A escrita, num projecto ilustrado (espectro no qual uma das secções é a banda desenhada), não pode ser considerada de modo isolado, mas sim na constituição de um texto final. Nos seis contos que compõem este livro não se nota qualquer divórcio entre uma dimensão e outra. No entanto, quando apreciamos uma dada obra de arte, não o fazemos num vazio, num vácuo existencial. Fazemo-lo num quadro de referências determinado, sendo um deles a associação à obra anterior de um (ou dos) autor(es).A fórmula, se nos for permitida esta expressão, é idêntica àquela lançada com o primeiro volume das Black Box Stories, cujo primeiro e único volume existente até à data é Tratado de Umbrografia, cuja expressão gráfica foi também coordenada com Luís Henriques (mas outros se prometem, esperamos). Da produção imensa de ideias, situações, e micro-narrativas de Fernandes, abriu-se a possibilidade de as ver concretizadas e de ganharem corpo, através do trabalho de outros autores, mas ao mesmo tempo de tornar possíveis outras dimensões, novos corpos, portanto, com essas mesmas prestações. Os desenhos e estruturações de José Carlos Fernandes atingem uma característica muito própria, excelentemente adaptada ao domínio do absurdo, a uma ironia tétrica, mas os desenhos de Henriques permitem um outro tipo de respiração. De certa forma, poderemos considerar o primeiro volume de Terra Incógnita como a continuidade desse outro projecto, parte da obra contínua e a longo prazo de Fernandes (por ser um programa, diferentemente do que diz respeito a Luís Henriques).
O lugar em que A Metrópole Feérica se inscreve é muito claro. As mais das vezes se escreve sobre a cultura que emana da obra de José Carlos Fernandes, o que não deixando de ser verdade é nítido demais: os jogos são claros, o objectivo não é a construção de uma rede densa de referências, mas sim de um baralhar irónico delas mesmas, provocando um tipo de humor a que nos temos vindo a habituar: a criptogeografia é uma tradição literária explorada por toda a literatura utópica, de Swift a Swedenborg, de Calvino a Milorad Pavic, mas também pelo universo da ilustração, pela óbvia dupla de Peeters e Schuiten, mas cujo objecto mais acabado se encontrará possivelmente no Codex Seraphinus, de Lugi Serafini. A divisão dos relatos em cidades e terras imaginárias, e a inclusão de um pseudo-mapa na folha de rosto, e ainda a indicação de “vol. 1 promete desde logo novas explorações deste globo, mas as histórias revelam ser – exercícios típicos de José Carlos Fernandes – a exploração até às últimas consequências de desejos já expressos no nosso mundo: programas políticos (o comunismo ou o funcionalismo público pidesco-burocrático, com Trabântia), desejos psicológicos (o desejo de se ser ouvido e compreendido, com Babel), a violenta divisão do mundo dos que são apenas “ter”, cegos às suas implicações (Manata), a obrigatoriedade social de nos pautarmos por jogos de máscaras, papéis sociais e modos discursivos previstos (Fílon).Não se terei o direito de falar de fragilidades, ou sequer de me arrogar do poder de ter expectativas quanto a terceiros – um crítico não trabalha sobre o eventual, nem sobre desejos, mas sobre o concreto, a obra existente que tem em mãos -, mas sinto em A Metrópole Feérica um abandono maior a toda uma série de jogos banais e clichés que não torna o livro particularmente desenvolvido. Também não há nenhuma possibilidade de falar de um livro desta natureza como de duas metades independentes: a escrita apenas existe no seio de uma narrativa transportadas pelas imagens, e estas apenas se coordenam de acordo com o fio narrativo imposto. No entanto, a panóplia de referências, as citações tornadas matéria estruturante e risível, a estranheza das transformações, umas mais óbvias que outras, são totalmente da lavra de Fernandes, e a sua tradução visual pertencerá a Luís Henriques, se bem que existirá um relacionamento interventivo mútuo.
Se há uma capacidade poética em despertar reescritas totais de vida na cidade de Khamsin, onde a mudança de chapéus leva a alterações de personalidade, de desejos, de direcções dos seus habitantes, e em provocar uma neblina melancólica na de Tangaroa, onde a inércia de um homem o faz formar fantasmas que nunca entenderemos decidir se reais ou não, Babel cai numa mera anedota sem grande profundeza, Trabântia e Manata arrastam-se numa banal crítica datada, Fílon é tão linear que com surpresa e desequilíbrio chegamos ao seu fim.
No entanto, o abandono aos clichés será mesmo o propósito de A Metrópole Feérica, querendo com eles construir um comentário a essas mesmas ideias. O rol de personagens queixosas na torre de Babel acumula-se até ao ponto de se tornar de facto irritante, e fazemos nossos os ouvidos de Deus, a rápida derrocada de Fílon é abrupta pois o choque e a obrigatoriedade que representa o estarmos perante nós mesmos não poderia ter outra forma, o quase distraído tom com que saímos de Khamsin está em consonância com o que ocorre a cada um dos habitantes da cidade ventosa, e as respectivas hecatombes de Manata e Trabântia impedem qualquer tipo de continuidade... A dimensão gráfica espelha ponto por ponto estas vontades narrativas, ou melhor, veicula-as, torna-as mais transparentes. Sobre a capacidade inventiva de Henriques já se disse muito, a sua competência, adaptação, multiplicidade, mas isso deverá constituir menos surpresa do que um entendimento maior pelo respeito por aquilo a que um texto obriga: títeres sem preenchimento para Fílon, rápidas tramas para Khamsin, intervenções de grafismo barato e colorido para Manata, opressivas manchas descoradas para Trabântia (com a única excepção da intervenção da cor que pode ser entendida tanto como símbolo ubíquo do regime, ponto nevrálgico do policiamento de Estado ou promessa de derrocada), uma pastosa neblina para Tangaroa, e uma perra estruturação, com figuras distribuídas à laia de antiga linguagem hieroglífica e monumental para Babel.Nesta esfera do elemento que transporta a história, que lhe dá contornos, e como disse Sara Figueiredo Costa, no seu artigo do Expresso, não se trata nem de “virtuosismo gratuito” nem de “espalhafato visual”, mas sim de uma procura, e efectivo encontro, do melhor equilíbrio e modo de expressar o sentido profundo e matérico destas histórias. O que as torna então um veículo exacto para as mesmas, fazendo sublinhar o seu valor de breve apontamento do ridículo de todas e quaisquer utopias. Na última das histórias cita-se Cioran, autor conhecido pela sua apresentação da noção de utopia enquanto modelo de sociedade necessariamente paradoxal; em História e Utopia o filósofo fala algures de “infernos abstractos”. Devemos perseguir e criar estas ideias, estabelecermos os nossos futuros nelas, mas ter cuidado para não as concretizar finalmente. Ou nascerão estes infernos, explorados sem cerimónia e compaixão pelo livro presente.
Pequena nota externa à obra: estes livros provocam sempre celeumas, mais devedoras de defesas e ataques que se prendem com outros aspectos externos à obra do que da sua intrínseca vida. Comparar este livro com os restantes não faz grande sentido, uma vez que habitamos num país que nunca repôs uma ideia verdadeiramente desenvolvida de um mercado de banda desenhada. E há espaço suficiente para muitas experiências, tal como a carreira do próprio Luís Henriques tem demonstrado, mais interessado nas potencialidades que a criação de imagens tem (em ilustração infantil, poética, de banda desenhada, mais comercial ou mais independente, ou assim ou assado) do que na inscrição num qualquer nicho. Por outro lado, não há que atirar fora o bebé com a água do banho... José Carlos Fernandes tem tido a sorte, que se deve ao seu talento (mais desenvolto no lado da escrita), de ter sido editado e de ter encontrado espaços suficientemente amplos e visíveis para expor a sua obra. Essa circunstância não o torna “o melhor”, nem “o mais produtivo”, mas sim aquele que é mais visível. No entanto, esse papel ocupado torna-o alvo de críticas de circunstância que mais revelam do quadro social dos nossos editores do que do valor intrínseco de terceiros. Num mundo editorial onde a segurança e o lucro rápido reinam, as apostas devem e são feitas usualmente em programas ganhos à partida, no interior de uma rede de conhecimentos e influências mútuas. Acusar Fernandes de se encontrar numa dessas redes é não só irrelevante como é ofensivo implicá-lo numa crítica que se deseja séria. Fernandes não está sozinho, de modo algum, no panorama da banda desenhada portuguesa, e dizê-lo desse modo não revela apenas ignorância, mas interesses secundários. Que é um autor incontornável, não há dúvida, nem de que estabeleceu uma voz autoral forte, reconhecível e apreciada por um grande grupo de pessoas, muito diversas e com diferentes graus de entrega ao universo da banda desenhada. não há que torná-lo representativo senão dele mesmo enquanto autor, nem para o bem nem para o mal, nem para encómios bacocos e repetitivos nem para diatribes ao mundo.Como disse atrás, não tenho qualquer direito a exercer uma preferência ou um desejo sobre o trabalho dos outros. Confesso que gostaria de encontrar em Fernandes um passo diferente, de maior fôlego, de uma estruturação diferente de imaginários diferentes, um outro tom. Há um lado que aprecia as micro-narrativas do absurdo ou do paradoxal, que procura autores como Slawomir Mrozek, Alan Lightman, Italo Calvino, António Pocinho, Mário Henrique-Leiria; mas há outro que gostaria de descobrir outros filões na sua escrita. Para que não ocorra o fenómeno, real e nocivo, da autofagia e da auto-epigonia.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e à Sara Figueiredo Costa, pelas notas.



É curioso que se tenha tido de esperar cerca de 100 anos para ver este livro – objecto de culto entre coleccionadores e referência incontornável na história dos livros infantis (e não só) - traduzido em Portugal. Tal facto prender-se-á com circunstâncias históricas, com o valor que os livros infantis assumem na percepção social e na muito recente inclusão dos mesmos no círculo da traduzibilidade (família para a qual a Kalandraka, a Errata, cada um a seu modo, vai corrigindo a História e, agora, a 


















