. Brinkman elabora, dentro da sua esfera de acção, um universo coerente, em que cada um dos elementos é significativo e preenche uma função importante no todo. As últimas páginas reúnem o que se parece mais com exercícios feitos despreocupadamente, mas no todo que constitui o livro compreende-se que papel têm para o imaginário avançado pelo autor. Os desenhos, todos a preto e branco, parecem ser feitos à primeira, com traços livres e largos, mas é uma descontracção que elabora imagens coesas. Inserir-se-á Brinkman numa escola que incluirá William Steig, o autor de Shrek, mas com uma visão moderna do que pode ser plástica e narrativamente lógico.
Highwater Books: Brooklyn, Julho 2003. USD 12.95.
(A imagem não corresponde ao livro aqui descrito).
Early Works.Winsor McCay (Checker)
Como a própria introdução o diz, a Checker faz, com estas duas novas edições (o segundo volume é anunciado no fim deste primeiro), um “humilde” contributo para a disponibilidade destas obras da carreira em formação de Winsor McKay - se considerarmos Little Nemo in Slumberland como não só a convergência de muitos dos temas explorados nestas outras bandas desenhadas, como também o apogeu deste artista -, incontestavelmente um dos grandes valores e inventores a nível mundial, do meio de expressão que a banda desenhada é, sobretudo tendo em conta a revalorização constante da sua obra no conjunto ao longo de novas e sucessivas gerações de bedéfilos, sejam criadores ou entusiastas. Mas são precisamente essas duas palavras – “humilde” e “disponibilidade” - que pautam estes volumes. A introdução não é mais que um comentário blasé, infundado até, senão mesmo foleiro, em relação às outras edições de McKay, nomeadamente a famigerada da Remco (tomada em Portugal pela Livros Horizonte e que padeceu dos mesmos problemas), edição quase irrepreensível. E a falta de um aparato crítico, sobretudo das datas das pranchas (mesmo as da primeira edição nos respectivos jornais), não a torna numa edição indispensável se outras mais cuidadas surgirem. Mas enquanto nada mais há, que se guarde esta.
Inclui Dream of the Rarebit Friend (parcial), Tales of the Jungle Imps, Little Sammy Sneeze (parcial) e A Pilgrim’s Progress.
Winsor McKay, Checker Book Publishing Group: Miamisburg, OH 2003. USD 19.95
(Artigo escrito em Maio 2004 para Quadrado 6, não-publicado).
3 de julho de 2004
Por sobre, na, pela, além e com a BD.
Sobre BD é, no que diz respeito ao tamanho, um pequeno livro, que reune textos do autor da incontornável bd A Última Grande Sala de Cinema (também pela sua editora Círculo), alguns desses já apresentados a público no blogue osonhodenewton.crimsonblog.com, e outros inéditos. À primeira vista, são pequenos textos sobre cinco obras de banda desenhada, sobre cinco textos de banda desenhada (um álbum, os comicbooks, os trade paperbacks ou os livros são apenas o seu suporte): o documental e pessoalíssimo Maus, de Art Spiegelman; a saga gótico-ambientalista do Swamp Thing (o Monstro do Pântano), de Alan Moore e sua equipa; a ficção biografia de Vicent & Van Gogh, de Gradimir Smudja; o labiríntico, a um só tempo, da saudade e da loucura, de Arkham Asylum, de Grant Morrison e Dave McKean; e o inefável aterrorizante de Uzumaki, do japonês Junji Ito.
No entanto, o tamanho do livro esconde uma profundidade inusitada na forma como se costuma falar da banda desenhada no nosso meio. São vários os esforços da parte de escritores, historiadores, investigadores, críticos, jornalistas e editores a caminharmos para um campo mais amplo e adequado de falar deste modo de expressão, e este título de ensaios de David Soares são um largo passo. Uso a palavra ensaio com toda a segurança, pois é disso que me parece que se trata. Não estamos perante textos de crítica ou análise, ou pelo menos de uma crítica estrutural da bd - como existe em autores como B. Peeters, T. Groensteen, J. Baetens, ou até mesmo S. McCloud - mas antes de leituras. Leituras eruditas, inteligentes, que cruzam uma série de saberes, desde a biologia, a matemática, a filosofia, a literatura comparada, a história, para poder melhor ler as bds em questão; não me parece que D. Soares esteja aqui defendendo uma tese, mas antes demonstra que a bd pode ser vista como uma expressão e um modo de ver (e construir) o mundo tão válida como outra qualquer. João Miguel Lameiras, que prefacia o volume, tem toda a razão quando afirma que este livro não é só sobre bd, é muito mais que isso. É antes um livro que parte da bd para mostrar algumas considerações de D. Soares sobre uma geral cultura. Assim aproxima-se de autores como, por exemplo, Donald Phelps (Reading The Funnies). Há como que uma polinização mútua entre as aproximações de saberes que o autor faz, de forma erudita, metódica e holística, sobretudo iluminadora para a bd, menos habituada a que lhe rendam esta homenagem.
No nosso panorama da edição de banda desenhada ou de textos relativos à mesma, seja nos círculos mais comerciais seja num âmbito mais associado aos fanzines, esta é uma edição nova, bem-vinda e até mesmo de orgulho, já que esta atitude de leitura nada tem de derivativo.
Sobre BD,David Soares.
Círculo de Abuso: Lisboa 2004. 91 págs., 15 Euros.
1 de julho de 2004
4 blocos para viajar aos poetas
Num pequeno “guia orientador de leitura” intitulado Viajar nos Livros, editado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas no ano de 2003, a autora Alice Vieira apresenta uma escolha de alguns livros indicados à leitura dos “mais jovens” que falem de viagens, umas mais inventivas que as outras ou que sirvam para viajar. Apesar da própria autora se precaver com a advertência de que qualquer selecção é “subjectiva”, não pode essa servir de obstáculo a que se teçam críticas à mesma. E ainda que qualquer selecção possa ser discutível, a ausência das Alices (sim, Carroll)é um gritante silêncio. Tentativa de evitar a homonímia? Os novos livros escritos por João Paulo Cotrim também não se encontram nesta lista. Quero crer que se deve ao facto de serem todos demasiado tardios para terem sido incluídos na escolha – os dois primeiros, História de Um Segredo, com André Letria, e A Cor Instável, com Alain Corbel, são de Fevereiro de 2003. Mas algo me impele para um modo de ver que o critério da viagem pode ser sempre alargado... A discussão poderia começar com a afirmação de A. Vieira em que, “Infelizmente a literatura portuguesa não é muito rica em livros de viagens.” Como? É verdade que poderão existir sub-categorias deste género literário mais representado que outros, mas essa afirmação não é verdadeira, tendo em conta o enorme e rico espólio desse mesmo género, aliás sobejamente estudado entre nós. A redução não deixou de ser feita.
Já na seguinte publicação do mesmo instituto, Portuguese Children’s Books, em inglês para divulgação internacional (e a propósito de candidaturas portuguesas ao Hans Christian Andersen Award 2004), com uma selecção assinada em conjunto, mas com o indelével cunho de Luísa Ducla Soares, já surge A Cor Instável.
Estes quatro livros – para além dos já citados, há O Homem Bestial, com Maria João Worm, e Viagem no Branco, com Miguel Rocha - são apenas os primeiros editados na colecção Olho Vivo da Afrontamento, já que Cotrim promete ainda ofertar-nos mais uns quantos volumes, “para acentuar a ideia de colecção”, diz o próprio. Canção da Rocha, da Onda e da Nuvem com Tiago Manuel e A Máquina das Asneiras com Pedro Burgos são para já promessas a cumprir, mas outros episódios que desdobrarão este projecto - de mais de cinco anos na calha - também se esperarão.
Será uma terrível redução dizer que estes são livros infantis; mas também não é daqueles casos em que se pode dizer que “tanto gostam os miúdos como os graúdos”. Há aqui uma vontade de inaugurar uma porta relativamente nova. Em Portugal, poder-se-ão apontar variadíssimos registos de literatura versada para públicos mais jovens, os que começaram a ler faz pouco, os que querem aprender a ler mais, os que ouvem histórias lidas pelos pais. E existe uma grande diversidade e níveis de atenção. A publicidade continua, porém, a ser feita sobretudo aos ineptos e inanes livros que têm uma “lição”, uma “moral” ou a partir do qual se poderá aprender a fazer qualquer coisa de “útil”. Livros que pretendem sempre ensinar algo de imediatamente aplicável na mais chã das realidades e da vida das crianças.
Não é este o presente caso. A utilidade máxima destas quatro (e mais, como vimos) aventuras autoradas por João Paulo Cotrim e os desenhadores respectivos é a de viajar para dentro. Não quero com estas generalizações sobre o trabalho gráfico menosprezar, de forma alguma, o trabalho de cada um dos desenhadores, já que as parcerias foram sentidas e não ocasionais ou circunstanciais, sendo cada uma das pequenas narrativas especialmente bem associada à expressão gráfica típica de cada desenhador. O ponto de partida foi sempre uma relação pessoal de Cotrim com o desenhador em questão, e não se trata da prioridade de um criador sobre a de um outro, mas uma verdadeira experimentação de conversa criativa a dois.
Porém, se existe algum ponto em comum nos quatro volumes, é o movimento: um movimento contínuo, em espiral, cada curva e virar da página mais rico que o anterior, aparentemente uma repetição de uma ideia, mas já mudada no seu sabor. Move-se um segredo, move-se a cor, move-se a comparação,
Duas das histórias, nomeadamente A Cor Instável e Viagem no Branco, têm dois teoremas que se anulariam numa mesma plataforma: nomeadamente de que “nada é a preto e branco” e consequentemente “cada um pode ser arco-íris” e a de que “É à noite que deixa de haver coisas porque não há luar. No branco há imensa coisa!” Mas, para além do facto de que cada livro vale por si, e que os autores são livres de vestirem tanto a pele do lobo como a da ovelha, a verdade é que o contador de histórias aqui está próximo da fórmula introdutória clássica dos contos ciganos: “Era e não era.” Porque o mundo é enorme e há espaço para tudo e para todos os seus contrários. O Olho Vivo de todos estes autores vai encantando-os a todos...
História de um segredo, A cor instável, O homem bestial, Viagem no branco.
João Paulo Cotrim (textos) e, respectivamente, André Letria, Alain Corbel, Maria João Worm, Miguel Rocha (arte)
Afrontamento: Lisboa, várias datas. 35, 33, 31, 29 págs., 7.50 Euros
Journal de Mon Père. Jirô Taniguchi (Casterman)
A Casterman acaba de editar num só volume, e num formato e design bem mais atraente, todo Le Journal de Mon Pére (O diário do meu pai), uma das obras mais marcantes de Taniguchi, autor de O Homem que Caminha e Bairro Longínquo. Nenhuma das obras está traduzida para português, que eu saiba. A editora francesa já o tinha editado em três álbuns, e apesar da edição original também ter sido seriada, esta parece-me a melhor forma de a ler. Taniguchi inscreve-se na tradição que o Ocidente chama de "auto-ficção", utilizando um ponto de partida autobiográfico para contar uma história de uma outra personagem, ou antes, contando a história de uma personagem que não o autor, aproveita para revisitar temas muito próximos de si-mesmo. Superficialmente, este é um livro em que um filho visita a terra natal para o enterro do pai e, atravé das suas conversas com outras pessoas e as suas memórias (e o repetido recurso aos seus "silêncios respondentes"), constrói uma imagem diferente de um homem que afinal mal conhecia. Porém, é sobretudo um belíssimo livro sobre a memória e as partidas que ela nos prega. Taniguchi demonstra ser capaz de levar o modo da bd ao apogeu, especialmente no que diz respeito ao tratamento do tempo e na construção morosa mas concertada da dimensão psicológica de uma personagem.
Casterman: Paris Junho 2004. 15,50 Euros.
(artigo publicado em Mondo Bizarre 19, Junho de 2004)
Leviathan. Jens Harder (L'an 2)
Este é talvez o melhor livro do artista alemão JH. Ainda que não seja mais do que um exercício de adaptação filosófica e ambiental do enciclopédico e “bigger than life” Moby Dick, de H. Melville, e do tratado homónimo de T. Hobbes, cruzada depois com outros acontecimentos e colocando o cachalote no centro das atenções, é ainda assim um válido exercício da potencialidade (e limites) dos fundamentos da bd. Os desenhos das figuras humanas poderão lembrar um cruzamento entre Charles Burns e Nick Bertozzi, autor de que se aproxima mesmo pelos experimentalismos formais que regem as histórias, mas sem atingir a qualidade de ambos. O mais interessante de tudo é, a meu ver, a forma como os saltos entre referências diferentes funciona apesar de tudo e como o autor consegue integrar imagens de outras fontes na sua própria narrativa aberta. A bd propriamente dita não tem palavras, mas cada secção está separada por citações literárias diversas em francês, inglês, alemão e japonês. Veja-se ainda o portfolio em http://www.monogatari.de/.
Éditions de l’An 2: Angoulême Novembro 2003. 25 Euros.
(artigo publicado em Mondo Bizarre 19, Junho de 2004)