Em várias ocasiões no passado, quer em momentos privados quer públicos, por escrito ou oralmente, e nos limites minúsculos que consigo alcançar, avisara ou recordara a existência desta saga de Marcos Farrajota, publicada nos anos 90, como uma marcante experiência da banda desenhada autobiográfica, a qual, não obstante ser uma tendência certa e crescente noutros países (nos Estados Unidos mais vincadamente a partir da década de 60 com os underground comix e em França depois da década de 70 com autores tão díspares como Gotlib e Moebius), e contemporaneamente consolidada, em Portugal acabou por não medrar do mesmo modo. As razões desse, digamos, desequilíbrio serão melhor exploradas e explicadas por métodos de sociologia. A mim importar-me-á re-indicar que, nesse panorama débil em autobiografias, Marcos Farrajota, em consecutivos Mesinha de Cabeceira (entre 1995 e 1997, com mais um “episódio inédito”) avançou uma obra que se destacava dessa ausência (nem o poderemos considerar “percursor”, pois não se seguiriam novas experiências análogas, idênticas ou aproximadas). É certo que existiram outros companheiros, assinalados no prólogo de Daniel Lopes, anteriores como o Relvas do L123 (mas aqui estamos no domínio da auto-ficção), contemporâneos como Pedro Brito e Miguel Falcato, mas também Nuno Saraiva, João Fonte Santa, Alice Geirinhas... Poderíamos ir mesmo a Bordalo Pinheiro... Posteriormente surgiriam novos autores, ligeiramente mais jovens e também sob novos signos da banda desenhada internacional – aquela que Farrajota, em parte, introduziu nos circuitos através dos seus workshops, encontros, etc. – e que dela partiriam para experiências semi-autobiográficas, em que transformam experiências de vida em matéria reutilizável nas suas ficções, etc., mas há como que um ecrã de vergonha que impede trabalhos mais vincadamente do “eu” que identifique directamente autor, narrador e protagonista. Mais recentemente, e de um modo directo, descomplexado e divertido, temos a experiência de Marco Mendes. Cada um destes artistas trabalha ou trabalhou separadamente, como autor individual, e não pertencem a nenhuma escola ou corrente que se possa entender como unificada em Portugal, o que está em perfeita consonância com o modo de funcionamento usual da banda desenhada no nosso país. Seja como for, continua a mostrar-se dessa maneira que não se pode falar de uma autobiografia em banda desenhada musculada em Portugal.
Seja como for, essa resistência ao género parece ser repetida também pelos leitores e até leitores críticos da banda desenhada, o próprio Daniel Lopes dando conta de algumas ideias que se generalizam em torno deste tipo de banda desenhada. por exemplo, e simplificando em muito, os seus detractores empregam muitas vezes a fórmula de que “uma autobiografia só é boa na medida em que o autor tem algo de interessante para contar”. Mas o problema aqui está em colocar todo o onús no “que” (no quid) em vez de no “como” (o modo). Caso contrário, bastaria querer falar de leucemia, do pai homossexual, da morte dos avós, de um interrail particularmente regado a álcool e experiências sexuais, sem qualquer esforço autoral, de domínio dos instrumentos e estratégias do seu meio, para atingir esse fim (claro que cada uma destas experiências se tornaria mais interessante para com uma predisposição do leitor). Todavia, as coisas não podem funcionar assim. Muitas vezes somos surpreendidos precisamente por uma autobiografia em banda desenhada por nos falar de experiências que nos são totalmente alheias e quiçá indesejadas, mas a força do seu autor, a motriz da sua linguagem, tornam essas obras incontornáveis no seu território. A lista é enorme de autores que atingiram esse domínio, sendo depois diferenças de grau aquelas que aproximam dois leitores diferentes de uma mesma obra, e os afastam de outra. Como disse Proust em Contra Sainte-Beuve, "a beleza da pintura não depende do que representa".
Outra crítica relativamente constante é o egocentrismo da autobiografia. A própria frase já deveria revelar o caricato paradoxo que se levanta: como não ser egocêntrico numa autobiografia? Mesmo que exista uma maior procura pela distinção, como em David B., ou mesmo um apagamento, como em Dominique Goblet, do que uma auto-derisão total (como em Joe Matt, que Marcos Farrajota cita e com quem se deseja encontrar) ou uma assunção das crises pós-adolescência (J. Brown) ou a busca pelo amorável caseiro (Liz Prince), há sempre, sempre uma busca pela centralização do autor/protagonista: é ele ou ela o filtro segundo o qual e organiza o mundo. De resto, é isso o que sucede nas nossas vidas, diariamente. O meu mundo gira em torno de mim. Um autor que opte pela autobiografia não pretende fazer desviar esse eixo para o mundo do Outro de um modo acabado (discutível, mas poder-se-ia falar de ficção), mas mantê-lo organizado nesse eixo. São portanto as estratégias de descentralização (parte do modo, não do quid) o que torna mais ou menos interessantes os trabalhos deste género em particular. Nesse caso, Seth leva a palmatória em It's a good life if you don’t weaken, por exemplo.
Quanto a Marcos Farrajota, existe um equilíbrio bem feliz entre essa possível auto-derisão, uma genuína busca por um sentido de se explicar e justificar perante o leitor, uma preocupação em perceber os limites do que pode dizer (os nomes dos amigos, a sua figuração – como quando surge Astarot, personagem da saga de Loverboy, com João Fazenda) e o final (pelo menos aparente) abandono desse trilho (seguir-se-á um próximo volume com mas trabalhos desta mesma “veia”). É preciso contextualizar estas histórias na sua altura exacta. O autor era (e é) extremamente atento aos movimentos internacionais da banda desenhada (e não só, uma vez que o domínio musical é uma constante na sua produção, como neste encontro perfeito entre as letras dos Einstürzende Neubauten e o seu estado emocional), de uma verve criativa pouco comprometida com expectativas e “sabores da moda”, e muito pouco dado a derivativos. Quando estas histórias foram criadas, vivia-se num tempo a autobiografia ainda não tinha explodido totalmente no “mercado” internacional (podemos dizer que a responsabilidade na Europa pertenceu, ainda que não exclusivamente, à L’Association), e muito menos em Portugal, como vimos (aparte algumas experiências fanzinísticas obscuras). Nesse sentido, Marcos Farrajota não deve nada, por exemplo, a Craig Thompson, a J.-C. Menu, ou a Joe Matt. Se bebeu, bebeu das fontes mais recuadas, como Crumb, Pekar, ou de experiências mais recentes e que com ele partilhavam uma certa cultura, a que se pode dar o nome (sempre temporário) de underground: pensamos em Julie Doucet, trabalhos na World War III, etc. A ligação directa com Relvas, feita por Daniel Lopes, é exacta nesse sentido de justiça e acuidade da sua inscrição.
Quando havia feito as chamadas de atenção à obra de Marcos Farrajota, na verdade enganara-me sistematicamente a citar o título, falando de Bebedeiras e Duprês, esquecendo-me do terceiro elemento, aliás o primeiro no título correcto, que surge com uma espécie de complemento circunstancial de lugar e tempo e modo e meio todo embrulhado: as noites. E é necessário tomar em conta que os acontecimentos retratados nestes pequenos episódios, alguns solitários – a própria criação dos trabalhos, a masturbação, as migalhas, as paranóias dos charros, as fantasias mentais, as reflexões sobre a vida – outros colectivos – saídas à noite, festas, concertos, passeios, férias, conversas – vivem em torno de uma cultura noctívaga, de um certo grau de rebeldia em relação à imposição da “normalidade social”, de uma ansiedade em relação ao futuro e àquilo a que nos parece obrigar, que se revela no próprio modo de trabalhar a banda desenhada: os traços nervosos, a flutuação dos estilos, as complicadas ou grotescas composição de página, as inclusões de material alheio (aliás, como muitos dos autores europeus de banda desenhada autobiográfica, Marcos inclui também trabalhos de outras bandas desenhadas como forma de se agregar a elas enquanto tradição criativa – Grant Morrison/Phillip Bond com Kill Your Boyfriend, o Madman de Mike Allred, o trabalho de Julie Doucet, etc.; também cita Ramba, de Marco Delizia e Rossano Rossi, mas por razões diferentes, mais mundanas), as diatribes contra a “normalização” aventada acima, etc.
O desenho de Marcos Farrajota dá lugar a discussões extremamente vivas e interessantes. A banda desenhada, enquanto um meio visual e uma linguagem devotada em grande parte ao entretenimento, cria uma massa crítica mais afeita às paixões fáceis e redutoras do virtuosismo dos estilos, da espectacularidade da figuração e acções representadas, e até mesmo dos elementos de titilação mental mais imediatos (sexo, mulheres belas, violência gratuita, seja ela heróica ou antiheróica, etc.), do que um pensamento mais estruturado em torno do visual agenciado em narrativa, mais próprio desta arte. No entanto, se é verdade que a dimensão visual é o caminho de mais fácil conquista na primeira das abordagens – quantos de nós decide comprar um livro de um autor que não se conhece folheando o livro em pé e baseando toda a primeira impressão nas imagens? -, a banda desenhada não se reduz de qualquer modo a isso. Acima de tudo, é uma escrita: não apenas do texto em si, das palavras com que se preenchem os balões e as legendas, mas sim o agenciamento, a estruturação das imagens, das acções, das contínuas impressões, da organização do tempo diegético, das estratégias políticas que residem no que se dá a ver e no que se reserva invisível... E nisso, não pode perder-se de vista que Marcos Farrajota domina.
Se me permitem a auto-citação, repesco aquilo que havia escrito na revista flirt, e que se encontra na capa de trás de Noitadas, deprês e bubas. A propósito dos desenhos de Marcos Farrajota, que são “maus” no sentido de “bruto”, de não se entregarem à “beleza normalizada” – desculpem a nota pessoal, mas se houve colaboração na Mesinha de Cabeceira/Crica, com a “História de Deus”, foi porque encontrava em Farrajota o poder de uma inscrição caligráfica apropriada a essa saga conturbada – disse: “o que move Farrajota não é a estética – forma de conhecimento pelos sentidos – mas a estésica [há uma gralha no original, deveria ser esta a palavra] – forma de conhecimento pelos sentimentos”. E é descobrindo como com estes parcos instrumentos Marcos Farrajota constrói um vincadíssimo e forte modo, que o quid se torna significativamente pessoal. Mas transmissível, através da sua leitura.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela oferta do livro.
Tudo bem, mas continuo a não gostar do trabalho do Marcos.
ResponderEliminarAbraços
Gustavo.
eu tb...desenha mal, escreve mal e tem a mania que é bom.
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