
29 de janeiro de 2009
A valsa com Bashir. Filme de Ari Folman

27 de janeiro de 2009
En chemin avec Baudoin. Thierry Groensteen (PLG)

Groensteen aplica-se aqui a uma descrição crítica da obra de Baudoin mais sedutora, mais próxima de um impressionismo que ele herda da leitura da obra do autor. Tendo em conta a imensa obra de Baudoin, a que nós, noutra ocasião, chamámos de O (seu) Poema Contínuo, querendo dar conta de uma forte continuidade no seu interior, Groensteen voga por ela, cria o seu próprio caminho, ainda que este seja com Baudoin. Identifica os elementos que se repetem, as variações, as linhas de força com que se cose a obra, desde elementos visuais, como o menino de dedo na boca, ou as cabeças abertas, ou a mulher enquanto símbolo alargado do Feminino, até às preocupações com a auto-representação e o respeito para com os outros que o rodeiam, a dança, a pintura chinesa e a sua filosofia do traço (da graphiation,

En chemin avec Baudoin não é o primeiro livro em torno da obra de Baudoin, mas onde Dèrriere les fagots era uma espécie de cadernino de ideias, apontamentos, pensamentos do próprio autor, onde Questions du Dessin e La Musique du Dessin se estruturavam quase como tratados, e Entretiens avec Edmond Baudoin (de P. Sohet), Groensteen parte para a estruturação da sua própria fruição e interpretação quase sozinho. Digo “quase” pois o livro apresenta uma parte com selecções dos cadernos de esquiços de Baudoin, de onde retirei o retrato de Crumb (à la Giacometti, que o autor repetidamente cita e sobre o qual trabalha, desde Piero, se não estou em erro), e esta prancha inédita, que revela de uma forma leve as preocupações oníricas que tantas vezes explorou noutros livros, de forma integrada.


A prancha de Salade Niçoise que é citada (e que aqui repesco) neste livro é uma forma de provar a mestria formal de Baudoin, debatida e explicitada por Groensteen. E o diálogo entre as duas personagens, em formação de um amor, deve ser o santo e a senha entre aqueles que se prestam, de coração mis à nu, à leitura e, mais importante, ao diálogo e gozo deste livro e, por ele, da obra de Baudoin: “estás de acordo?”, “sim, estou”.
26 de janeiro de 2009
Kaldirim Destani. Kaldirimlar Kurdunun Hayati. Masist Gül (BAS)

O objecto que nos prende agora a atenção preenche com maior propriedade esse conceito de “outsider art” [ainda que os editores discordem, de uma maneira esclarecedora]. Trata-se de uma autobiografia ficcional (ou melhor dizendo, autoficção), em banda desenhada, de um autor turco chamado Masist Gül (só espero não se tratar de um projecto de alguma forma falso).
Dos seis livros que compõem o conjunto da obra, apenas pude ver/ler cinco deles, escapando-me o 2º (v. nota final). Faz parte do catálogo de uma pequena editora turca, de cariz independente e artístico, chamada BAS, representada em Portugal pela loja de livros de autor e de arte no Porto, a Inc. Naturalmente que não leio turco, mas todas as publicações vêm acompanhadas de pequenos textos em inglês que fazem uma breve apresentação e descrição, e ainda um mais longo que descreve numa prosa escorreita os acontecimentos de cada um dos números. A “leitura” da obra, numa primeira acepção, deve ser entendida no interior desses limites.


O facto de ser uma edição fac-similada (na verdade, uma banda desenhada, mormente clássica, passa sempre por um processo de reprodução que está próximo do gesto do fac-símile, ainda que haja sempre filtros de correcção ou transformação) permite apercebermo-nos de estratégias de construção, que mostram uma segurança no avanço (não há lápis nem rasuras), associada a um método (nalguns casos apenas há os traços a esferográfica negra, como se viessem mais tarde a ser preenchidos pelas cores), a ideia de continuidade e unidade da obra (a numeração continua de número para número, excluindo as capas), e ainda nos dá a ver a abrupta interrupção, tal qual ela se manifesta.

Três dos números que li têm sempre uma primeira página de introdução, em que a imagem nos mostra o narrador no tempo presente, integrando-se numa composição integrada que remete sempre para o relato do passado. A estratégia de tornar visível, ou pelo menos consciente, o presente durante o relato do passado é algo que nos apercebemos ser contínuo, não apenas visualmente, como no texto do narrador. Uma vez que essa voz jamais se refere a “eu” mas a um “nós”, talvez seja possível – mas apenas a sua verdadeira leitura completa o poderia confirmar – adivinharmos um qualquer conceito de quebra psicológica em jogo, entre o protagonista enquanto narrador e o mesmo enquanto personagem do relato central. Não é surpreendente que isso aconteça, e encontramos na banda desenhada contemporânea muitos exemplos análogos: em Satrapi, em David B., em Spiegelman, em Neaud, em Spain...
Há um domínio intuitivo da linguagem da banda desenhada, como se poderá constatar pelas composições de página, e toda a panóplia visual clássica (linhas de movimento, de surpresa, balões, de “efeitos especiais”, etc.). O facto de que cada número recupera a “história anterior” através de um texto em verso, tal como em verso são as falas do protagonista, far-nos-á pensar que Gül teria em conta uma estratégia de publicação, venda e serialização muito clara. Insistimos na ideia de “outsider” no sentido em que não havia qualquer pressão ou nitidez quanto à sua eficácia comercial (o estilo, a mestria, a beleza conformes o normativismo não estão presentes), mas há um desejo claro em integrar-se numa obra a ser apreciada para além da sua mera expressão catártica pessoal.




É possível que Kaldirim Destani não deixe jamais de se tratar de uma obra obscura, mas compensará a sua procura por todos aqueles que não se deixem levar por listas de livros compiladas no seio de normativas mais estreitas (nas quais incorro também, por vezes), e procurem noutros campos, fora de um suposto “centro”, obras outras que contribuem para o entendimento de um qualquer território artístico de uma maneira surpreendente, arrebatadora, e, esperamos, incontornável nesse diálogo maior.
Nota: agradecimentos a Miguel Carneiro, por me ter revelado a existência desta obra. Ainda ao mesmo, assim como a Cristiana Pinto, Carla Filipe e Mauro Cerqueira, pelo empréstimo dos outros números. Esperamos vir a acrescentar mais informações no futuro, depois de um contacto com a editora. Nota final: se o leitor for o proprietário do 2º número, ou conhecer alguém que o tenha, e se possível, agradeceria que me contactasse, para “completar” a “leitura”.
Aproveito para acrescentar uma curtíssima entrevista feita aos editores, Philippine Hoegen and Banu Cennetoglu, com alguns pontos que necessitavam de maior explicação da minha parte e mais tempo para as desenvolver, mas que ficam, por agora, prometidas a outro momento:
Is Gül very known in Turkey as an actor? No, he was (is) not well known, he played mostly minor roles in mostly obscure movies.
Are there any youtube excerpts of his movies? Not that we know (to start with, Youtube is forbidden in turkey!) This would take a search for which we should first compile a list of his movies... But you could check yourself if you can find something.
How did you run into these books? Through a series of coincidences. The end of which was finding Masists brother in Paris and getting his consent to reproduce the books.
Why did you publish this? We are producing/ publishing a series of artists books from Turkey. To support a local production and to generate a discussion on artists books, we invite artists to explore the medium. We decided that it would be interesting to start the series with an existing work. Also, because we are interested in the wide range of forms the artist book can have we liked to start out with this very strong work with it's significant comic-book format. Most important though, it's because we think they are great!
Is there any long tradition of European-like comics in Turkey? What do you mean by European-like? (Do you consider Kaldirim Destani European-like?) There is a tradition of comics, especialy weekly series.
What about autobiographical comics? I honestly don't know. By the way it us not certain if you can call Kaldirim Destani autobiografical as he doesn't state this anywhere.
Would you consider this a little "outsider art"? We prefer not to use these kind of terms. Outsider art is often associated with a kind of naivité which we don't think is applicable to Gül. However, although he did want to Gül never showed any work in an art context (or other context as far as we know) or published any work during his life.
Do you have the originals? Yes.
Would you consider to hold an exhibition of his work in Portugal? It would depend a completely on the circumstances. We recently made a presentation of his work during the Berlin Biennial and before that at Etablissement d'en Face in Brussels. As we are dealing with another artist's work and as he is not alive we are very careful about the context and form in which the work is shown. We look for forms that don't add other layers of meaning, and stays close to the work itself as much as possible.
Another complicating factor is that we have to do this alongside our own practices as artists so time and effort are always a factor.
7 de janeiro de 2009
O Principezinho. Joann Sfar, d'après Saint-Exupéry (Presença)

É bem possível que “S'il vous plaît... dessine-moi un mouton!” seja a frase mais conhecida da novela, aliando de novo a força promissora que existe entre o acto de desenhar e a expressão profunda de testemunho em primeiro e segundo grau (“eu conheci este principezinho” e “eis o que ele me contou”) e de criação de elos emotivos (os desenhos que o piloto vai oferecendo ao principezinho). É esse acto de desdobramento do desenho “infantil”, aos quais a maior parte dos “adultos” fica indiferente, na melhor das hipóteses mas que na esmagadora maioria das vezes não percebe, pura e simplesmente, que Sfar leva a um outro patamar. Depois de existirem várias adaptações à animação, raramente satisfatórias, surge uma versão em banda desenhada. Sfar já havia (antes?, depois?, desconheço) feito uma sessão de “desenho ao vivo” com a leitura deste texto (pode-se ver aqui, e seguir o resto), mostrando, em acto, aquelas outras acções não só previstas mas cumpridas no livro. A criação de um álbum de banda desenhada é apenas a continuação natural dessa abordagem.
Como é indicado pelo subtítulo, não se procurou uma exacta adaptação, ponto por ponto, mas sim sublinhar aquelas características, visuais e de acontecimentos, passíveis de serem contidas num livro de banda desenhada, que mantivesse a mesma candura e universalidade da obra original. Por exemplo, alguns episódios não são incluídos, como o do agulheiro e do comerciante dos capítulos XXII e XXIII, nem o protagonista é representado nos seus primeiros trajes reais. Mas por outro lado, na continuidade do breve exercício da paisagem de África sublimada e vazia de Saint-Exupéry, Sfar acrescentalhe uma dimensão, a da banda desenhada, que desdobra e desenvolve o comentário do narrador sobre a paisagem de África nas três últimas páginas, similares: a primeira com Antoine e o Principezinho junto a ele, a segunda com texto explicativo, a terceira sem ninguém... Estas três páginas devem ser lidas e relidas como uma só unidade que se constrói no tempo (da leitura e da memória), para que ressoe essa mesma verdade poética tão funda, da fundação dos espaços como lugares de amor, amizade, memória.
