
Sem querer generalizar, e sobretudo num campo tão perigoso como o de tomar as nacionalidades como correlação aproblemática de uma certa atitude de criação, podemos no entanto notar que a verve irónica e auto-derisória (o nome “Blotch” é tanto uma corruptela clara de “Blutch” quanto um recurso ao inglês para “mancha”) francesa é bem mais visível e aplicada no que na pesquisa poética do quotidiano do canadiano Seth. Ponto final na generalização. Brava parte dessas atitudes são pertença dos próprios autores, e pouco mais. Mas se nos recordarmos de uma brevíssima peça aqui debatida de Emile Bravo em torno da famosa obra de Jacobs numa versão nazi, ou relembrarmos o Pascin de Sfar, ou atentarmos a algumas das estratégias de Les Aventures d’Hergé, de Bocquet, Fromental e Stanilas, já para não falar da bateria de curtas dos autores de L’Association, os livros dentro dos livros de David B., encontraremos algo dessa ironia muito específica. No que diz respeito à transformação de uma obra de banda desenhada cuja história sirva de plataforma para se auto-pensar, também não estamos propriamente em território inovador, e que pode descender de obras tão longíquas como próximas, onde se encontrará desde Los Profesionales de Gimènez ao Cochquixtia: O Despertar de Diniz Conefrey.
As capas a cores dos álbuns anteriores de Blotch. Oeuvres Complètes, e a presente, aproximam-no, novamente, do Pascin, de Sfar, quer no fundo como na forma, e faz-nos adivinhar um Blutch capaz de reinventar um artista, Blotch, que não tivesse trabalhado em revistas como a Le Rire ou a Charivari (ou a Fluide Glacial, adiantada no seu universo ficcional, como se tivesse existido na Paris dos anos 30), mas antes num trabalho de ilustração mais “levantado”, em termos de apreciação social, como a de romances, clássicos da literatura, salões... No entanto, uma abordagem mais profunda e com saberes (que não possuo) sobre essas revistas republicanas, cosmopolitas e dadas a um entendimento largo do que significa a cultura e as artes, faria o entendimento do contraponto dessa fictícia Fluide Glacial conservadora mais notável. Já para não falar das associações à leitura de todas as revistas humorísticas ilustradas a uma certa tendência politizada “de esquerda” da época. Pois este Blotch é de um reaccionarismo e arrogância atrozes que nos faz condierá-lo uma personagem execrável. Todavia, é precisamente esse retrato o que nos permite encontrar o caminho para a auto-derisão, uma forma muito subtil de desenhar a caricatura de um certo posicionamento francês, nacionalista e xenófobo, cheio de si e cego à experiência da alteridade. Cada episódio (que presumo tenha sido apresentado individualmente na revista) é uma pequena parcela, uma história completa, da vida desse artista, que agregadas e ordenadas, nos oferecem um percurso quase completo. Existem memórias que podem ser falsas, ou pelo menos facciosas, já que parecem ser apresentadas (mesmo visualmente) apenas sob a perspectiva do próprio Blotch, sempre a seu favor, em gritante contraste com o que cnsegue desenvolver no seu presente: um uso curioso da capacidade da banda desenhada em apresentar visualmente aquilo a que nós apenas temos acesso verbalmente, e criando um paradoxo moral desta personagem.

Se em Pascin Sfar fazia-se valer das várias técnicas e abordagens matéricas do desenho para fazer passar a fluidez das sensações e experiências do pintor protagonista, Blotch recria uma Paris la foule com o seu próprio desenho, constante e legível, criando apenas bolsas de diferença, e de transporte temporal, através dos cartoons do seu protagonista e dos seus colegas, amigos ou inimigos. A “obra completa” de Blotch, portanto, resumir-se-á à meia-dúzia (15, para ser exacto) de cartoons que são apresentados no interior desta ficção. Esta é uma estratégia idêntica àquela de Seth em It’s a good life if you don’t weaken, em que se perseguia o autor-fantasma Kalo, se bem que o nível de diferenciação fosse, no autor canadiano, mais esbatido do que no francês. Para ele seguimos.
Nota final: por uma razão tecno-temperamental, o scanner não funciona, e todas as imagens foram retiradas aqui e dali, na internet.