Há uma certa tendência, que tem vindo a ser alimentada nos últimos dez anos, em rasgar quaisquer limitações possíveis na apresentação do desenho (e aqui incluir-se-ão as áreas ou disciplinas, mais regradas, da banda desenhada e da ilustração) para um território sem quaisquer finalidades ou uma obrigatória assunção de um sentido último. Se bem que as raízes podem ser encontradas em toda a História, talvez os pontos nevrálgicos do(s) movimento(s) Dada e a geração norte-americana despertada pela
Raw sejam centrais numa visão linear de “evolução” ou “fontes”. Esta tendência está presente em variadíssimas frentes, em França no atelier Le Dernier Cri, no Canadá presentes numa antologia recente,
Nog a Dod, editada por Marc Bell, em Portugal numa cena semi-dispersa semi-concentrada no Porto. E nos Estados Unidos, centro da atenção presente, na “cena de Providence”, da qual emergiu o colectivo Fort Thunder, aos quais se associam
algumas das publicações já discutidas aqui. Recentemente, foram editados três títulos relacionados com essa “cena”:
Ninja, um enorme volume de banda desenhada de Brian Chippendale, um novo volume de
Paper Rad, e um catálogo do movimento.
Falei da
Raw, mas deveria, sobretudo no caso de Chippendale, de começar a citar mais especificamente o nome de Gary Panter, com quem partilha afinidades e cujo nome é citado vezes sem conta na apreciação do seu trabalho. Que Panter seja uma figura tutelar não é nenhuma surpresa. Nem um mistério oculto, já que são dele as palavras do prefácio de
Wunderground, apadrinhando assim abertamente esse projecto. Os pontos de ligação são, a um ponto, estilísticos: um frenético e cabal preenchimento da página, a apropriação de toda uma série de ícones e figuras da cultura popular (banda desenhada e desenhos animados infantis incluídos, o que é importante, como veremos), uma continuidade da acção desprovida de elos de causa e consequência, procurando uma dissolução da causalidade através de um cego movimento de progresso, o cruzamento de vários estilos ou modos de desenhar, provocando uma estranheza na falta de unidade e antes a convivência e a ambiguidade da comunicação possível entre essas diferenças. A leitura de
Ninja, de Brian Chippendale, é praticamente impossível de fazer sem entender as sombras projectadas pela trilogia de
Jimbo.
Existem, porém, diferenças, que nalguns patamares apenas elevam ainda mais Panter aos píncaros de um experimentalismo olímpico, e algumas das experiências do colectivo do Fort Thunder como irresolutas. Em
Dal Tokyo, de Panter, tínhamos uma progressão de vinhetas, tiras mesmo, que fariam pensar nas estruturas típicas desse tipo de banda desenhada norte-americana. Mas a “estória” não existia, passando-se de imediato a uma dissolução da narrativa que importava antes entender como uma sucessão de memórias e referências da mente de Panter, referências algumas fáceis de repescar, outras obscuras, e cujo exercício se tornaria potencial nos livros,
Inferno e
Purgatory, onde a cultura erudita se torna pasto para essa sua acção.
Não. Não se trata de surrealismo ou coisa que o valha. Trata-se de uma regra de construção absolutamente livre, descomprometida com uma vontade ulterior de “sentido”, a qual, se quiserem, estará mais próxima, repito, dos jogos humorísticos da primeira geração dos Dada. É esse “sentido” abandonado a que se retorna nos projectos de Paper Rad, especialmente neste
Pig Tales (em que acompanhamos o dia-a-dia de uma banda feminina de pop rock, constituída por porquinhas) e
Ninja (cujo protagonista é, óbvio, o titular do livro).
Em
Ninja [
Picture Box Inc./
The Ganzfeld, capa acima] convergem toda uma série de dispositivos narrativos regulares de um determinado universo da banda desenhada: não só histórias de artes marciais, como grandes aventuras (atravessando estranhas e misteriosas cidades, cruzando-se com criaturas fantásticas, descobrindo maravilhas da magia e da técnica), como ainda um profuso imaginário associado aos grupos de super-heróis dos anos 70 e 80 (Kamandi, os Defensores, os Vingadores, Punho de Ferro e quejandos; mais, este imaginário nostálgico não é novidade, tendo em conta a publicação especial
Coober Skeber Marvel benefit, na qual os artistas de Fort Thunder e muitos outros apresentam versões muito próprias de todas as personagens desse universo). Não se trata apenas de uma questão de “caça às fontes”, mas de uma apropriação (em termos artísticos) para um seu emprego novo. No entanto, ao passo que a apropriação feliz tem a ver com uma eficaz desterritorialização do objecto original, Chippendale apenas o desvia uns escassos centímetros do palco primeiro.
Ninja, não obstante os seus aspectos formais e superficiais, é lido enquanto um texto de “bd de aventura”. Aí reside uma sua fraqueza face às promessas anteriores, quer do próprio grupo em que Chippendale se inscreve quer do que havia sido inaugurado por Panter.
A nostalgia a que me refiro está presente não só nestas referências como na inclusão, esparsa e intercalada com os episódios “modernos” de
Ninja, de pranchas feitas por Chippendale quando tinha cerca de 12 anos. São pranchas também divididas em vinhetas regulares, desenhadas à régua, e que mostram uma breve sequência de acção do Ninja contra os seus inimigos, em várias missões nas quais, invariavelmente, tem de conquistar um objecto ou tesouro. O desenho é tão banal quanto idêntico ao de milhares de crianças da mesma idade. Formas mais ou menos inflexíveis dos corpos das personagens, uma figuração que apenas se diferencia entre si por atributos exteriores como máscaras, armas, extensões dos poderes (veja-se a imensa lista de personagens incluída), uma estrutura linear de acção-reacção... Mais, as personagens ocupam quase sempre um espaço que fica em baixo ao centro da vinheta, onde o espaço é representado por uma outra linha recta para o chão e talvez uma ou outra mínima informação para um exterior ou um interior. O foco de visão é sempre o mesmo, sem quaisquer variações, como se fosse uma câmara fixa ou um longo
travelling. Nesse sentido, formal apenas, dá-se uma associação aos jogos do fim dos anos 70 e princípio dos anos 80, especialmente o que se conhece como “platform games”, do ZX Spectrum, Nintendo, Atari ou das máquinas de vídeo-jogos -
Manic Miner e
Donkey Kong eram favoritos entre nós: são uma claríssima referência (repetida, ainda que diferentemente, nos outros títulos aqui discutidos). Para além dessa estratégia visual de continuidade e acção imparável, também presente nos novos episódios, emerge mais uma vez a carência de estruturar a psicologia das personagens, optando-se antes por esta sua transformação em nódulos functivos da acção a decorrer (um pouco como o que sucede em Yokoyama). Esses espaços transmutam-se, nos episódios “modernos”, em várias cidades (legíveis como “níveis” na gíria dos jogos-vídeo, ou como “reinos”, no do imaginário do high-fantasy post-Tolkien que não deixa de estar também presente, com todas as criaturas diversas, os poderes, e os atributos... é como se a geografia alienígena de
Teratoid Heights de Brinkman ganhasse em Chippendale novamente uma finalidade).
A criação e fruição das pranchas (as “modernas”) deve ser feita, de acordo com as palavras do autor, em “cobra”, isto é, lidas da esquerda para a direita na primeira fila, descendo imediatamente para a vinheta debaixo da última e da direita para a esquerda e assim sucessivamente (veja-se aqui um exemplo mal
scaneado de metade uma prancha). Na verdade, a palavra certa é
boustrophedon, sendo um sistema de escrita antigo mas que viria a cair em desuso. O que este sistema permite, em termos de escrita e leitura é uma economia de meios e de tempo e um aceleramento, quer do acto da leitura quer da visualidade implicada, que se multiplica ou exponencia pela presença de uma carga informativa poderosa (pormenores, padrões carregados, muitas personagens, textos crípticos, etc.). Este tema da aceleração do olhar foi lançado nesta fórmula por Balzer no último número da
Satélite Internacional, falando sobretudo dos livros saídos do Dernier Cri, mas associando-se a Panter também, o que nos permite estas associações contínuas e quase circulares. O que se pretende não é uma acalmia do olhar, uma observação ponderada e reflexiva de uma imagem parada, mas antes uma transpiração e uma ênfase vertiginosa (que rima com os exercícios e as atitudes inerentes ao tipo de música – noise – que o autor preconiza; v. em baixo).
Cartoon Workshop/Pig Tales [Picture Box Inc./Paper Rad] é um livro duplo. Tem duas capas e podemos ler ora por um lado ora pelo outro, até ambas as linhas se encontrarem no centro do objecto-livro (estratégia excelente para narrativas simples, como tentámos, a Koh, Eun-Kang e eu, no zine infantil
Uma porta serve...). No entanto, não se tratam de duas “metades” que se complementam num todo, mas unidades individuais e autónomas. Já descrevi
Pig Tales, e como seguimos as vidas dos membros da “all-girls” Lap Band.
Cartoon Workshop tem um título claríssimo em relação ao seu programa. Coligem-se aqui pequenas histórias, por vezes de apenas uma página, ora a cores ora a preto e branco, as maiores apresentando algumas das personagens (ou versões delas) com que já nos havíamos cruzado em
B.J. and da Dogs ou no
site, nos vídeos, etc. As histórias menores são reminiscentes das anedotas de uma página ou meia-dúzia de vinhetas que encontraríamos (nós, leitores portugueses) na última página das revistas da editora brasileira Abril, em títulos baseados nas personagens do estúdio de animação Hanna-Barbera (identificam-se aqui o Manda-Chuva/Top Cat, o elefante Tantã, o jacaré Uóli/Wally Gator, o Magro/Abbott, e ainda os Marretas e o Boris de Alceu e Dentinho/Rocky and Bullwinkle). Mas também para além desse quadro de referências, são identificáveis as presenças de personagens que derivam de brinquedos e bonecos, desde os Trolls ao Gumby e ao boneco dos M&Ms, do Potato Man a tudo o que é possível moldar com o brinquedo mais fabuloso e nojento alguma vez inventado, o Blandi Blub.
Não cito todas estas referências por mero acaso ou para tornar a caça mais rica, mas por uma razão mais profunda. Para além da sua presença (ligeiramente transfigurada) nas bandas desenhadas, algumas destas personagens surgem em desenhos soltos que pontuam as histórias, o que apenas serve para reforçar ou pelo menos, mais uma vez, ecoar este pequeno gesto de apropriação nostálgica do que são provavelmente referências da infância, e que se verifica quer no catálogo quer em
Ninja quer neste livrinho.
Todas estas referências, os jogos-vídeo, os livros da Marvel dos anos 70 e 80, um determinado grupo de brinquedos, etc., tudo aponta, portanto, para um determinado ponto do tempo do desenvolvimento e de influência na vida dos autores aqui englobados. Um ponto que se arrestou, por assim dizer, não impedindo um restante desenvolvimento, sobretudo das capacidades criativas e de reinterpretação, mas como uma espécie de território de obsessão e fonte de elementos
prêt-à-porter. Não só esses elementos ajudam a despoletar um caminho criativo como surgem enquanto “nós de viragem” ou “funções” que impelem a acção sempre em frente... São raras as analepses, prolepses ou desvios em relação à acção do episódio (mas ocorrem); as acções paralelas são, pelo menos em
Ninja, tantas e tão confusas, numa profusão de unidades narrativas, que quase leva à disrupção de uma ideia de narrativa. Todavia, há um aspecto que redime toda esta quase-total depauperamento. Quer dizer, há uma ponta única nesta progressão febril que nos permite desconfiar que todo o
Ninja não se fecha somente num exercício virtuoso e superficial de “preencher a folha branca” (curiosamente, em
Wunderground, numa entrevista a Sasha Wiseman, faz-se um paralelo entre os estilos gráficos dos artistas com os seus talentos musicais específicos: Brian Chippendale toca bateria e de uma maneira frenética todavia melodiosa, também:
dúvidas?). Parece que as coisas só fazem sentido num termo reduzido de aventura, de progressão contínua, de profusão caótica, mas a cerca de meio da grande aventura, começam a despontar pequenos episódios, com o que parecem ser personagens de terceira categoria face aos “heróis” e aos “grandes das cidades”, para se debater, ainda que de um modo enviesado, um tema que Chippendale conhece de primeira-mão: o processo de rejuvenescimento e desenvolvimento urbano conhecido por “gentrificação”, que consiste no apagamento de zonas velhas e pobres, mesmo que históricas e culturalmente significativas, em nome de uma subida de preços imobiliários. A experiência do artista está nos vários edifícios industriais que foram ocupados por ele e os seus companheiros durante largos anos, inclusive o colectivo Fort Thunder, e que seriam demolidos pelas novas políticas municipais. A história dessa vivência, luta e transformações está presente no catálogo
Wunderground. E tornou-se matéria de trabalho ficcional em
Ninja. Se bem que o modo como Chippendale lida com esse problema sócio-económico esteja longe das estratégias mais anarco-cooperativistas e directas dos artistas que se aglomeram em torno da
World War III, debate-se a mesma crise instalada pelos poderes instituídos, expressos através dessa transfiguração, através deste tipo de fantasia. E quando a cidade entra em guerra com uma outra, que a invade na forma de uma torre, e se seguem políticas de re-registo dos cidadãos, e até se dá um episódio de torturas várias (no. 68), julgo que as associações com a realidade recente são claras (e tendo em conta tratar-se da cidade de
Groin, “virilha”, a sua leitura e interpretação humorística também).
Wunderground: Providence, 1995 to the present [RISD Museum/
Gingko Press] é um catálogo de
duas exposições-irmãs que tiveram lugar em Providence, a cidade onde existiu o Fort Thunder, o grupo de artistas que albergava e ainda outros movimentos análogos, companheiros, rivais, etc. quase todos envolvidos na Rhode Island School of Design (de onde saíram também os Talking Heads). A exposição era constituída por dois núcleos, sendo o primeiro de centenas de posters e flyers (
Providence Poster Art) dos concertos, teatros, e lutas de wrestling havidas no seio desta comunidade artística, o segundo por uma série de instalações e ambientes (
Shangri-La-La-Land) criados por um núcleo duro de artistas, entre os quais os nossos mais conhecidos Mat Brinkman, Brian Chippendale, Jim Drain e
Leif Goldberg. Sem surpresa, o catálogo apresenta esses posters e flyers, fotografias dos concertos e outros eventos, imagens das instalações antigas, dos espaços de trabalho e da exposição que apresenta; dois textos de apresentação, uma entrevista que contextualiza a “cena”, e uma colecção de “reminiscências”.