A metáfora do território, bastas vezes empregue por nós nestes textos, não passa disso, evidentemente, uma metáfora. Mas uma metáfora serve para criar um argumento de uma forma mais ou menos clara, em termos relativamente simples, um símile que permite aos interlocutores estabelecerem um ponto de contacto e guiarem-se (um conduzindo, o outro sendo conduzido) pela exposição desses mesmos argumentos. As metáforas são específicas a cada cultura, claro está, fazem mesmo parte dos mecanismos que nos permitem perceber o mundo, e é quase impossível erradicar o uso metafórico da linguagem humana, com o risco de a tornar verdadeiramente ininteligível. Para além disso, as metáforas têm uma forma de lançar ramificações (eis outra metáfora) que qualificam e inflexionam a metáfora inicial, ou seja “uma forma como as implicações metafóricas podem caracterizar um sistema coerente de conceitos metafóricos e um sistema coerente correspondente de expressões metafóricas desses conceitos” (cf. Lakoff e Johnson, Metaphors we live by). A metáfora do “mapa”, da “cartografia”, do “território”, permite-nos depois entabular uma argumentação que envolverá a “viagem”, a “estada”, o “transporte” (significado etimológico de metáfora), e até mesmo o “sentirmo-nos perdidos” ou o “souvenir”, enquanto objecto resgatado dessa viagem e desse território. (Mais)
No campo (estão a ver?) da banda desenhada, a metáfora da “terra da imaginação” é algo continuamente em uso, um local de onde os sonhos partem, para onde as formas imaginárias vão no momento da vigília, onde as personagens de todas as ficções se podem encontrar, conviver e até remisturar.
A Stripburger é responsável por uma mão-cheia de projectos que deliniam uma ideia de comunidade transeuropeia de autores contemporâneos de banda desenhada, uma comunidade que vive à margem dos princípios organizadores dos seus mercados mais consolidados, mas que respira uma saudável capacidade produtiva. Já havíamos aqui dado conta de Honey Talks. Greetings from Cartoonia também parte de uma ideia central e oferecida: os autores teriam de elaborar uma pequena história que se regulasse em torno da visita a um qualquer ponto da Europa, não necessariamente uma viagem real e experienciada (se bem que a maioria beba da experiência pessoal, parece-nos), mas que tivesse de incluir, de uma forma ou de outra, alguns objectos-souvenirs dessas mesmas paragens. Alguns dos autores tornam esse processo explícito na própria história (o caso do romeno Matei Branea), mas a esmagadora maioria deles transforma-os ora em totems que agem de forma mágica na história ou se reduzem a objectos que pontuam subtilmente a trama que desenham. Até certo ponto, este é um projecto que se irmanaria com os volumes da Casterman Japon, Corée, Chine e Quelques Jours en France, e ainda o City Stories associado ao festival de Łódz, na Polónia. Mas enquanto aqueles estabeleciam a obrigatoriedade da viagem, o acompanhamento oficioso da perspectiva “turística” e “cultural” dos vistantes aos seus respectivos “lugares visitados”, este outro projecto prefere que todos os autores se pautem pela ficcionalização dessas experiências, a transformação mitológica dos objectos eleitos (desde as ceroulas dos finlandeses aos correspondentes eslavos dos “caretos”, passando pelo Galo de Barcelos, os ovos decorados da Páscoa da Eslovénia, uma marca de chocolates romeno e vodka polaco), e o puro mergulho imaginativo nesse novelo metafóricos das “viagens”, “territórios”, “estadas” e “souvenirs”... Esta ideia é consolidada não apenas nos próprios relatos, mas num mapa que acompanha o livro, cartografando os países visitados da Cartoonia: Fineland, Noway, Slowenia, Eatalley, Rawmania, Polend e Porkugal. Os autores agregados na antologia vêm dos fantasmas reais e apagados desses países imaginários e visitam essas outras sombras mais sólidas, ainda que da espessura do papel em que as desenham.
Como é de esperar, encontramos os autores a encontrarem formas equilibradas de darem continuidade aos seus trabalhos e às obrigações contratuais deste convite: Andrea Bruno oferecendo-nos uma brevíssima narração onírica entre um jovem e um proteu; Bendik Kaltenborn tece uma história cheia de humor e uma moral deslocada; Filipe Abranches apresenta uma narrativa desregrada através do que parecem ser postais ou nódulos de acção espalhados ao longo de um sentido que deveremos adivinhar mais do que interpretar; a autora eslovena Kaja Avberšek transforma a sua passagem por Portugal (ou “Porkugal”) numa novela literalmente de “faca e alguidar”; Jyrki Heikkinen une a dimensão poética e até mística a que nos tem habituado para explorar um estranho ritual que une uma personagem a todos os círculos divinos e demoníacos que lhe são acessíveis.
No interior da metáfora do “território”, aplicada à banda desenhada, Greetings from Cartoonia dilata o “sistema coerente de expressões metafóricas” que lhe estão associadas. O livro serve como diário de viagem, passaporte de brincadeira, e retrato dos imaginários em roda livre. Cria-se a ideia fantasma unificadora de todos estes diversos gestos, compõe-se uma família, ou aquela comunidade que Kant entendia ser a única possível entre os homens, a comunidade estética.
Nota: na continuidade daquela ideia transeuropeia, este é um projecto que associa várias editoras independentes da Europa, sendo a parceira portuguesa a Chili Com Carne, onde encontrarão o livro à venda.
Sem comentários:
Enviar um comentário