Um dos melhores possíveis exercícios, a meu ver, na contínua e aturada tarefa de leitura da banda desenhada, para a sua abordagem crítica, é a aproximação de duas obras díspares através de elementos-chave que possam ter em comum. Esta é, de quando em vez, uma proposta perseguida no lerbd. As obras aqui aproximadas são os últimos livros dos autores francês Blutch e do canadiano Seth, com, respectivamente, Blotch. Oeuvres Complètes e George Sprott (em rigor, Blotch é a reedição em um só volume de trabalhos curtos da Fluide Glacial iniciados em 1999, mas agora surge-nos enquanto volume único, reorganizado, e até mesmo premiado; o livro de Seth foi também alvo da chamada “pré-publicação”, na secção “The Funny Pages”, do New York Times Magazine (disponível em pdfs, aqui). O material comum em questão é a seguinte: tratam-se de tentativas biografias sobre dois artistas ou homens do entretenimento, as suas relações com os pares e o mundo, e as suas repercussões na linguagem artística em que operam, ao mesmo tempo que desenham um retrato dos seus tempos particulares, os seus imaginários, os ares que os atravessavam e, ainda, constituem uma espécie de espelho distorcido do tempo actual, e até mesmo das pessoas dos seus criadores reais. E, claro está, tratarem-se de biografias de pessoas que jamais existiram. A comparação, porém, esgotar-se-á aí...
Sem querer generalizar, e sobretudo num campo tão perigoso como o de tomar as nacionalidades como correlação aproblemática de uma certa atitude de criação, podemos no entanto notar que a verve irónica e auto-derisória (o nome “Blotch” é tanto uma corruptela clara de “Blutch” quanto um recurso ao inglês para “mancha”) francesa é bem mais visível e aplicada no que na pesquisa poética do quotidiano do canadiano Seth. Ponto final na generalização. Brava parte dessas atitudes são pertença dos próprios autores, e pouco mais. Mas se nos recordarmos de uma brevíssima peça aqui debatida de Emile Bravo em torno da famosa obra de Jacobs numa versão nazi, ou relembrarmos o Pascin de Sfar, ou atentarmos a algumas das estratégias de Les Aventures d’Hergé, de Bocquet, Fromental e Stanilas, já para não falar da bateria de curtas dos autores de L’Association, os livros dentro dos livros de David B., encontraremos algo dessa ironia muito específica. No que diz respeito à transformação de uma obra de banda desenhada cuja história sirva de plataforma para se auto-pensar, também não estamos propriamente em território inovador, e que pode descender de obras tão longíquas como próximas, onde se encontrará desde Los Profesionales de Gimènez ao Cochquixtia: O Despertar de Diniz Conefrey.
As capas a cores dos álbuns anteriores de Blotch. Oeuvres Complètes, e a presente, aproximam-no, novamente, do Pascin, de Sfar, quer no fundo como na forma, e faz-nos adivinhar um Blutch capaz de reinventar um artista, Blotch, que não tivesse trabalhado em revistas como a Le Rire ou a Charivari (ou a Fluide Glacial, adiantada no seu universo ficcional, como se tivesse existido na Paris dos anos 30), mas antes num trabalho de ilustração mais “levantado”, em termos de apreciação social, como a de romances, clássicos da literatura, salões... No entanto, uma abordagem mais profunda e com saberes (que não possuo) sobre essas revistas republicanas, cosmopolitas e dadas a um entendimento largo do que significa a cultura e as artes, faria o entendimento do contraponto dessa fictícia Fluide Glacial conservadora mais notável. Já para não falar das associações à leitura de todas as revistas humorísticas ilustradas a uma certa tendência politizada “de esquerda” da época. Pois este Blotch é de um reaccionarismo e arrogância atrozes que nos faz condierá-lo uma personagem execrável. Todavia, é precisamente esse retrato o que nos permite encontrar o caminho para a auto-derisão, uma forma muito subtil de desenhar a caricatura de um certo posicionamento francês, nacionalista e xenófobo, cheio de si e cego à experiência da alteridade. Cada episódio (que presumo tenha sido apresentado individualmente na revista) é uma pequena parcela, uma história completa, da vida desse artista, que agregadas e ordenadas, nos oferecem um percurso quase completo. Existem memórias que podem ser falsas, ou pelo menos facciosas, já que parecem ser apresentadas (mesmo visualmente) apenas sob a perspectiva do próprio Blotch, sempre a seu favor, em gritante contraste com o que cnsegue desenvolver no seu presente: um uso curioso da capacidade da banda desenhada em apresentar visualmente aquilo a que nós apenas temos acesso verbalmente, e criando um paradoxo moral desta personagem.
Em torno deste Blotch, encontraremos outras personagens, que não são mais do que decalques de autores reais, colegas e amigos de Blutch, como Gouttelette (Michel Gaudelette), Larssinet (Manu Larcenet) e Goussein (Goosens), passando ainda pela colaboração de Thiriet para criar os gags do arquirival de Blotch, Jean Bonnot. Há ainda uma participação de um jovem autor belga, Georges Rémi, que mostrando a sua personagen “Tintin”, leva ao riso de desprezo dos artistas da falsa Fluide antiga (episódio na íntegra aqui). Há ainda toda uma procissão de nomes sonantes e famosos de personalidades que passaram pela Paris dos anos 20 e 30, usualmente passando “ao lado” de Blotch, que falha redondamente no que diz respeito ao desenvolvimento da herança do futuro. A personalidade de Blotch, racista, machista, nacionalista, quasi-fascista, é uma espécie, como vimos, de auto-caricatura de Blutch ele-mesmo, sem dúvida, mas quem sabe talvez do próprio francês mediano (que digo eu?, do ser humano mediano!). Terror em ponto pequeno através de humor em ponto grande.
Se em Pascin Sfar fazia-se valer das várias técnicas e abordagens matéricas do desenho para fazer passar a fluidez das sensações e experiências do pintor protagonista, Blotch recria uma Paris la foule com o seu próprio desenho, constante e legível, criando apenas bolsas de diferença, e de transporte temporal, através dos cartoons do seu protagonista e dos seus colegas, amigos ou inimigos. A “obra completa” de Blotch, portanto, resumir-se-á à meia-dúzia (15, para ser exacto) de cartoons que são apresentados no interior desta ficção. Esta é uma estratégia idêntica àquela de Seth em It’s a good life if you don’t weaken, em que se perseguia o autor-fantasma Kalo, se bem que o nível de diferenciação fosse, no autor canadiano, mais esbatido do que no francês. Para ele seguimos.
Nota final: por uma razão tecno-temperamental, o scanner não funciona, e todas as imagens foram retiradas aqui e dali, na internet.
21 de julho de 2009
16 de julho de 2009
Uma palavra sobre super-heróis. AAVV (Várias editoras)
(Aviso à navegação: texto looongo.)
Julgo não estar muito enganado ao pensar que quem acompanhe este blog encontra algum grau de diversidade, nunca completo, muito menos exaustivo, mas suficientemente amplo para notar que o campo das leituras não se cinge a este ou aquele género, território, tipologia, ou caminho. Um dos géneros ausentes, tipicamente, é aquele dos super-heróis (mas também o western, o da high-fantasy), ele mesmo um género que alberga toda uma outra panóplia de diferenciações, escalas, sub-géneros, cruzamentos e forças. Poderá mesmo até dar-se a impressão de que não leio ou cultivo esse género (houve fases, leitura infantil, juvenil, abandono e retorno). Isso não é totalmente verdade, mas o facto de escrever pouco sobre os títulos que acompanho deve-se a uma circunstância muito específica, desde logo às características incontornáveis da esmagadora maioria da produção desse género. O que se segue não é um estudo profundo, antes um conjunto de notas de leitura de títulos que me interessaram por uma ou outra razão relacionados com este género. (Mais)
Julgo não estar muito enganado ao pensar que quem acompanhe este blog encontra algum grau de diversidade, nunca completo, muito menos exaustivo, mas suficientemente amplo para notar que o campo das leituras não se cinge a este ou aquele género, território, tipologia, ou caminho. Um dos géneros ausentes, tipicamente, é aquele dos super-heróis (mas também o western, o da high-fantasy), ele mesmo um género que alberga toda uma outra panóplia de diferenciações, escalas, sub-géneros, cruzamentos e forças. Poderá mesmo até dar-se a impressão de que não leio ou cultivo esse género (houve fases, leitura infantil, juvenil, abandono e retorno). Isso não é totalmente verdade, mas o facto de escrever pouco sobre os títulos que acompanho deve-se a uma circunstância muito específica, desde logo às características incontornáveis da esmagadora maioria da produção desse género. O que se segue não é um estudo profundo, antes um conjunto de notas de leitura de títulos que me interessaram por uma ou outra razão relacionados com este género. (Mais)
12 de julho de 2009
SuccoAcido: The Eternal Smile. Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim (First Second)
Apesar de ter anunciado este livro no próprio lerbd, o seu texto acabou por transitar para o SuccoAcido, o qual podem ler aqui.
Trata-se de um livro escrito por Gene Luen Yang, autor de American Born Chinese, e desenhado por Derek Kirk Kim, que havia criado Same Difference and Other Stories. A junção dos dois parece ser uma continuação natural dos trabalhos individuais, com uma pequena inflexão.
Nota: agradecimentos à editora, pela pessoa de Gina Gagliano, pelo envio do livro.
Fiquem aqui com mais uma imagem, que não foi publicada no site.
Trata-se de um livro escrito por Gene Luen Yang, autor de American Born Chinese, e desenhado por Derek Kirk Kim, que havia criado Same Difference and Other Stories. A junção dos dois parece ser uma continuação natural dos trabalhos individuais, com uma pequena inflexão.
Nota: agradecimentos à editora, pela pessoa de Gina Gagliano, pelo envio do livro.
Fiquem aqui com mais uma imagem, que não foi publicada no site.
8 de julho de 2009
Bottomless Belly Button. Dash Shaw (Fantagraphics)
De novo, o inescrutável abismo das famílias...
O carácter fragmentário da banda desenhada é explorado por Shaw de um modo que, não sendo propriamente inusitado (lembremo-nos de Richard McGuire, de Warren Craghead III, e de muitos outros “experimentalistas”, ou recuemos até ao caráter dissipado das promessas narrativas de tantos exemplos, de Hokusai a Masereel), torna-se plenamente explorado e integrado na experiência narrativa – quer do ponto de vista da sua construção semiótica quer do da sua percepção, leitura, interpretação. O autor faz-nos perseguir uma linha condutora central, aquilo a que usualmente chamamos de “história”, absolutamente clara: os três filhos adultos da família Loony (já de si, explicativo) reunem-se com os seus velhos pais que, após quarenta anos de casamento, anunciam o seu divórcio. De modos diversos, os filhos tentam entender o impacto dessa notícia, não só em relação às causas e às consequências sobre os próprios pais como também sobre eles mesmos, aproveitando esse retorno às origens para uma exploração das memórias, da expressão das suas personalidades, da perseguição da conquista das suas próprias felicidades. O autor providencia-nos com sucessivas e diversas camadas de informação não-narrativa: desde as plantas das casas às cartas dos pais quando jovens, passando por “retratos” do passado de todas as personagens a várias classes de tipologias, diagramas, esquemas e códigos.
Trata-se, portanto, de uma espécie de desdobramento, em que cada um dos novos elementos, por mais incorpóreos e inócuos que pareçam ser (que importa ao drama familiar os tipos de areia que existem? Ou as formas que a água assume?), contribuem para o significado total e profundo da obra (as relações familiares assumem também elas muitas formas, apesar do elemento material primário ser o mesmo). O livro tem mais de 700 páginas, e a “fábula” ou “história” pode parecer muito simples (e, no fundo, é-o), o que nos obriga a considerar todos os factores da sua construção como modo de complexificação e adensamento do seu espírito. Nesse sentido, Shaw inscreve a sua obra numa tradição menos melodramática (de que Eisner é um expoente, mas que passa por Spiegelman e Bechdel, Craig Thompson e outros) do que contemporânea (Chris Ware é o primeiro exemplo a vir à mente, mas arrisco-me a apontar a exemplos cinematográficos, mais do que de qualquer outra área da criação, sobretudo uma linha de cinema norte-americano recente que vai desde a Happiness, de Todd Solondz, Donnie Darko, de Richard Kelly, ou Little Miss Sunshine, de Dayton e Faris). Esta é uma aposta da Fantagraphics que a coloca novamente (não esquecendo a antologia Mome) na senda de descoberta de novos autores fortemente individualizados (o que nem sempre acontecia, como se verifica, por exemplo, com o livro de Miss Lasko-Gross, por exemplo).
É verdade que o estilo do desenho parece fraco, mas adequa-se plasticamente ao que é contado e construído. Não há qualquer desejo de imitação aqui de Chris Ware em termos figurativos ou de estrutura, mas é como se fosse “depois de Ware”, isto é, na continuidade das possibilidades estruturais e narrativas que foram estreadas e exploradas por Ware que Shaw desenvolve este seu maior trabalho. Há um balanço resistente entre a esquematização das figuras (sobretudo do filho mais novo Peter, como um sapo, quiçá auto-ficção velada do autor?) e o pormenor dos espaços e objectos, mas a expressividade simples e concisa de tudo torna-se no exacto e preciso veículo do que o autor pretende transmitir.
Muito se escreveu sobre o “código secreto” das cartas dos pais, mas é tão nítido que não merce sequer discorrer sobre ele. Maior “mistério” (género o qual se encontra sublinhado na lombada do livro, como sendo um desejo do autor em que nele seja inscrito BBB) são os secretos corredores e divisões no interior da casa, que parecem esconder porões de tesouros, segredos inomináveis, que mais não são do que todas as memórias impartilháveis de cada um, apesar de pertencermos à mesma família... Que sabemos nós mesmo dos nossos pais? Que sabem verdadeiramente os pais dos filhos? A independência e autonomia individual passa pela ignorância mútua.
Há trabalhos de composição de página simples, mas notáveis pelo seu rigor retórico. Por exemplo, há toda uma série de sequências internas, diálogos, em que a última página (dessa sequência em particular), à direita, apresenta apenas umas quantas vinhetas, deixando o resto em branco. É uma maneira muito curiosa e feliz de dar a entender duas coisas: em primeiro lugar, a impossibilidade de dar a ver tudo o que pode ocorrer num universo ficcional/narrativo, deixando espaço ao leitor quer a uma ideia de continuidade (“preenche tu mesmo”) quer a um apartamento dessa partilha (“nada mais saberás”); em segundo, que mesmo não tendo nós, leitores, filhos, membros de uma família, acesso a tudo o que ocorre na vida das pessoas que nos rodeiam, temos ainda assim o direito, senão mesmo o dever, de lançarmos elos de manutenção da relação por mais desprovido de informação que seja o espaço onde os podemos lançar... o “resto” da página em branco surge assim tanto enquanto território abissal, intransponível, como a própria obrigatoriedade no nosso esforço em preenchê-la.
Shaw sublinha tanto a possibilidade desses elos como a impossibilidade de compreensão. Nesta dupla página que apresentamos, já sabido do afastamento progressivo dos pais, e até mesmo atingido um certo grau de compreensão, a filha Claire chega “tarde demais” à cozinha onde os pais preparam o jantar. Que vê ela? Não os dois momentos na prancha anterior em que os pais se aproximam e colaboram, mas o momento exacto do afastamento. A percepção de Claire da relação dos pais sai assim desiquilibrada. Este tipo de estratégias é contínuo no livro de Shaw. O livro é bem mais complexo do que aparenta ser, sobretudo, e voltando atrás, pelos elementos extra-narrativos e as sub-tramas não resolvidas de toda a novela. Seguramente que se tornará uma daquelas obras cuja fama e crescimento se fará com o tempo, à medida que sucessivas leituras e interpretações forem acumuladas. Não é bem um roman à la clef, se bem que existam pistas para podermos considerar Bottomless Belly Button como auto-ficção, autobiografia disfarçada, ou outro género contíguo. É antes uma novela em banda desenhada que abre sucessivos abismos e apresenta inúmeras chaves, e cujas combinações entre si aparentam algum grau de infinitude. Contudo, só a leitura, isto é, a aproximação desta chave àquele abismo, ou aqueloutra a este, poderá mapear essa ideia.
O carácter fragmentário da banda desenhada é explorado por Shaw de um modo que, não sendo propriamente inusitado (lembremo-nos de Richard McGuire, de Warren Craghead III, e de muitos outros “experimentalistas”, ou recuemos até ao caráter dissipado das promessas narrativas de tantos exemplos, de Hokusai a Masereel), torna-se plenamente explorado e integrado na experiência narrativa – quer do ponto de vista da sua construção semiótica quer do da sua percepção, leitura, interpretação. O autor faz-nos perseguir uma linha condutora central, aquilo a que usualmente chamamos de “história”, absolutamente clara: os três filhos adultos da família Loony (já de si, explicativo) reunem-se com os seus velhos pais que, após quarenta anos de casamento, anunciam o seu divórcio. De modos diversos, os filhos tentam entender o impacto dessa notícia, não só em relação às causas e às consequências sobre os próprios pais como também sobre eles mesmos, aproveitando esse retorno às origens para uma exploração das memórias, da expressão das suas personalidades, da perseguição da conquista das suas próprias felicidades. O autor providencia-nos com sucessivas e diversas camadas de informação não-narrativa: desde as plantas das casas às cartas dos pais quando jovens, passando por “retratos” do passado de todas as personagens a várias classes de tipologias, diagramas, esquemas e códigos.
Trata-se, portanto, de uma espécie de desdobramento, em que cada um dos novos elementos, por mais incorpóreos e inócuos que pareçam ser (que importa ao drama familiar os tipos de areia que existem? Ou as formas que a água assume?), contribuem para o significado total e profundo da obra (as relações familiares assumem também elas muitas formas, apesar do elemento material primário ser o mesmo). O livro tem mais de 700 páginas, e a “fábula” ou “história” pode parecer muito simples (e, no fundo, é-o), o que nos obriga a considerar todos os factores da sua construção como modo de complexificação e adensamento do seu espírito. Nesse sentido, Shaw inscreve a sua obra numa tradição menos melodramática (de que Eisner é um expoente, mas que passa por Spiegelman e Bechdel, Craig Thompson e outros) do que contemporânea (Chris Ware é o primeiro exemplo a vir à mente, mas arrisco-me a apontar a exemplos cinematográficos, mais do que de qualquer outra área da criação, sobretudo uma linha de cinema norte-americano recente que vai desde a Happiness, de Todd Solondz, Donnie Darko, de Richard Kelly, ou Little Miss Sunshine, de Dayton e Faris). Esta é uma aposta da Fantagraphics que a coloca novamente (não esquecendo a antologia Mome) na senda de descoberta de novos autores fortemente individualizados (o que nem sempre acontecia, como se verifica, por exemplo, com o livro de Miss Lasko-Gross, por exemplo).
É verdade que o estilo do desenho parece fraco, mas adequa-se plasticamente ao que é contado e construído. Não há qualquer desejo de imitação aqui de Chris Ware em termos figurativos ou de estrutura, mas é como se fosse “depois de Ware”, isto é, na continuidade das possibilidades estruturais e narrativas que foram estreadas e exploradas por Ware que Shaw desenvolve este seu maior trabalho. Há um balanço resistente entre a esquematização das figuras (sobretudo do filho mais novo Peter, como um sapo, quiçá auto-ficção velada do autor?) e o pormenor dos espaços e objectos, mas a expressividade simples e concisa de tudo torna-se no exacto e preciso veículo do que o autor pretende transmitir.
Muito se escreveu sobre o “código secreto” das cartas dos pais, mas é tão nítido que não merce sequer discorrer sobre ele. Maior “mistério” (género o qual se encontra sublinhado na lombada do livro, como sendo um desejo do autor em que nele seja inscrito BBB) são os secretos corredores e divisões no interior da casa, que parecem esconder porões de tesouros, segredos inomináveis, que mais não são do que todas as memórias impartilháveis de cada um, apesar de pertencermos à mesma família... Que sabemos nós mesmo dos nossos pais? Que sabem verdadeiramente os pais dos filhos? A independência e autonomia individual passa pela ignorância mútua.
Há trabalhos de composição de página simples, mas notáveis pelo seu rigor retórico. Por exemplo, há toda uma série de sequências internas, diálogos, em que a última página (dessa sequência em particular), à direita, apresenta apenas umas quantas vinhetas, deixando o resto em branco. É uma maneira muito curiosa e feliz de dar a entender duas coisas: em primeiro lugar, a impossibilidade de dar a ver tudo o que pode ocorrer num universo ficcional/narrativo, deixando espaço ao leitor quer a uma ideia de continuidade (“preenche tu mesmo”) quer a um apartamento dessa partilha (“nada mais saberás”); em segundo, que mesmo não tendo nós, leitores, filhos, membros de uma família, acesso a tudo o que ocorre na vida das pessoas que nos rodeiam, temos ainda assim o direito, senão mesmo o dever, de lançarmos elos de manutenção da relação por mais desprovido de informação que seja o espaço onde os podemos lançar... o “resto” da página em branco surge assim tanto enquanto território abissal, intransponível, como a própria obrigatoriedade no nosso esforço em preenchê-la.
Shaw sublinha tanto a possibilidade desses elos como a impossibilidade de compreensão. Nesta dupla página que apresentamos, já sabido do afastamento progressivo dos pais, e até mesmo atingido um certo grau de compreensão, a filha Claire chega “tarde demais” à cozinha onde os pais preparam o jantar. Que vê ela? Não os dois momentos na prancha anterior em que os pais se aproximam e colaboram, mas o momento exacto do afastamento. A percepção de Claire da relação dos pais sai assim desiquilibrada. Este tipo de estratégias é contínuo no livro de Shaw. O livro é bem mais complexo do que aparenta ser, sobretudo, e voltando atrás, pelos elementos extra-narrativos e as sub-tramas não resolvidas de toda a novela. Seguramente que se tornará uma daquelas obras cuja fama e crescimento se fará com o tempo, à medida que sucessivas leituras e interpretações forem acumuladas. Não é bem um roman à la clef, se bem que existam pistas para podermos considerar Bottomless Belly Button como auto-ficção, autobiografia disfarçada, ou outro género contíguo. É antes uma novela em banda desenhada que abre sucessivos abismos e apresenta inúmeras chaves, e cujas combinações entre si aparentam algum grau de infinitude. Contudo, só a leitura, isto é, a aproximação desta chave àquele abismo, ou aqueloutra a este, poderá mapear essa ideia.
A fórmula da felicidade 1. Nuno Duarte e Osvaldo Medina, com Ana Freitas (Kingpin Books)
É curioso escutar-se sempre a expressão ou fórmula “família disfuncional”, para dar conta dos problemas ou crises que atravessam os membros desses agregados. Todavia, desconheço a existência real de famílias “funcionais”, e estou mesmo em crer que a própria unidade “família” serve para a construção e instalação de programas de disfuncionalidade” sobre os seus membros, absolutamente necessários para o desenvolvimentos dos mesmos integrados nesse terrível e inevitável caos que é a própria existência humana.
Dois livros recentemente lidos tratam precisamente dessas criaturas. Um é Bottomless Belly Button, do norte-americano Dash Shaw, o outro A fórmula da felicidade.
Uma vez que este é o primeiro volume de uma dilogia, e acreditamos que o segundo volume trará não só o desenlace daquilo que se já se promete como também apresentará seguramente inflexões e maior intricação, não me demorarei sobre a sua apreciação. Nuno Duarte já se havia ambientado ao mundo da banda desenhada, em primeiro lugar com Paris Morreu e depois com Virgin’s Trip, ambas as vezes com ou por Pepedelrey. Sendo argmentista de um punhado de projectos televisivos, sobretudo ficcionais, e de projectos de animação em curso, não haverá surpresa alguma em notar na sua capacidade de apresentar uma construção equilibrada e com um ritmo clássico e legível. Vitor, um pequeno génio matemático nascido algures num Alentejo rural, atravessa a turbulenta vida que lhe foi proporcionada pela mãe “despassarada”, refugiando-se nos números como escape e modo de entender o mundo. Na verdade, é a mãe quem lhe oferece um símile para o entender, sem se aperceber que com ele despertará uma senda única no seu filho; a história de “origem” que abre o livro é uma trouvaille magnífica. Depois seguem-se os adensamentos típicos da ficção, com um crescente naipe de personagens, relativamente esquemáticas e tipificadas, que nos levam quer a uma rápida cartografia de relações quer à clareza total do seu significado para o molde da personalidade de Vitor. Há um caso ou outro em que os episódios são demasiado curtos, digamos assim (o interesseiro Abraão e a sua proposta emerge e desvai-se em duas vinhetas, mas talvez venham a ser desenvolvidos no próximo volume; a discussão que leva à agressão de Vitor a Cláudia abdica das palavras, colocando responsabilidades na expressividade do corpo e nos eventos que não são totalmente claros e até se revelam estranhos ao que havia sido construído até ao momento), mas no cômputo geral, a estrutura e o ritmo entre a narração supra-diegética de Vitor e o que nos é revelado “em directo” constroem uma trama viva. Um aspecto curioso é a integração de pequenos momentos e pérolas de referências de uma cultura popular que pertencerá a toda uma geração de portugueses, como é raro suceder na ficção nacional, quer a de banda desenhada quer a literária. O papel da televisão, aqui, torna-se factor de adensamento de referências, de uma rede na qual nos instalamos com algum conforto (se correspondermos a essas mesmas referências, claro está). Um apêndice final no livro do matemático Filipe Oliveira explica a origem e desenvolvimento da fórmula matemática que dá nome e centro ao livro, mas suscita-me uma dúvida. Que o recurso a uma boa equação matemática possa suscitar uma empolgante trama narrativa, depois de Good Will Hunting ou de Π/Pi, não há dúvida, mas tratando-se de algo maravilhoso (no sentido literário deste termo) neste livro, será que a sua apresentação frontal é a melhor opção? Claro que o contrário seria empregar mais uma vez a fórmula de um McGuffin, o que seria mais clássico ainda... Todavia, devendo confessar desde já a minha inultrapassável incapacidade em sequer ler o primeiro termo da equação, terei de aguardar por perspectivas mais informadas e sapientes.
Osvaldo Medina parece entregue a um caso sério, ainda que protelado, em termos de produção de banda desenhada. Para além de outras experiências mais ou menos (in)visíveis (tiras de um humor duvidoso, um projecto que não viu a luz do dia), e animações, num curto espaço de tempo Medina entregou-se à produção de uma mão-cheia de livros. A tua carne é má, com Pepedelrey (cuja edição se encontra atrasada, mas prometida, após a sua exposição em Beja), este livro e o seu segundo volume, já em produção, e Mucha, escrito por David Soares, também já anunciado pela Kingpin. A sua capacidade de trabalho é a um só tempo reconhecida e admirada como assegurada pelos seus colaboradores, aqui nas cores, ali nas artes-finais. Assim sendo, não é de somenos notar nas pequenas diferenças estilísticas de projecto para projecto, que tanto têm a ver com a nova aprendizagem desta outra linguagem estática e dinâmica ao mesmo tempo da banda desenhada, como com a flexibilidade e adaptabilidade plástica do autor. As imagens criadas para A fórmula... parecem oscilar entre o estudo ou esboço e uma mais decisiva criação, mas as cores de Ana Freitas permitem um peso e presença das imagens mais conciso. No entanto, essa qualidade de apontamento, de esboço, tem tudo a ver com a trama em construção da vida de Vitor, permanentemente adiada na sua resolução final.
É-me totalmente desconhecido se a opção por utilizar animais neste livro, como se de uma fábula se tratasse, parte do escritor ou do artista. Todavia, não se trata de uma fábula de modo algum, já que estas são verdadeiras personagens, sem quaisquer desejos de serem tomadas como exempla ou modelos de comportamento geral, não exercem qualquer característica relativa ao animal cujos traços fisionómicos mimam, e não constroem (ou assim parece ser) um universo passível de aplicação ampla (o que ocorre nas verdadeiras fábulas, de Esopo a Orwell). Colocamo-nos a questão da mais-valia dessa decisão representacional, para além de um certo virtuosismo. Penso que a resposta não é simples, mas terá a ver com o mesmo princípio que opera sobre as Alices de Carroll: o intuito tem menos a ver com procurar no comportamento animal características dos humanos do que olhar os humanos e brincar com o exercício de identificar o pequeno totem animal pelo qual se pautam. Exercício que seguramente todos fizeram nas escolas (e noutros locais!), vendo uma cegonha na professora de Geografia, uma raposa no de Matemática, um hipopótamo na contínua da entrada.... Esperemos pelo segundo, com avidez.
Dois livros recentemente lidos tratam precisamente dessas criaturas. Um é Bottomless Belly Button, do norte-americano Dash Shaw, o outro A fórmula da felicidade.
Uma vez que este é o primeiro volume de uma dilogia, e acreditamos que o segundo volume trará não só o desenlace daquilo que se já se promete como também apresentará seguramente inflexões e maior intricação, não me demorarei sobre a sua apreciação. Nuno Duarte já se havia ambientado ao mundo da banda desenhada, em primeiro lugar com Paris Morreu e depois com Virgin’s Trip, ambas as vezes com ou por Pepedelrey. Sendo argmentista de um punhado de projectos televisivos, sobretudo ficcionais, e de projectos de animação em curso, não haverá surpresa alguma em notar na sua capacidade de apresentar uma construção equilibrada e com um ritmo clássico e legível. Vitor, um pequeno génio matemático nascido algures num Alentejo rural, atravessa a turbulenta vida que lhe foi proporcionada pela mãe “despassarada”, refugiando-se nos números como escape e modo de entender o mundo. Na verdade, é a mãe quem lhe oferece um símile para o entender, sem se aperceber que com ele despertará uma senda única no seu filho; a história de “origem” que abre o livro é uma trouvaille magnífica. Depois seguem-se os adensamentos típicos da ficção, com um crescente naipe de personagens, relativamente esquemáticas e tipificadas, que nos levam quer a uma rápida cartografia de relações quer à clareza total do seu significado para o molde da personalidade de Vitor. Há um caso ou outro em que os episódios são demasiado curtos, digamos assim (o interesseiro Abraão e a sua proposta emerge e desvai-se em duas vinhetas, mas talvez venham a ser desenvolvidos no próximo volume; a discussão que leva à agressão de Vitor a Cláudia abdica das palavras, colocando responsabilidades na expressividade do corpo e nos eventos que não são totalmente claros e até se revelam estranhos ao que havia sido construído até ao momento), mas no cômputo geral, a estrutura e o ritmo entre a narração supra-diegética de Vitor e o que nos é revelado “em directo” constroem uma trama viva. Um aspecto curioso é a integração de pequenos momentos e pérolas de referências de uma cultura popular que pertencerá a toda uma geração de portugueses, como é raro suceder na ficção nacional, quer a de banda desenhada quer a literária. O papel da televisão, aqui, torna-se factor de adensamento de referências, de uma rede na qual nos instalamos com algum conforto (se correspondermos a essas mesmas referências, claro está). Um apêndice final no livro do matemático Filipe Oliveira explica a origem e desenvolvimento da fórmula matemática que dá nome e centro ao livro, mas suscita-me uma dúvida. Que o recurso a uma boa equação matemática possa suscitar uma empolgante trama narrativa, depois de Good Will Hunting ou de Π/Pi, não há dúvida, mas tratando-se de algo maravilhoso (no sentido literário deste termo) neste livro, será que a sua apresentação frontal é a melhor opção? Claro que o contrário seria empregar mais uma vez a fórmula de um McGuffin, o que seria mais clássico ainda... Todavia, devendo confessar desde já a minha inultrapassável incapacidade em sequer ler o primeiro termo da equação, terei de aguardar por perspectivas mais informadas e sapientes.
Osvaldo Medina parece entregue a um caso sério, ainda que protelado, em termos de produção de banda desenhada. Para além de outras experiências mais ou menos (in)visíveis (tiras de um humor duvidoso, um projecto que não viu a luz do dia), e animações, num curto espaço de tempo Medina entregou-se à produção de uma mão-cheia de livros. A tua carne é má, com Pepedelrey (cuja edição se encontra atrasada, mas prometida, após a sua exposição em Beja), este livro e o seu segundo volume, já em produção, e Mucha, escrito por David Soares, também já anunciado pela Kingpin. A sua capacidade de trabalho é a um só tempo reconhecida e admirada como assegurada pelos seus colaboradores, aqui nas cores, ali nas artes-finais. Assim sendo, não é de somenos notar nas pequenas diferenças estilísticas de projecto para projecto, que tanto têm a ver com a nova aprendizagem desta outra linguagem estática e dinâmica ao mesmo tempo da banda desenhada, como com a flexibilidade e adaptabilidade plástica do autor. As imagens criadas para A fórmula... parecem oscilar entre o estudo ou esboço e uma mais decisiva criação, mas as cores de Ana Freitas permitem um peso e presença das imagens mais conciso. No entanto, essa qualidade de apontamento, de esboço, tem tudo a ver com a trama em construção da vida de Vitor, permanentemente adiada na sua resolução final.
É-me totalmente desconhecido se a opção por utilizar animais neste livro, como se de uma fábula se tratasse, parte do escritor ou do artista. Todavia, não se trata de uma fábula de modo algum, já que estas são verdadeiras personagens, sem quaisquer desejos de serem tomadas como exempla ou modelos de comportamento geral, não exercem qualquer característica relativa ao animal cujos traços fisionómicos mimam, e não constroem (ou assim parece ser) um universo passível de aplicação ampla (o que ocorre nas verdadeiras fábulas, de Esopo a Orwell). Colocamo-nos a questão da mais-valia dessa decisão representacional, para além de um certo virtuosismo. Penso que a resposta não é simples, mas terá a ver com o mesmo princípio que opera sobre as Alices de Carroll: o intuito tem menos a ver com procurar no comportamento animal características dos humanos do que olhar os humanos e brincar com o exercício de identificar o pequeno totem animal pelo qual se pautam. Exercício que seguramente todos fizeram nas escolas (e noutros locais!), vendo uma cegonha na professora de Geografia, uma raposa no de Matemática, um hipopótamo na contínua da entrada.... Esperemos pelo segundo, com avidez.
5 de julho de 2009
Jolies Ténèbres. Fabien Vehlmann e Kerascoët (Dargaud)
O modo como escolhemos um livro não é simples. As decisões que tomamos para o comprar são as mais das vezes mesquinhas e parvas (ambas contendo o sentido de pequeníssimas), súbitas e circunstanciais, e nem sempre informadas pela via da razão, do argumento, da sapiência. De quando em vez, essa decisão revela-se acertada, mas ela só o é ou não, isto é, só nos aperceberemos do resultado depois do facto. E o facto é, naturalmente, a leitura. Existem dois grandes campos que dividem quase irmãmente essa decisão. Ou temos uma qualquer informação fora do livro que nos ajuda a alcançá-lo, ou não temos nenhuma e recorremos a outras estratégias de aproximação. No que diz respeito ao primeiro, ou conhecemos o autor, ou conhecemos a história de ouvir falar, de uma adaptação, de um artigo crítico, ou confiamos na editora e/ou na colecção, ou no nome da pessoa que assinou o prefácio ou o posfácio, ou interessa-nos algo do tema, sobre o qual nos inclinamos por um qualquer peso anteriormente conquistado. No segundo campo, somos atraídos por questões superficiais que não são mágicos de somenos. Gostamos da capa, por exemplo. Quem afirme de imediato que quem vê caras não vê corações ou que quem vê capas não vê livros não sabe, ou não merecerá talvez, a benesse de ver. Depois há as excepções. (Mais)
Kramer’s Ergot #7. AAVV (Gingko Press)
O aspecto mais badalado do último número de uma das melhores antologias da contemporaneidade é o seu tamanho. Quando se referiu à edição da Sunday Press de Little Nemo in Slumberland (So many splendid sundays!), cujas páginas têm a mesmíssima dimensão de como haviam sido publicadas na sua primeira existência, a partir de 1905, Neil Gaiman referiu-se a este livro como aquele que poderemos escolher quando partimos para uma ilha deserta, porque pelo menos podemos utilizá-lo como uma jangada para sair dela. De facto, com dimensões em torno dos 53 x 41 cm, se as páginas de Little Nemo (e depois o Sundays with Walt & Skeezix) tinham o mesmo tamanho de quando sairam nos primeiros jornais (de Domingo), estas versões em livro, de capa dura, tornam a sua leitura contínua num acto de coragem e equilíbrio físico, ou então num exercício de abandono e retorno nostálgico, espojados no chão, implicando todo o corpo nela como não sucede nas leituras de adulto.
Não é a primeira vez que autores ou antologiadores optam por livros de grandes dimensões, e poder-se-iam arrolar exemplos tão díspares quanto o Epoxy, de Van Hamme e Cuvelier, a primeira vida da Raw, de Spiegelman e Mouly, alguns dos Acme Novelty Library, de Chris Ware, o primeiro número da Satélite Internacional, os novos Jimbo de Gary Panter, chegando ainda ao mais recente George Sprott (1893-1975), de Seth (e mais exemplos haveria). Mas, poder-se-ia argumentar, a esmagadora maioria destes autores ou experiências criaram peças específicas para serem preenchidas nessas dimensões. É óbvio que toda a minha leitura de Little Nemo foi feita em versões menores, mas apenas ao ver o tamanho real das páginas nos apercebemos de toda uma trama de pormenores e de presença visual que era impossível mimar numa dimensão mais portátil.
Isto para dizer que se esperaria que a edição de Kramer’s Ergot buscaria, com tamanhas dimensões (e tendo em conta o custo inerente a uma publicação deste tipo), trabalhos que respirassem especificamente no interior desse espaço, e não simplesmente trabalhos, quer dos autores que costuma publicar quer dos novos, simplesmente aumentados... Não tenho forma imediata de indicar um por um quais os autores que criaram histórias e trabalhos que respeitassem especificamente o tamanho da publicação, mas poder-se-á fazer uma, como dizem os americanos, “hipótese educada”.
Encontraremos, sem dúvida, trabalhos de favoritos, como Tom Gauld, Daniel Clowes (apesar da sua página precisar de ser reconstruída para ocupar páginas menores), C.F., Kim Deitch, Anders Nielsen, Ben Katchor, Adrien Tomine, Paper Rad, Helge Reumann, Ron René Jr., ou o próprio Sammy Harkham, editor da publicação. Mas todos eles apresentam trabalhos que, numa dimensão mais convencional, continuariam a sua consistência e presença. Não se trata de achar que este gigantesco espaço seria melhor utilizado por pranchas ilustrativas, ou por querer ver muitas vinhetas pequenas que levem a uma experiência pautada e longa de leitura. Existem várias soluções, todas elas válidas. Trata-se tão-somente de uma ideia vaga de tirar proveito desse espaço através de uma qualquer estratégia pertinente.
São outros, ainda que também favoritos, que tiram partido do meio metro de altura. Mat Brinkman, com uma página apenas, entre a banda desenhada e a ilustração, e com uma perninha de capa de álbum dos Iron Maiden, Xavier Robel, Souther Salazar, Jerry Moriarty (que não lia desde a Raw), Frank Santoro, Seth, que apresenta como que pequeníssimos facsímiles ficcionais dos diários e bandas desenhadas do ilustrador canadiano Thoreau McDonald, Blanquet, Kevin Huizenga, Ruppert e Mulot, com uma história passada numa imensa escadaria, e Chris Ware (a única imagem que mostramos do interior do livro), que continua a saga da sua nova personagem: o bebé que esta teve encontra-se aqui em tamanho natural, mesmo.
Dos artistas menos usuais, destaquem-se Jacob Ciocci (dos Paper Rad) e a artista canadiana Shary Boyle, a qual participa criando uma história de banda desenhada de duas páginas, mas de apenas uma prancha (isto é, cada tira deve-se ler atravessando à página do lado e só depois voltando atrás), que tem tanto de onírico como como de pesadelo, e que parece recuperar a força sexual dos contos ditos tradicionais. E ainda a contra-capa, com dois amantes pulando para o interior do que parece ser um vulcão. Tal como sucedia com a última Orang, parece aqui haver um tema recorrente nalgumas histórias, que seria entendido como “o fim do mundo”, o “apocalipse”, por mais privado que este possa ser. Há também uma notável tendência em incluir mais artistas europeus, o que leva a uma consolidação de uma certa comunidade estética mundial da banda desenhada contemporânea. No entanto, a estratégia de publicar uma obra deste tamanho e com o seu preço parece querer mover-se para um mercado mais limitado, artístico, o que seria uma excelente conquista, mas sem a esperada adaptação às ferramentas desse diálogo. Seja como for, e voltando à frase de Gaiman no início, e a Pessoa, Navegar é preciso, viver não é preciso.
Não é a primeira vez que autores ou antologiadores optam por livros de grandes dimensões, e poder-se-iam arrolar exemplos tão díspares quanto o Epoxy, de Van Hamme e Cuvelier, a primeira vida da Raw, de Spiegelman e Mouly, alguns dos Acme Novelty Library, de Chris Ware, o primeiro número da Satélite Internacional, os novos Jimbo de Gary Panter, chegando ainda ao mais recente George Sprott (1893-1975), de Seth (e mais exemplos haveria). Mas, poder-se-ia argumentar, a esmagadora maioria destes autores ou experiências criaram peças específicas para serem preenchidas nessas dimensões. É óbvio que toda a minha leitura de Little Nemo foi feita em versões menores, mas apenas ao ver o tamanho real das páginas nos apercebemos de toda uma trama de pormenores e de presença visual que era impossível mimar numa dimensão mais portátil.
Isto para dizer que se esperaria que a edição de Kramer’s Ergot buscaria, com tamanhas dimensões (e tendo em conta o custo inerente a uma publicação deste tipo), trabalhos que respirassem especificamente no interior desse espaço, e não simplesmente trabalhos, quer dos autores que costuma publicar quer dos novos, simplesmente aumentados... Não tenho forma imediata de indicar um por um quais os autores que criaram histórias e trabalhos que respeitassem especificamente o tamanho da publicação, mas poder-se-á fazer uma, como dizem os americanos, “hipótese educada”.
Encontraremos, sem dúvida, trabalhos de favoritos, como Tom Gauld, Daniel Clowes (apesar da sua página precisar de ser reconstruída para ocupar páginas menores), C.F., Kim Deitch, Anders Nielsen, Ben Katchor, Adrien Tomine, Paper Rad, Helge Reumann, Ron René Jr., ou o próprio Sammy Harkham, editor da publicação. Mas todos eles apresentam trabalhos que, numa dimensão mais convencional, continuariam a sua consistência e presença. Não se trata de achar que este gigantesco espaço seria melhor utilizado por pranchas ilustrativas, ou por querer ver muitas vinhetas pequenas que levem a uma experiência pautada e longa de leitura. Existem várias soluções, todas elas válidas. Trata-se tão-somente de uma ideia vaga de tirar proveito desse espaço através de uma qualquer estratégia pertinente.
São outros, ainda que também favoritos, que tiram partido do meio metro de altura. Mat Brinkman, com uma página apenas, entre a banda desenhada e a ilustração, e com uma perninha de capa de álbum dos Iron Maiden, Xavier Robel, Souther Salazar, Jerry Moriarty (que não lia desde a Raw), Frank Santoro, Seth, que apresenta como que pequeníssimos facsímiles ficcionais dos diários e bandas desenhadas do ilustrador canadiano Thoreau McDonald, Blanquet, Kevin Huizenga, Ruppert e Mulot, com uma história passada numa imensa escadaria, e Chris Ware (a única imagem que mostramos do interior do livro), que continua a saga da sua nova personagem: o bebé que esta teve encontra-se aqui em tamanho natural, mesmo.
Dos artistas menos usuais, destaquem-se Jacob Ciocci (dos Paper Rad) e a artista canadiana Shary Boyle, a qual participa criando uma história de banda desenhada de duas páginas, mas de apenas uma prancha (isto é, cada tira deve-se ler atravessando à página do lado e só depois voltando atrás), que tem tanto de onírico como como de pesadelo, e que parece recuperar a força sexual dos contos ditos tradicionais. E ainda a contra-capa, com dois amantes pulando para o interior do que parece ser um vulcão. Tal como sucedia com a última Orang, parece aqui haver um tema recorrente nalgumas histórias, que seria entendido como “o fim do mundo”, o “apocalipse”, por mais privado que este possa ser. Há também uma notável tendência em incluir mais artistas europeus, o que leva a uma consolidação de uma certa comunidade estética mundial da banda desenhada contemporânea. No entanto, a estratégia de publicar uma obra deste tamanho e com o seu preço parece querer mover-se para um mercado mais limitado, artístico, o que seria uma excelente conquista, mas sem a esperada adaptação às ferramentas desse diálogo. Seja como for, e voltando à frase de Gaiman no início, e a Pessoa, Navegar é preciso, viver não é preciso.
3 de julho de 2009
Ilustrações para Rui Caeiro, O Carnaval dos Animais. Ana Biscaia (Letra Livre).
Esta nota mínima serve para falar das ilustrações-apontamento de Ana Biscaia para o fino volume, nas várias acepções dessa palavra, que reunem curtos poemas dedicados aos animais, do poeta Rui Caeiro.
Se mostro aqui quer a capa quer a contra-capa com a respectiva badana, é para dar conta do cuidado arranjo, e simples, deste pequeno livro. Há uma indissociável relação entre os desenhos de Ana Biscaia e o modo como estão presentes ou são integrados nas manchas das páginas. A maior parte dessas imagens surge isoladamente em páginas à mão esquerda, estando os poemas somente nas à direita; algumas ocupam duas páginas, outras vezes páginas pares são deixadas em branco... de quando em vez, pormenores dessas ilustrações são repetidas, em fragmento, nas páginas dos poemas. Enfim, espalham-se belamente pelas páginas, como se num bestiário livre, ou como se as pequenas gaiolas que lhes pertencessem tivessem caído, e agora fogem por onde podem, por entre as letras igualmente. Não procuram, portanto, serem simplesmente ilustrar, serem somente um ponto de embelezamento do livro, mas forçar-nos a entendê-las num vivo diálogo com os textos. E a verdade é que os traços de pincel, grossos e com pouca tinta, aparentemente aumentados fotograficamente, de Ana Biscaia, engrossam-se em formas por vezes inidentificáveis, rabiscos bestiais e rápidos como as bestas que iluminam. Precisamos de ler o poema em face para nos assegurarmos que esta se trata de uma barata, aquele de um lobo, ali uma coruja, acolá um touro. Mas esta falha de imediata indentificação não é uma falha, nem sequer um problema. É como se estivéssemos perante um maelstrom informe de formas animais, a promessa delas todas concatenadas numa massa de tinta plástica no próprio acto de formação (uma imagem que bebo do que o Virgílio de Hermann Broch testemunha na sua morte...). É como se Ana Biscaia tentasse, à sua maneira, chegar também ao seu círculo taoísta, unindo formas, como Muth. E atingindo-o, à sua maneira.
A ideia de grosseria e de violência também me assoma à mente ao ver estes desenhos de Biscaia, mas mais uma vez deve isso ser entendido como uma fortaleza do modo como a autora traduz a velocidade da leitura destes pequeníssimos poemas e a potencialidade de mergulharmo-los numa mais unida e contínua percepção do que eles nos contam. Aliam-se aqui a celeridade do traço do desenho e a da leitura do poema, o que não quer dizer que não haja pensamento no primeiro e não haja peso e consequência na degustação lenta do segundo. É um estranho mas feliz casamento. Um encontro hábil mas subtil de duas caligrafias distintas.
A erudita e completa introdução de José Manuel de Vasconcelos cartografa a longa e multímoda tradição na qual os poemas de Rui Caeiro não se entregam como exploram e expandem. Falar-se-á de fábulas, de novelas e romances, desde as mil e uma do circuito infanto-juvenil às solidamente afamadas (Kafka, Juan Ramón Jiménez, Melville, Borges), e de músicas, donde o título, emprestado, a Saint- Saëns. Fala-se de Jorge Sousa Braga, também e ainda, e poder-se-ia acrescentar, por aí, as fórmulas curtas da poesia oriental, ou mais perto de nós, os versos de Robert Desnos, Chantefables et chantefleurs, com os quais mais se aparentam na forma estes poemas de Caeiro, ainda que no espírito procurem menos a trouvaille, ou o nonsense de rimas internas e cabriolas (sem qualquer julgamento contra essas estratégias, já que atingem um sentido epopaico infantil), do que uma acalmia de observação e intimidade. Importante é relembrar que os poemas de Desnos foram musicados por Lutosławski, ou melhor, transportados de vez para a esfera do musicalmente austero, na qual já participavam. Também os poemas de Rui Caeiro, como aquele famoso poema de Alexandre O’Neill sobre o g da pulga (e que infelizmente é impossível reproduzir aqui pela limitada tipografia do blog), encerram em si já uma promessa de música: “’Borboletas 2’: Vivem a vida até morrer dela/ou de algum azar/ou de algum excesso dela”.
Os poemas, esses, oscilam, de novo musicalmente, oscilam entre formigas, elefantes, e formigas e elefantes, pois alguns deles colocam-nos em pares, como nas fábulas. As mais das vezes os animais são vistos, como não podia deixar de ser, a partir dos olhos e das mãos dos homens, em comparações que mais vergonha trazem aos segundos do que aos primeiros, tal qual Luís Cília o fizera na sua canção “Ofensa à lagosta”. Quase sempre para chegar a um qualquer centro muito nosso:
“’Peixinhos de prata’: Atacam o cerne da literatura e da escrita/não com os olhos ou o parco entendimento(mas com a boca, mas com os dentes”.
Notas: agradecimentos à Ana Biscaia, por me ter colocado na senda do livro; e as minhas desculpas pelas digitalizações de baixa qualidade.
Se mostro aqui quer a capa quer a contra-capa com a respectiva badana, é para dar conta do cuidado arranjo, e simples, deste pequeno livro. Há uma indissociável relação entre os desenhos de Ana Biscaia e o modo como estão presentes ou são integrados nas manchas das páginas. A maior parte dessas imagens surge isoladamente em páginas à mão esquerda, estando os poemas somente nas à direita; algumas ocupam duas páginas, outras vezes páginas pares são deixadas em branco... de quando em vez, pormenores dessas ilustrações são repetidas, em fragmento, nas páginas dos poemas. Enfim, espalham-se belamente pelas páginas, como se num bestiário livre, ou como se as pequenas gaiolas que lhes pertencessem tivessem caído, e agora fogem por onde podem, por entre as letras igualmente. Não procuram, portanto, serem simplesmente ilustrar, serem somente um ponto de embelezamento do livro, mas forçar-nos a entendê-las num vivo diálogo com os textos. E a verdade é que os traços de pincel, grossos e com pouca tinta, aparentemente aumentados fotograficamente, de Ana Biscaia, engrossam-se em formas por vezes inidentificáveis, rabiscos bestiais e rápidos como as bestas que iluminam. Precisamos de ler o poema em face para nos assegurarmos que esta se trata de uma barata, aquele de um lobo, ali uma coruja, acolá um touro. Mas esta falha de imediata indentificação não é uma falha, nem sequer um problema. É como se estivéssemos perante um maelstrom informe de formas animais, a promessa delas todas concatenadas numa massa de tinta plástica no próprio acto de formação (uma imagem que bebo do que o Virgílio de Hermann Broch testemunha na sua morte...). É como se Ana Biscaia tentasse, à sua maneira, chegar também ao seu círculo taoísta, unindo formas, como Muth. E atingindo-o, à sua maneira.
A ideia de grosseria e de violência também me assoma à mente ao ver estes desenhos de Biscaia, mas mais uma vez deve isso ser entendido como uma fortaleza do modo como a autora traduz a velocidade da leitura destes pequeníssimos poemas e a potencialidade de mergulharmo-los numa mais unida e contínua percepção do que eles nos contam. Aliam-se aqui a celeridade do traço do desenho e a da leitura do poema, o que não quer dizer que não haja pensamento no primeiro e não haja peso e consequência na degustação lenta do segundo. É um estranho mas feliz casamento. Um encontro hábil mas subtil de duas caligrafias distintas.
A erudita e completa introdução de José Manuel de Vasconcelos cartografa a longa e multímoda tradição na qual os poemas de Rui Caeiro não se entregam como exploram e expandem. Falar-se-á de fábulas, de novelas e romances, desde as mil e uma do circuito infanto-juvenil às solidamente afamadas (Kafka, Juan Ramón Jiménez, Melville, Borges), e de músicas, donde o título, emprestado, a Saint- Saëns. Fala-se de Jorge Sousa Braga, também e ainda, e poder-se-ia acrescentar, por aí, as fórmulas curtas da poesia oriental, ou mais perto de nós, os versos de Robert Desnos, Chantefables et chantefleurs, com os quais mais se aparentam na forma estes poemas de Caeiro, ainda que no espírito procurem menos a trouvaille, ou o nonsense de rimas internas e cabriolas (sem qualquer julgamento contra essas estratégias, já que atingem um sentido epopaico infantil), do que uma acalmia de observação e intimidade. Importante é relembrar que os poemas de Desnos foram musicados por Lutosławski, ou melhor, transportados de vez para a esfera do musicalmente austero, na qual já participavam. Também os poemas de Rui Caeiro, como aquele famoso poema de Alexandre O’Neill sobre o g da pulga (e que infelizmente é impossível reproduzir aqui pela limitada tipografia do blog), encerram em si já uma promessa de música: “’Borboletas 2’: Vivem a vida até morrer dela/ou de algum azar/ou de algum excesso dela”.
Os poemas, esses, oscilam, de novo musicalmente, oscilam entre formigas, elefantes, e formigas e elefantes, pois alguns deles colocam-nos em pares, como nas fábulas. As mais das vezes os animais são vistos, como não podia deixar de ser, a partir dos olhos e das mãos dos homens, em comparações que mais vergonha trazem aos segundos do que aos primeiros, tal qual Luís Cília o fizera na sua canção “Ofensa à lagosta”. Quase sempre para chegar a um qualquer centro muito nosso:
“’Peixinhos de prata’: Atacam o cerne da literatura e da escrita/não com os olhos ou o parco entendimento(mas com a boca, mas com os dentes”.
Notas: agradecimentos à Ana Biscaia, por me ter colocado na senda do livro; e as minhas desculpas pelas digitalizações de baixa qualidade.