28 de fevereiro de 2020

Mar de Aral. José Carlos Fernandes e Roberto Gomes (Comic Heart/G. Floy)


Este livro é, de uma certa forma, a continuidade do plano interrompido das Black Box Stories de José Carlos Fernandes, um conjunto de histórias curtas, talvez em forma de argumento ou talvez de outline, que seriam desenhadas por uma série de artistas. A maior fortuna dessas relações foi aquela alimentada pelos desenhos de Luís Henriques, que dariam três livros bem distintos (Umbrografia, Metrópole, Estrelas). A série acabou por não ter continuação. José Carlos Fernandes abandonou o mundo da criação de banda desenhada, Luís Henriques também. Consta que existiram outras “stories” começadas, mas nenhuma viu o lume da impressão. Até este título. (Mais) 

Mar de Aral reúne 5 contos, oscilando entre as 28, o maior, e as 3, o menor, páginas. A maioria delas inscreve-se claramente no campo do absurdo, género a que JC Fernandes nos habituou na sua obra, onde a atenção para com a vida alienada nas cidades contemporânes se mistura com uma estranha e deslocada nostalgia por um tempo ficcional, ou através das quais se dão respostas a perguntas que não sabíamos sequer querer, no fundo, perguntar.

Outras, como a que dá título ao livro, está mais próxima do fantástico, senão mesmo do maravilhoso. Na verdade, uma primeira parte da histórias recorda-nos por demais o filme de animação “Olho de Peixe” (Riblje Oko), do croata Josko Marusic (de que nos recordámos há pouco graças à exposição dedicada a Vasco Granja na Bedeteca da Amadora, por intervenção de Bruno Caetano), na sua mescla de história de vingança, metamorfose ictio-humana e terror biológico. Quem sabe se não terá havido aqui uma similar experiência indelével com o filme sobre o escritor, e que desova agora nesta história.

Por essa razão – a de pertencer a um género distinto - tem uma eficácia menos sentida no sarcasmo com que poderia estara responder à nossa própria sociedade. Essa, na verdade, é uma das dimensões pela qual Fernandes atingia particularmente o âmago do nosso círculo, e que deixou saudades, mas é também essa dimensão que parece algo desaparecida nestes contos. Ou seja, demonstram ser, com efeito, pequenas pérolas de situações absurdas - “um boi num telhado”, “o homem treina os salmóes para a desova”, ou “os mortos fazem greve” – mas de efeito curto. Anedotas. E, apesar da comevedora “A inauguração do Canal do Panamá”, que parece fazer-nos revisitar os primeiros trabalhos de Fernandes quando participava em fanzines e publicações, com histórias centradas em relações no rés-do-chão da vida, sem panejamentos de fábula ou do estranho, não altera o equilíbrio geral deste volume.

Tal como no caso de Luís Henriques, algo que apontámos na época, também este conjunto de histórias levou Roberto Gomes a procurar em si estratégias bem diversas na criação das imagens apropriadas. O artista altera não apenas o especto cromático, ou alguns pormenores de arte-final, como a própria figuração – ainda que num plano mais limitado do que Henriques – e até da composição das pranchas, algumas das quais com estratégias variegadas. Demonstra-se assim que não se trata de um desenhador tão somente preocupado em “cumprir” a história, mas moldá-la da maneira mais optimizada possível, na sua óptica.

Uma boa ocasião para recordar a força de Fernandes enquanto autor maior do absurdo, ainda que com um poder mais diluído, e descobrir um desenhador cujas potencialidades seguramente se explorarão noutros projectos.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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