27 de junho de 2005
Obras-Primas da BD Disney # 5. Carl Barks (Edimpresa)
É uma felicidade, para nós leitores, habitarmos um tempo em que se pode de facto atribuir a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, mas mesmo assim ver que quando César usa territórios de Deus, os pode e sabe mesmo ultrapassar. Quantos de nós não terá lido histórias de Barks sem saber da sua existência? As personagens simplesmente existiam e surgiam deus ex machina a cada livro. Mas mesmo assim a memória é selectiva e respeita as forças que apenas autores como Barks – apesar de existirem outros – eram capazes de manter. Talvez sejam jogos falsos, mas as histórias de que mais me lembro das revistas Disney lidas em criança eram as que se confirmaria serem de Barks: usualmente longas aventuras com toda a família do Donald por terras inusitadas e sempre com uma moral reconfortante na alma humana (ou de pato?), sem ser primário... Haveria tanto que discutir sobre Barks que é assustador. Trabalhando no interior de tantas limitações, foi capaz de criar uma obra que ultrapassa o escopo que lhe fora prometido à partida. É impossível reduzir as suas histórias aos comercialismos ou às estratégias acéfalas e quase odiosas da Disney. Não, Barks não é capitalista, não, Barks não é moralista, não, Barks não é maniqueísta. Barks é, em toda a acepção luminosa da palavra, um autor. Desde que foi possível identificar a autoria de cada história, a Edimpress tem feito esse impecável trabalho em Portugal. E as cerejas desse esforço estão nesta colecção, que já passou por Don Rosa e promete completar a obra de Barks nos próximos anos (veja-se a entrevista a Paulo Ferreira, seu editor, no BDJornal # 2). Os textos que acompanham cada edição oscilam entre dados biográficos, informações sobre as histórias, e outras variedades, o que apenas corresponde ao que de melhor se pode fazer a publicações deste tipo. Nada displicente para quem deseja coleccionar, (re)ler, aprender. E Barks é um autor que desafia qualquer leitura primeira que se possa fazer. E segunda, e terceira...
McSweeney's Quarterly Concern #13 (McSweeney's)
Não exageradamente diferente da Kramer's Ergot, A McSweeney's Quarterly Concern é uma belíssima publicação cuja história, autores publicados, e filosofia de vida apenas merece a máxima atenção e leitura. No site, http://www.mcsweeneys.net/, encontrarão sobejamente material a descobrir. Poderei definir esta como uma antologia que tenta dar recado de um certo tipo de escrita, independente e alternativa ao comercial, que se vai desenvolvendo na contemporaneidade norte-americana? Talvez, mas temo mesmo assim estar a ser redutor, para uma revista que já convidou os They Might Be Giants a "musicar" um dos seus números, e que convida vários escritores para editarem outras publicações (como Chabon para ficções de aventuras). Desta feita, convidaram Chris Ware para editar um número totalmente dedicado à arte que aqui se lê. Quase nenhum dos trabalhos é inédito e muitos até reunem episódios de séries cuja leitura integral é obrigatória para se compreenderem, como Black Hole de C. Burns ou Louis Riel de C. Brown.
Aqui se reunem os nomes mais sonantes de uma produção alternativa de banda desenhada norte-americana, de Crumb a Bayer, de Katchor a Tomine, passando por meio-desconhecidos como Richard McGuire, autor da espantosa e marcante bd Here, mas aqui com um fraco trabalho visual, a estudos/ensaios/curiosidades sobre autores clássicos, como Herriman e Schulz, e outros, mas também uma bd de Töpffer.
Todo o livro é um objecto magnífico, cujos detalhes servem todos à leitura e contemplação, como a capa que é na verdade um enorme poster-bd desdobrável com um "jogo" de Ware e, do outro lado, as biografias dos autores ilustrada com uma "mandala da História da bd" por Gary Panter. Ainda é acompanhado por dois livrinhos semi-independentes, uma King-Cat de Porcellino e uma francamente politizada bd de Ron Regé, Jr.
Nota: outra vez, a capa scanada não corresponde à "capa", mas a uma porção da capa exterior.
The Complete Peanuts. Charles Schulz (Fantagraphics)
O que é uma obra-prima? Pode ser vista como algo “incontornável” no entendimento de uma determinada arte? Quer queiramos quer não, são aquelas obras cuja amplitude de influência é enorme, um trânsito de significados tão intenso na direcção para fora de si que os escuda fortemente de uma possível ruína do tempo. Peanuts, ou Charlie Brown, como é por cá conhecida a série, lida por gerações atrás de gerações, mesmo em Portugal (um raro caso se sucesso verdadeiramente internacional), é um desses exemplos. Como já disse aqui sobre outras edições, vivemos numa época feliz de acessibilidade a determinadas obras, e agora eis que surge a edição integral da grande obra de Charles M. Schulz.
Estes são apenas os primeiros dois volumes, com as tiras publicadas entre os anos de 1950 e 54. Ainda nos primórdios da tira, vemos um Charlie Brown que não reconheceremos, mais assertivo, seguro, até mesmo gozão, e sempre se relacionando mais ou menos “amorosamente” com duas raparigas, Patty e Violet (personagens que desapareceriam do alinhamento mais famoso). Também não entendemos a quem pertence Snoopy, se a Charlie Brown ou se a Shermy, ou se às raparigas, nem percebemos as relações familiares entre eles. É um universo que apenas existia a cada strip, e sem necessidade de formar uma maior coesão para fora delas. É paulatinamente que essa coesão se vai formando, como se existisse um local central que aos poucos organizasse as vidas de cada personagem.
Não se pense, porém, que não vale a pena passar por esta estranheza. Pois os temas estão logo lá, mesmo que a melancolia ainda demorasse a se tornar o tom central. Muitas das tiras versam sempre um aspecto do mundo que não tem valor próprio senão o que o observador lhe atribui, e basta um pequeno evento ou duas palavras para o ponto de vista de uma primeira aproximação se alterar diametralmente no final (como a tira de 31 de Janeiro e a de 10 de Agosto de 1951).
Vemos aqui as primeiras tentativas goradas de Charlie Brown em levantar um papagaio ou pontapear a bola (não é ainda a Lucy quem a retira), o início do génio musical de Schroder, um Snoopy a tornar-se cada vez menos canino e cada vez mais idiossincrático, a primeira atestação da palavra “blockhead” (“tolo”) atribuída a Charlie Brown, as tessituras ainda fluidas das personagens a que nos habituaríamos.
As tiras seguem, mas sem abusos de maior, o ritmo da vida meio-urbana das pequenas cidades americanas do interior (tal como se diz no prefácio, é um retrato da midwesterner St. Paul, cidade onde Schulz nasceu), pontuada pelo Halloween, o Natal, outros eventos. Mas cada uma das actividades das crianças, por mais específicas que sejam ao seu universo local, são as mais compartilháveis e humanas de todas, já que são retratos de uma permanente necessidade pelos outros o que aqui se louva, assim como dos pequenos deslizes egoístas a que todos temos direito. A melancolia não deriva de uma mera falta de inocência destas crianças, que a possuem de alguma forma (mas não tout court, não posso concordar com “o filtro da inocência” de que Umberto Eco fala a propósito de Peanuts), mas pela vaga sensação de que já entendem ser a vida um instante fugaz, e que qualquer prazer aponta já a morte... (“uma intensamente e particularmente sentida rememoração da dor”, diz Gary Groth numa entrevista ao autor, no The Comics Journal #200). São inúmeros os exemplos destas personagens a pensar a velhice, a decadência, o fim. Mas a quase ausência dos adultos, até mesmo como ruído de fundo, faz com que essa melancolia surja a cada vez como uma manhã promissora. É como se, mergulhando na melancolia, emergíssemos com júbilo. Provas? Charlie Brown não desiste, e lá tenta pontapear a bola de novo, ou erguer o papagaio, ou ganhar um jogo de xadrez, ou encontrar a Abóbora Gigante, ou falar com a moça de cabelos ruivos... again and again and again...
Se bem que algumas tiras jogam com efeitos visuais, até mesmo subdivisões internas, painéis sem texto, tiras inteiras sem falas, uma das linhas de força mais significativas de Schulz são as palavras, mesmo que o autor o negue e até recorra ao slapstick quando acha que é “demasiado sério”. O vocabulário nem sempre é o mais simples (para uma tira deste tipo), e se houve alguém alguma vez que comparou as tiras de banda desenhada com os haiku, então Schulz é de facto o seu Matsuo Bashô. Vejam, por exemplo, logo no primeiro volume, as tiras de 21 de Janeiro e de 2 de Outubro de 1952*. Algumas piadas e situações são recicladas, ou usadas vezes sem conta como é sabido, mas isso apenas reforça o aspecto de “temas e variações” (palavras do próprio Schulz), ou da composição poética citada. É magnífico como “economia de meios” ganha toda a sua reverberação em Schulz e nos faz rir das supostas inovações dos novos “minimalistas”, e me faz ainda mais desprezar trabalhos francamente nulos como Dilbert ou Gardfield ou Cathy; Schulz desenhava maravilhosamente, e estas tiras novas não possuem nada, nem desenho, nem lições universais, só ensimesmamentos grotescos e apenas dignos de dó... E não é uma questão de “nichos de mercado” ou de “interesses particulares”. Chama-se “linha de água”, e alguns desses trabalhos elogiados por todo o lado estão atolados no lamaçal ao fundo.
Em muitos aspectos, o que Charlie Brown diz, “às vezes penso não pertencer aqui” poder-se-ia aplicar a toda a obra de Schulz, já que o tipo de cultura que procurou instituir não era o mais repetido no seu tempo, tendo investido num cruzamento inusitado e inovador entre este modo de arte e a sua visão interna do humano. Mas digo que essa não-pertença poderia aplicar-se, não que se aplique mesmo, pois o sucesso de Shulz foi o de abrir espaço a esta maior intensidade da figura das crianças, não como malandrecos, nem adultos em miniatura, nem criaturas inocentes e mentecaptas, mas como crianças relacionando-se com crianças pelas ligações que os adultos exercem, se ainda fossem crianças. Existe sempre uma moral da história, pois Schulz era um crente fervoroso e isso nota-se: mas não incomoda com qualquer tipo de proselitismo, pois ele procurava sempre uma moral que fosse o mais universal possível (vejam-se as tiras de 9 e de 28 de Junho de 1952). Não há uma catequização, mesmo quando se cita a Bíblia. Neste ponto, Schulz está próximo do Tezuka (budista) de Phoenix ou mesmo de Buddha: importa fazer o melhor possível aquilo que se faz, e com isso contribuir para o bem no mundo, e para o bem dos outros, procurando harmonia.
Em relação a uma aplicação auto-referencial destas considerações morais e de “peixe fora d’água” a toda a tira, veja-se a forma como o autor intitula as revistas de banda desenhada disponíveis na loja (estávamos a dois anos antes do livro de Frederic Wertham, da guerra aberta contra a EC e a emergência do Comics Code), ou como utiliza Charlie Brown para contar más anedotas, mas experimentando-as na tira, connosco (5 de Novembro de 52).
Este seria um território que muitos outros autores explorariam mais tarde, talvez com os exemplos mais claros e recentes na série Calvin e Hobbes de Bill Waterson ou o trabalho de Steve Weissman. Mas será abusivo apontar John Porcellino, Ivan Brunetti, Seth, Chris Ware, Daniel Clowes (algumas crianças com atitudes adultas, como o Charles - de todos os nomes! - de Ice Haven), Craig Thompson (“lençóis”?) como devedores a Schulz a mais de um nível? Até num fanzine de 1961 dos irmãos Crumb (V. Handbook, pp. 98-99), que discute a banda desenhada como forma de arte e desanca nas séries crassamente comerciais e idiotas do seu tempo, e com "falta de auto-consciência", Peanuts está ausente dessa lista negra: precisamente porque, ainda que de modo velado (por tão inovador), Charlie Brown e os seus amigos (ah!) reflectem sobre a sua própria existência...
Enfim, estas coisas todas já foram ditas por tantos outros antes de mim, e outras tantas mais inteligentes já avançadas, inclusive o próprio autor, consciente dos seus limites e forças, que é quase ridículo procurar dizer algo de novo... Vejam o Peanuts: The Art of Charles M. Schulz (ed. por Chipp Kidd, na Pantheon), ou Conversations (UP Mississippi).
Uma das frases de Shulz mais citadas, e que é associada à sua juventude como fonte de inspiração para o Charlie Brown, é a seguinte: “It took me a long time to become a human being” (“Levei muito tempo a tornar-me uma pessoa”). Em termos pessoais, nada posso dizer. Enquanto autor, não só se tornou numa pessoa gigante, como criador de pessoas.
Nota: cada volume tem um design soberbo, simples e merecedor (simbiose perfeita) do que abraça, pelo artista Seth, e virá acompanhado por inteligentes ensaios, textos informativos, entrevistas, que apenas enriquecerão a colecção, pensada por Gary Groth, alvo de amor-ódio de muitos membros da comunidade de “leitores de bd”. Como se anuncia na editora, a Fantagraphics planeia a colecção “The Complete Peanuts [em] 25 volumes, coligindo dois anos cronologicamente a uma razão de dois [volumes] por ano, durante doze anos”. Ou seja, lá para 2016 conseguiremos ter lido todos os 50 anos da existência do “Carlitos e amigos”, se tudo, tudo correr bem (a editora aguentar-se, Seth ter paciência para fazer o design, o barril do petróleo não passar dos 100 USD, eu não me aborrecer de livros aos quadradinho e mudar-me para a apicultura...).
Segunda nota: uma vez falei "mal" do Snoopy... Com isso referia-me à execrável exploração comercial destas personagens que, em grande parte, ofuscam a atenção devida ao trabalho original. Quem conhece mal a série e a ela chega depois de combater contra "o que sabe" do merchandising, terá, julgo, uma surpresa agradável. É pena que por vezes as obras elas-mesmo sejam secundadas por todo o ruído que delas nasce e que parece ser a aproximação "suficiente" que as pessoas desejam - é o caso de obras de verdadeiro vulto, como Moby Dick, de Melville, ou Dom Quixote, de Cervantes... É preciso, sempre, a eles retornar para perceber porquê o poder das suas sombras.
*Imaginem: “Sem esperança,/é como se procurasse uma bola no mato selvagem./Que procuro?/ Uma bola no mato selvagem.”
... et autres aubergines. Iô Koruda (Kodansha/Casterman)
O aspecto imediatamente mais aprazível nos livros de Koruda é, como será de esperar, o seu desenho, que participa da leveza e rapidez – tais como definidas como características e valores de uma literatura para o nosso tempo, cf. Italo Calvino – que um lápis livre é capaz de expressar. Todas as personagens de Koruda, sejam jovens ou idosos, japoneses ou ocidentais, pobres ou enriquecidos, têm traços em comum, que é o de uma alegria em estarem vivos num mundo de diversidade. Estes três volumes reúnem 19 histórias, produzidas no fim dos anos 90 e publicadas em tankobon (nome dos volumes que no Japão reúnem séries previamente publicadas em revistas, e com sucesso) entre 2000 e 2001, cada uma com um tom levemente diferente da anterior: ora de um despojamento quase total que centra a atenção nos mais quotidianos dos gestos, numa vertente poética subtil, ora mais melancólicos, ora com pequenos detalhes da vida social japonesa ora absurdamente cómicos, passando mesmo pela ficção científica, e o género desportivo – o ciclismo, para ser exacto (existem séries, mais comerciais e menos famosas fora do Japão, totalmente dedicadas aos mais diversos desportos, e que consistem quase numa descrição chã, como se uma transcrição de uma prova se tratasse, do desporto em questão; Koruda faz o mesmo, mas intercalando eventos paralelos e que convergirão no fim, subvertendo um interesse primário no desporto).
Assim de imprevisto, parecer-nos-á que cada episódio nada tem em comum com o anterior, tirando o óbvio e repetido tema das beringelas, que são como que um ruído de fundo que une todas as composições. Mas à medida que a leitura avançar pelos episódios, que atravessam tempos (um “presente”, um “passado”, nos tempos do shogunato, e um “remoto futuro”) e espaços diferentes (não só o Japão urbano, rural e mediador, como a Índia e Espanha), acompanhando um grupo simpático de personagens, vamos entendendo a pequena rede que os une entre si. Mas essa é ainda uma leitura superficial. Há um professor Takama, que parece ter desistido de uma complicada vida intelectual por uma mais pausada, entre leituras e a plantação de beringelas no campo. Há Aya Takahashi, uma jovem liceal que rapidamente se torna uma responsável e laboriosa mulher para poder sustentar os seus dois irmãos abandonados, mas não abdicando dos seus sonhos paralelos, a realizar ou não, com os homens que a vão fascinando. Há Arino, um rapaz que não pretende criar raízes em nenhum lado, e parte pelo mundo em busca da realização de um incerto conceito, o da “reforma jovem”. E outros ainda, que surgem de quando em vez, criando maiores ligações com os outros, ou apenas fugazes cruzamentos. Todos, porém, cada um com o seu subtilmente sentido grau, são pessoas às quais a vida lhes surge o mais digna possível de viver e abraçar. Aprendemos em relação ao cultivo de beringelas que se devem fazer alguns cortes e escolhas de florações, e impedir que cresçam em forma de árvore, pois assim conteriam a vida das outras num menor desenvolvimento, só assim alcançando uma harmoniosa colheita. Esses cortes, na vida, na busca de uma vida mais sã e simples, mas não leviana, é alcançada por estas personagens, não através de sacrifícios, mas antes como que libertando pelo caminho tudo o que é lastro. Mas não pensem que há aqui moralismos e ortodoxias. É apenas um altear de “cada qual com o seu caminho...” como filosofia de vida. Contudo, isso poder-nos-ia indicar uma outra forma de marcar distinções entre as pessoas, entre aquelas que gozam a vida ao máximo e as outras, que a deixam passar ao lado...
Iô Koruda faz-nos estas representações em registos diferentes, como disse, algo bem difícil de fazer sem se cair num tom de humor aéreo com toda a obra. Todas e quaisquer das “aubergines” flutua entre dois ou três humores, mas sempre de um modo calmo. Aliás, a excelente tradução em francês perece fazer jus a uma linguagem desapossada de peso, que nos faz virar as páginas como se estivéssemos escutando os nossos mais próximos a falar uns com os outros. Uma conversa em que não participamos, mas apenas escutamos com afeição.
Koruda é autor sobretudo de histórias curtas, e por isso dá-se à liberdade de poder utilizar esta variedade de aproximações. Já numa outra antologia, Daioh, de 2001, tanto fazia homenagens a Tezuka com uma curta história em Metropolis, como pequenos apontamentos oníricos sobre elefantes e mulheres-mosquito, como histórias de acção e cheias de mecha (equipamento tecnológico sci-fi). Mas ...aubergines parece caminhar num sentido de maior coesão, e quem sabe se nos aponta para uma possível obra de fôlego no futuro.
O único problema de maior é o que me parece ser um mau corte das páginas, cortando mesmo palavras da tradução e sabe-se lá o que mais. Cada livro tem ainda umas páginas-bónus com receitas, notas sobre as histórias e uma espécie de strip auto-referente.
Gods' Man. Lynd Ward (Dover)
A utilização de um meio técnico, ou de um modo material, não implica a instituição de uma linguagem correlativa. Isto é, não é por dois ou mais artistas utilizarem os mesmos (análogos, próximos, semelhantes ou até idênticos) gestos que necessariamente se encontrarão outras conexões entre os mesmos. Porém, é curioso notar como a gravura em madeira parece ter sido sempre empregue dentro de uma família de intentos e programas facilmente estreitáveis.
A xilogravura tem uma História longa, a qual, não obstante a individualidade dos seus cultores (de Dürer a Marc, de Zanetti a Max Beckmann e Nolde), possui dois ou três traços que permitem irmanar toda e qualquer produção nesse meio, e que se associa a uma certa expressão política do humano. Autores houve que se dedicaram ao seu emprego em histórias contadas por imagens sequenciais, com a máxima notoriedade para o belga Frans Masereel, mas podendo-se citar ainda outros autores, mais contemporaneamente, o americanos Seth Tobocman (alguns trabalhos) e o francês Olivier Deprez, sobretudo com a reescrita de O Castelo de Kafka.
Como Deprez aponta na sua entrevista (e outros artigos) na Satélite Internacional 4, há um mesmo gesto em toda a xilogravura, o de apagar inscrevendo. Não é só uma questão material e de impressão técnica, mas até mesmo de sentido: são as ausências materiais que farão todo o sentido das imagens emergir no papel. Se bem que quase como uma colagem minha fraca, quase apetece demonstrar essa oposição como a que Walter Benjamin aponta da distância entre o “teor material” e o “teor de verdade” de qualquer obra. Isto é, quando ao nos depararmos com uma obra cronologicamente distante de nós mas que nos parece “nova”, “fresca”, “viva”, é porque a sua verdade está ainda pulsando acima do seu material – é o que acontece com os chamados clássicos, de Goethe a Tezuka, de Pessoa a Schulz. O contrário são obras que vemos logo datadas... Na literatura, Uma Família Inglesa, na banda desenhada, um Diabolik, por exemplo. Um autor sobejamente apontado nesta história é o de Lynd Ward. Foi com grande expectativa que finalmente se tornou acessível uma edição mais recente (e barata) de Gods’ Man [sic], primeiro “romance em xilogravura” de Ward, publicado, diz-se, na própria semana do crash de 1929. O sucesso foi enorme na altura. Esta história, em 139 pranchas de tamanho e enquadramento desigual, mas nem por isso dinâmico – em comparação com Masereel, bem superior, a mon avis -, é uma espécie de variação do mítico Fausto, em que um artista recebe um misterioso e estilizado pincel com que ganhará fama e... pouco mais. Talvez seja a dificuldade em esticar a história por mais pranchas, não desenvolve Ward as peripécias pelas quais a personagem poderia passar, resolvendo-se tudo antes em ápices sucessivos e desenredos mal-encadeados. A nítida moral e maniqueísta, pouco ou quase nada subtil, sempre presente na maioria dos americanos, está também aqui patente na leitura do capitalismo, no amor interessado, nos guardiães económicos da arte, na incompreensão do público, na natureza idílica, etc. Mais uma vez, é por oposição a Masereel que se notará que o “teor material” de Ward faz afundar o pouco “teor de verdade” que ainda poderia existir. O autor belga, por sua vez, tem a felicidade – e tê-la-á no futuro ainda? – de ter feito representar pequenas histórias tão gerais e de uma vaga inquietação que ainda hoje são passíveis de acoplar à nossa experiência contemporânea.
Bone (num volume). Jeff Smith (Cartoon Books)
Há uns anos atrás, na revista flirt, escrevi sobre o Bone dizendo qualquer coisa como "lembram-se daquelas tardes sem nada para fazer, em que nos setávamos no chão de alcatifa com um copo de leite com chocolate quente e umas bolachas e nos entregávamos à leitura das aventuras da família do Donald?". O meu objectivo era precisamente aproximar a obra de Jeff Smith ao mesmo glamour e sensações despertadas pelas aventuras em família imaginadas e desenhadas por Carl Barks, mesmo num momento da nossa vida em que não sabíamos existir Barks (era o próprio walt Dinsey que fazia tudo!). Esta é ainda a mesma atitude a manter com a edição, em um só volume, de toda a série - exceptuando todo o material extra (Stupid, stupid rat tails... e Rose; vejam http://www.boneville.com/ para mais informações). Smith está com certeza a responder a toda uma sua educação, que terá Barks, Melville e aquele tal livrito sobre anéis que os iletrados gostam muito de chamar de "clássico da literatura" (apetece ser arrogante e perguntar de imediato, "já ouviu falar de Aristófanes?")...
A razão por este entusiasmo é precisamente porque esse é o território em que Bone opera. Afinal, não é seu objectivo retransformar as especificidades da linguagem da banda desehada, nem complexificar a trama temporal de uma narrativa, nem fazer experimentalismos. É a inúmeras vezes repetida fórmula, "só quero contar uma boa história que divirta o público". Mas se bem que usualmente essa fórmula é utilizada para disfarçar mau trabalho, pequenos esforços ou objectivos gorados, no caso de Jeff Smith não poderia ser mais exacto. As suas personagens são bem acabadas, logo ao início ficamos a entender as redes que relacionam os três primos - situações de comédia muito devedoras a Barks, parece-me - e todos os desenvolvimentos se vão encaixando perfeitamente uns nos outros, seguindo depois as reviravoltas de toda a série e a sua resolução final. É, de facto, uma aliança excelente entre uma obra equilibrada e um divertimento para o seu alargado público. É uma prova também de que é possível fazer essa aliança, como poucos o fazem nos nossos dias, apesar de existirem excepções, como alguns álbuns da colecção Poisson Pilote, títulos já aqui indicados (Socrate e Issac, p. ex.).
Mesmo para aqueles que já acompanharam a série em comics, ou a cada tradepaperback, há um certo prazer em reler duma assentada isto tudo, e poder ver no fim do volume o número 1332! Quanto aos que nunca leram, que prazer será poder descobri-la assim...
Kramer's Ergot #5. AAVV (Gingko Press)
"Das variadíssimas antologias de banda desenhada que vão surgindo por aí, há umas que são mais antologias que as outras. Penso que a responsabilidade primeira em conceber uma antologia de sucesso nem sequer é associada em primeiro lugar à qualidade dos artistas apresentados. O arquitecto Álvaro Siza Vieira (num texto que pode ser encontrado no número 12 da Tabacaria) diz que as formas arquitectónicas de Gaudi se assemelhavam às da escultura; as casas do barcelonês eram idênticas a todas as outras nos seus elementos básicos, mas esses elementos, em Gaudi, “cantavam”. Ora, quem deve fazer tudo “cantar” é obviamente o editor, que deve orquestrar esta “escolha de flores” (é o que “antologia” significa etimologicamente) com coesão e significado... (Mais)
Capitão América. AAVV (Devir/Panini)
Não serão muitas vezes que darei notícias de publicações. O Correio da Manhã volta a distribuir a cada Domingo, a partir de 26 de Junho até 6 de Novembro, uma nova série de revistas ou livros (conforme desejarem entender) de banda desenhada. Once again, são publicadas pela Panini, mas com a ajuda preciosa da equipa da Devir. Chamar-se-á Série Ouro, os Clássicos da Banda Desenhada, mas pela lista apresentada parece-me que o “ouro” está mais na relação formato-impressão-preço do que na escolha propriamente dita. A esmagadora maioria dos volumes serão dedicados a personagens (18 de 20), mais de metade norte-americanas, do universo dos super-heróis (com excepção para Gardfield e uma coisa qualquer chamada de Star Wars). Há reincidências em relação à colecção anterior (Mônica, Hulk, Homem-Aranha), mas algumas novidades, com os clássicos franco-belgas Spirou, Gaston e banda desenhada verdadeiramente alternativa, com Michel Vaillant (porque só um outsider a todos os níveis ainda pode ler tal coisa). O mais estranho dos volumes incluídos será, sem dúvida alguma, o de Jirô Taniguchi. Se bem que também dá uma valente paulada na palavra “clássico”, este será, na minha pouco humilde opinião, a obra de maior qualidade a vários níveis desta colecção. A estreia em português deste autor japonês será com O Homem que Caminha, e é uma excelente introdução à sua obra (ver abaixo notas sobre Le Journal de Mon Père). Outra surpresa, discutível em termos críticos mas inteligente e bem-vinda em termos estratégicos e comerciais (“quem pode, pode”), é a inclusão de um volume de José Carlos Fernandes.
Os textos estarão a cargo sobretudo de João Miguel Lameiras, com o seu estilo claro e informativo, entre outros, o que garantirão uma excelente qualidade das publicações enquanto livros a guardar pelos reincidentes e pelos novatos a descobrirem estas leituras. A tradução do Paulo Moreira já deste volume é, como sempre, escorreita, e teremos certamente outras razões para esta ser uma daquelas colecções facilmente nas mãos de muita gente. Não é muito diversificada a colecção no seu interior, e isso agregar-se-á a circunstâncias editoriais, de mercado, etc., mas ainda assim...
25 de junho de 2005
Unico. Osamu Tezuka (Soleil)
Tal como a fénix na série já indicada, também aqui o unicórnio, unicorne, ou licorne é um símbolo de desculpa para contar uma história maior do que o verdadeiro protagonista da narrativa apresentada. O próprio Tezuka achava esta personagem “demasiado perfeita, demasiado lisa”, ou seja, não se aguentaria por ela própria sem ser enquanto imagem. De novo, o problema de géneros surge aqui, uma vez que estamos perante uma obra pensada num e para um mercado internacional (sobretudo ocidental) e estruturada como tal, que dá uso a um desenho muito próximo da animação – uma das paixões e influências de Tezuka – para recontar um velho, velho mito. O prólogo abre com a história de Eros e Psique, cuja primeira versão escrita se encontra em O Burro de Ouro de Apuleio (séc. II da EC), cujos elementos despoletariam um rol sem fim de outras narrativas ditas “populares” – não sendo A Bela e o Monstro a menos conhecida. Tezuka, porém, pega em todos os elementos da lenda helénica e na versão latina para os seus fins específicos, de entretenimento em primeiro lugar, mas com objectivos segundos que o tornam – tal como a Carl Barks – num autor que, trabalhando no interior de limitações a vários níveis (editoriais, de amplitude a um público infantil, formais, etc.), tem forças suficientes para se suster para além desses mesmos limites. Dada uma maldição de Vénus, Unico tem de atravessar os tempos numa permanente errância, mas sempre se cruzando com novas amizades...
O unicórnio em questão está mais próximo do Kirin japonês (mas ecoando-se por toda a Ásia), criatura de longo pescoço que garante bonança e alegria aos puros de coração, do que do selvagem animal das mais velhas lendas ocidentais. Um pouco como o mesmo grau de diferença entre o temível dragão medieval e o dócil e sábio dragão chinês. Para quem viu Mononoke Hime/Princesa Mononoke, de Miyazaki, autor que moralmente se aparenta muito a Tezuka, lembrar-se-á daquela criatura parecida com um veado no final, o “Grande Espírito da Floresta” ou “Shishi Gami”, de certa forma aparentado com esse Kirin. Há, porém, ainda a mistura das lendas semi-cristãs do unicórnio mais facilmente capturado por uma pura virgem do que por experienciados caçadores, como as famosíssimas tapeçarias de Cluny atestam.
Mas, poder-me-ão dizer, para que tanta citação, tantas referências? Não será esse um exercício saloio de erudição? Sim, pode ser que seja, e até poderia continuar por Romeu e Julieta, por Hiawatha, por Tolstoi e Sófocles, ou outros. A razão é simples: é que Tezuka parece querer demonstrar que a (sua) banda desenhada pode ser um elo na contínua cadeia das narrativas cujas vidas, pulsões e reverberações ultrapassam as dos textos que as inauguram (mesmo que esse texto seja um de Shakespeare), como se não houvesse de facto distinção entre poemas antigos e contos modernos, literatura de génio e tradições populares, como se não houvesse necessidade por fronteiras nacionais, temporais ou linguísticas nesse enorme e inorganizado espaço a que se pode dar o nome de “bosques da ficção”. Como disse, Unico é uma desculpa, pois cada curto episódio perfaz uma curta história que atravessa vários tempos, culturas, civilizações, e personagens que o pequeno animal vai ajudando. Trata-se, portanto, de uma pequena tentativa de retratar a unidade das emoções humanas na sua multiplicidade de expressões. Publicado na segunda metade da década de 70, não posso deixar o ler como, a um só tempo, um “aquecimento” e um “melhoramento” a uma fórmula repetida, ainda que num outro registo mais maduro e mais ambicioso, na série Phoenix. Outros temas em comum entre as duas séries (e toda a obra de Tezuka, enfim) é a preocupação em entender o Outro como ser humano digno de compreensão e compaixão, sendo o sofrimento o mesmo, e uma visão holística da Natureza enquanto espaço privilegiado da confirmação da existência do divino (as preocupações ecológicas do autor revestem-se de contornos quase místicos, o que permite uma outra aproximação a Miyazaki).
Uma vez que o público desta obra em particular será bem mais infantil que o dessoutra série (ou de Buddha, ou das narrativas adultas), notar-se-á na forma como as personagens surgem, na inexistência de verdadeiras demonizações dos inimigos, nos traços simples e nos passes mágicos a cada instante, etc. Isso não impede Tezuka de fazer pequenas incursões nos experimentalismos formais pelos quais é conhecido, sendo o mais visível as vinhetas “fora” das pranchas, como se estas continuassem indefinidamente num espaço outro fora da página física...
Outros expedientes cómicos passam, como de costume, por recursos metalinguísticos, utilizando os próprios elementos formais da banda desenhada para despoletar uma acção - como utilizar os balões como transporte de fuga ou combustível numa fogueira (e as letras estalam!) – ou utilizar uma referência que dissolve a fronteira entre esta narrativa presente e outras – Titânia queixando-se que os jovens já não lêem os clássicos, como Sonho de Uma Noite de Verão, e só têm olhos para a banda desenhada, mas precisamente numa banda desenhada que faz uso e jus a inúmeros clássicos desses! O que apenas reforça a ideia avançada atrás de uma certa continuidade de ficções. O facto do protagonista se esquecer sistematicamente das outras personagens com as quais se relaciona a cada episódio-conto demonstra, por um lado, uma inteligente estratégia (comercial?) de os poder ler separadamente. Mas também não apontará para uma realidade das emoções humanas: é que cada novo amor, “indelével e eterno”, apaga impreterivelmente qualquer velho e anterior amor, também ele antes “indelével e eterno”.
Barbara. Osamu Tezuka (Delcourt)
Esta é uma das séries mais “adultas” que Tezuka criou, juntamente com I.L (série também do início dos anos 70, sobre uma misteriosa mulher que se pode transformar fisicamente, e que se envolve em várias e estrambólicas estórias de amores de vário tipo, mesmo perversos; que eu saiba, ainda não traduzida no Ocidente), e com a excepção dos trabalhos semi-pornográficos. É óbvio que reduzo aqui o ser adulto a aspectos graficamente fortes ou a temáticas específicas, não só sexuais, já que se falasse antes de maturidade criativa, erigiria em primeiríssimo lugar Buddha, Os Três Adolfos e Phoenix. As referências são bem mais adultas no que diz respeito à cultura sua contemporânea: contestação política, o entretimento adulto no Japão, de bares a clubes privados, até mesmo à própria questão da liberdade e forças criativas de um artista.
De acordo com o autor, foram-lhe estes contos despoletados pela exposição aos Contos de Hoffmann, última ópera de Jacques Offenbach, ou seja, em curtas histórias de um ambiente lúgubre, envolto na dúvida do fantástico, e que sempre apontava para os recessos mais obscuros da alma humana. Porém, a redenção do amor está sempre esperando no final. Basta compararem ambas as obras para entenderem de imediato e sem esforço os pontos em comum. Um escritor de renome, Yôsuke Mikura, alberga em sua casa o que pensa ser uma jovem alcoólica sem-abrigo e sem rei nem roque, que se chama Barbara, uma hippie (com a cultura que lhe seria inerente no Japão dos anos 70, um dos aspectos mais datados). Ela apaixonar-se-á sempre por mulheres quase inatingíveis, mas sempre descobrimos que se tratam de ilusões macabras, pequenas comédias de erros: ou era um manequim, um animal, um fantasma, tudo erros atrás de erros... Mas a maior ilusão talvez venha a ser a própria Barbara, que o autor vai descobrindo e com quem vai ganhando uma mais profunda afeição. Nem sempre para o seu bem, como se entenderá. Há depois pequenas variações das ilusões que se lhe surgem pelo caminho.
Apesar do texto explicativo desta série do próprio Tezuka, incluído nesta versão (cuidada a este nível, com elucidativas notas), concordo com o editor em não entender que associação faz o autor japonês entre “Barbara” (mesmo na sua corruptela em japonês, “barubora”) com uma das musas da Antiguidade grega. De acordo com as características apontadas, parece tratar-se de Calíope – a mesma que Gaiman utilizou num dos mais auto-reflexivos episódios de The Sandman -, mas a estranheza do nome mantém-se. Aliás, esta aproximação com Gaiman não é de todo indiferente, se tivermos em conta que uma das linhas temáticas deste título é precisamente o perigo em procurarmos satisfazer os nossos desejos a qualquer custo, pois “o preço de os obter, de ter o que se deseja, é realizar o que se desejara antes” (como diz o Sandman de Gaiman num outro episódio, Sonho de uma noite de verão). E há outros detalhes que nos fazem aproximar o escritor Mikura, de Barbara, com Richard Madoc, o de Calíope.
Todas as características que tenho apontado a Tezuka se mantêm nesta série, ainda que com as suas especificidades, naturalmente. Há mais citações directas e indicadas, como será de esperar num livro em que passam escritores e literatura na sua parada habitual (e de certo modo criticados) Os enquadramentos são menos fantasiosos que noutros títulos já referenciados, mas isso apenas reforça o poder de quando surgem fora dos eixo costumeiros, retratando a vertigem de um autor com a sua própria (e necessária) loucura. Pergunto-me até que ponto Tezuka se reveria nesta sua personagem.
Corps de Rêves. Capucine (Le Cycliste)
Sendo homem, e não sendo pai, não posso de forma alguma compreender o que representará verdadeiramente uma gravidez. Mas o meu objetivo é falar de livros de banda desenhada, não da vida (dos outros). Também não tenho o hábito de desviar planetas com as mãos, ou de desmantelar redes de espiões nazis, ou de procurar a mulher dos meus sonhos nas planícies nevadas do Alasca, e isso não me impede de ler livros sobre esses mesmos acontecimentos.
Falo dito porque devemos fazer sempre, na crítica, uma enorme distinção entre a arte que estamos lendo e tentando apreciar, e a vida, tal qual ela se nos surge nos nossos dias vivos e como ela se nos representa nesses livros. São domínios diferentes, partilháveis na pessoa do autor, na Ideia que está por detrás do que ele ou ela criarão, mas deixam-se ficar por aí.
Capucine é uma jovem francesa maquetista, de acordo com a biografia da editora deste seu primeiro livro (www.lecycliste.com). O desenho de banda desenhada era um sonho acalentado há muito, e foi a sua gravidez que lhe permitiu tempo e tema de o fazer. Este é uma espécie de diário, feito de curtos episódios, que retratam desde o momento em que se apercebeu estar grávida até ao momento do nascimento da filha. Sendo um simples retrato, e não se integrando numa narrativa maior, não possui nada de espectacular a não ser todos os picos e fundos pelos quais um casal passa durante uma gravidez (crises e febres, a transformação do corpo, dúvidas e temores, jogos e curas). O desenho não é escorreitamente contínuo, e tantas vezes parece um rápido croquis simples como perfis de uma pincelada à la Baudoin. As pranchas também oscilam de tipologia, mas não surgem como um consciente jogo de registos, mas antes como um work in progress que encontrou felizardamente uma editora que lhe permitiu ser mais do que um fanzine (em termos editoriais, este comentário nada mais representa).
Ainda assim, haverá público que se comova com estas pequenas aventuras, os que têm a experiência rir-se-ão por proximidade e compreensão, os que esperam vir a ter colocar-se-ão de imediato perguntas pertinentes. Mas lá está, esse já é um círculo de ideias que faz parte da vida de cada um, e não da arte que aqui se dá a ler...
Fujisan. Akira Sasô (Kodansha/Casterman)
Discuta-se o que bem se desejar de como classificar elevações, e qual a altitude a partir da qual se diferencia um monte de uma montanha, a verdade é que tudo reside nos jogos de linguagem de cada cultura. Qualquer elevação majestosa, no complexo cultural China-Coreia-Japão, leva o nome de “san” (山), que pode ou não ser traduzido por “montanha” em português. O Fuji (um vulcão, na verdade) não é excepção, e a sua evolução enquanto símbolo é complexa e muitas vezes mal-interpretada de fora. Seja como for, é uma das formas dos japoneses expressarem a sua “singularidade”, “superioridade”, etc. Cada um com o seu chauvinismo. O que nos importa é que esse sentimento nacionalista e de orgulho em relação ao Fuji levou a uma multiplicidade de expressões, poéticas e visuais sobretudo. A própria forma de escrever o seu nome é por vezes alvo de interpretações, permitindo-se escrever vários ideogramas chineses (ou kanji, para os japoneses) que darão leituras tão diversas como “não-dois” (incomparável), “não-morte” (imortal), “cavalheiro próspero”, de acordo com estudiosos de Katsushika Hokusai (1760-1849), talvez o mais famoso artista de gravuras japonês entre nós.
Falo de Hokusai propositadamente, pois é ele o autor das sobejamente conhecidas 36 vistas do monte Fuji (na verdade, 46), longas gravuras coloridas que representam várias paisagens que sempre incluem o Fuji, sob vários climas, relacionando-o com várias actividades, etc. Hokusai não foi o primeiro a entregar-se a esses exercícios, nem o último, mas talvez seja – ainda de acordo com muitos críticos especializados – como o mais conseguido, sobretudo com a sua obra mais tardia, em três volumes, e a preto-e-branco, 100 vistas do monte Fuji (na verdade, 102), que assinara com o nome de Gakyorojin Manji, ou “o velho louco pelo desenho”. Esta é uma obra incomparável e magnífica, onde a inventabilidade e os jogos de composição estão no centro das representações do Fuji, e porque a sua própria organização, ainda que não seja banda desenhada propriamente dita – e Hokusai tinha uma série de trabalhos intitulados Manga, ainda que numa acepção ligeiramente diferente -, permite que utilizemos os instrumentos de análise de banda desenhada para o “ler” (um pouco as mesmas questões levantadas pelos romances-em-colagem de Max Ernst, ou o recente livro de José Carlos Fernandes).
Poderá parecer um abuso, sempre que se fala de qualquer livro ou obra que tenha o Fuji como ponto central, voltar a Hokusai, mas o que me despoletou essa associação, já incipiente em toda a aproximação ao livro de Akira Sasô, é a prancha que abre o 5º capítulo, mostrando o reflexo do Fuji na água de pouca profundidade, com uma criança fazendo um monte de areia parecido com o vulcão, e ainda círculos concêntricos de água. Parece ser directamente decalcado das muitas surpreendentes e finas soluções de Hokusai em “100 vistas...”.
Este é um volume que reúne 6 histórias, de personagens movendo-se num espaço sempre em relação ao Fuji, quer por proximidade, contacto directo quer sob a sua influência (há alguns aspectos míticos e religiosos levantados por este livro). Não posso deixar de indicar uma certa desilusão com a arte de Sasô. Faz-se no final do livro uma comparação com Matsumoto, mas eu não poderia estar mais de desacordo. Ao passo que Matsumoto é um verdadeiro autor, no sentido em que deseja inscrever o seu gesto pessoal em toda a obra, Sasô é um daqueles artistas relativamente típicos que recorre a cenários (ou tramas) pré-fabricados: existem publicações com milhares de imagens feitas de quartos, locais de trabalho, fábricas, ruas, transportes, máquinas, etc., nas quais basta desenhar as personagens por cima. Vejam-se, por exemplo, as vinhetas em que a modista Rinko Kinoshita trabalha no seu atelier. Quase lembrariam típicas bandas desenhadas institucionais, de instruções industriais e fabris, mas ao passo que uma autora como Françoise Mouly faz uso dessa arte pobre (não povera, pobre mesmo) para um fim inusitado (penso numa prancha na Raw), Sasô surge-me como simplesmente pouco inventivo. Às suas personagens, seja como for, falta-lhes contorno, carácter, força. Parecem meras funções narrativas, reduzidas ao seu mínimo. Porém, revela muito o facto de um dos símbolos de orgulho nacional estar aqui associado a histórias que rodeiam sempre a morte nos seus aspectos menos redentores: o suicídio, os abortos sucessivos, as fugas por endividamento ou crimes. Talvez seja abusivo extrapolar o livro como um retrato da situação contemporânea, mas é como se Akira Sasô desejasse, através de ficções que se associam mas torcem uma tradição de elogio, apontar um dedo acusatório a problemas reais e graves do Japão dos nossos dias.
24 de junho de 2005
Seven Soldiers. Grant Morrison et al. (DC Comics)
E se existisse um punhado de super-heróis de segunda, desempregados, que fossem utilizados por organizações secretas conspirativas numa experiência tardo-místico-extraterrestre-paranormal para fins linguístico-político-trans-civilizacionais obscuros? E se todas as histórias individuais pudessem ser parte de uma história maior, se combinadas (esperem lá, não é o que a Marvel e a DC fazem há anos para vender títulos?) Oh, não! Mais uma tortuosa imbricação de Grant Morrison pelos obscuros corredores da história da DC para revamp(irizar) os pobres e tolos fatos-de-treino coloridos e provar as suas capacidades pessoais do uso e emprego da sálvia e do MDMA na criatividade da bd. Nas suas bancas durante os próximos anos...
23 de junho de 2005
S. Vicente & os Corvos. João Paulo Cotrim e Alex Gozblau (Meiosdarte)
Desconfio que o tom com que Cotrim se dirige aos seus leitores, menores num mundo maior, é apenas um ponto disfarçado para se dirigir a todos nós, maiores, nos nossos menores mundos. Quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto, e os pontos que Cotrim sempre soma são os de uma linguagem falsamente despojada e que sempre aponta a riquezas até então invisíveis. Todos sabemos a lenda de S. Vicente e dos corvos. Ninguém conhece esta lenda. Não é paradoxo nenhum, são as ondas que ora vêm ora partem, conforme os livros. E conforme quem os contam
20 de junho de 2005
O Hábito faz o Monstro. João Almeida e amigos.
Os fanzines são muito parecidos, de certa maneira, com as opiniões. Isto é, existem, têm direito de existir, quase todas as pessoas as têm, mas não têm maior peso do que essa existência. Podemos, ou melhor, apenas podemos, desejando ou não, concordar ou discordar e pouco mais. O Hábito Faz o Monstro chegou ao seu terceiro número, dito "especial" ou Aço Bagaço Calhamaço. Tenta ser bastante diverso dos números anteriores, pela mudança de formato (folhas A3 dobradas) e pela inclusão de mais nomes, incluindo um peso-pesado das Caldas da Rainha, João Cabaço. Daí os trocadilhos do sub-título...
Reunindo ilustrçõs, bds de uma ou duas páginas, desenhos livres, scratchs em fotocopiadoras colagens e o que parecem ser poemas, é um fanzine no seu sentido mais clássico, de uma liberdade tal que a sua organização interna não nos surge como organização. Porém, não posso concordar com o sub-título, pois não é difícil de engolir este fanzine, como o é com o bagaço, nem me parece que tenha a força do aço...
É difícil poder apontar certas coisas a um fanzine, pois ele mesmo é avesso a um certo tipo de criticismo. Como diz o Chihuahua na contra-capa, "seja o que for estou contra". Quer dizer, possui a priori as defesas dos ataques possíveis: mas mesmo assim eu gostaria de entender a quem pertence cada trabalho (não confio nas minhas próprias educated guesses), que tivesse uma melhor impressão de alguns desenhos aumentados, etc. Uma atitude que se poderá ver típica e juvenil (mas os autores não são assim tão jovens como isso), mas que não nos impedirá de os procurar e ler e esperar que se desenvolvam nalguma direcção.
Nota: Não se vendendo nas livrarias, escrevam ao próprio autor/editor, João Almeida: lucasmalucas@hotmail.com
17 de junho de 2005
Buscavidas. Carlos Trillo e Alberto Breccia (Asa)
Não é que não queira deixar de dar os parabéns à Asa por esta aposta. Não me custa nada enviar piropos às editoras nacionais, mas custa-me, sim, estar sempre a precisar de acrescentar o terrível chavão de "pedrada no charco", pois seria bem mais feliz se o nosso charquinho, em vez de levar de vez em quando com uma pedrada, estivesse sempre em flutuações mais felizes. Enfim, que fosse, como noutros sítios - Espanha, para não ir mais longe -, um rio, não um charco.
A edição de Buscavidas, uma obra de 1982, não me parece se dever a nenhuma aposta supreendentemente nova da parte dos editores portugueses, ou corresponder a um programa próprio. Breccia ainda não é suficientemente conhecido em Portugal por todas as gerações, mas não será este o primeiro episódio de uma suposta (re)descoberta, já que o que surge é um acoplamento à segunda edição deste livro em Espanha, pela Planeta de Agostini, e em França, pela Rackham (este acoplamento, como digo, reverbera noutras plataformas da Asa, como a biografia dos autores, cut-and-translate-and-paste da enciclopédia da Lambiek, sem essa indicação, o que me parece pouco aconselhável). Porém, esta edição portuguesa é bem feita, com uma boa tradução (salvo um ou dois estranhos desvios de nível de discurso), e apesar de uma impressão que poderia ser melhorada.
No entanto, permitam-me (mais) um exercício. Lendo o texto que se apresenta na contra-capa, e rebatendo cada um dos seus argumentos, descubramos este livro.
Diz-se ser esta uma das "obras mais conseguidas" de Breccia. Logo, que o autor "explora, uma vez mais, novos territórios gráficos". No entanto, este discurso de pouco serve quando se referindo, por um lado, a uma obra com mais de 20 anos e, por outro, a um público que, em geral, não estará assim tão familiarizado com a obra do argentino. Mas estes "novos territórios gráficos" que se apontam são mesmo nomeados: o "contraste entre as manchas de branco e negro". Não entendo de modo algum porque será este território novo, já que é esse mesmo território em que Breccia habitava desde o início da sua carreira, nos anos 40, e atingiriam o apogeu com Mort Cinder (escrito por Oesterheld a partir de 1962), a meu ver mais do que com El Eternauta (com o mesmo escritor). Já para não falar de Che, feito com o seu próprio filho Enrique, esse sim, a obra-prima indubitável deste desenhador, se bem que de um experimentalismo muito elevado, bem longe daquele que havia já experimentado titubeantemente nas suas séries anteriores. E, se bem que Breccia havia já trabalhado em séries infantis, não compreendo de todo porque é que Buscavidas "faz-nos lembrar os contos infantis", já que esta obra, escrita nos arreigados e violentos últimos anos da ditadura da Junta e do seu infame Proceso (dos quais foram vítimas familiares de Oesterheld, e, porque não dizê-lo?, a própria biografia de Che), nos apresenta troços de vidas abusadas de serem adultas, isto é, em que a inocência e a pureza usualmente atribuídas às crianças está absolutamente erradicada. Só se é o facto de o traço mostrar corpos bem menos realistas que as obras mais famosas de Breccia (mas estarei a fazer uma pausa com William Wilson e Dracula...?), mais avançados nas suas características físicas representativas de personalidades mesquinhas e ensimesmadas. Parece-me, portanto, que esse é um modo redutor de entender a escrita e a representação dos contos infantis e deste Buscavidas.
Quanto ao facto de Carlos Trillo ser um "genial argumentista", não discutirei o uso banalíssimo e irritante desse adjectivo - pois jamais se entende de facto o que se entende por genial, a não ser um acrítico "gosto imenso do que ele faz". Trillo já havia trabalhado com Breccia, e desta feita tinha uns quarenta anos e alguma experiência de trabalho, bastante diversificada, como iria continuar a fazer. Mas não deixo de notar que há como que uma espécie de amadorismo, talvez, algo que o prende, ao estar sob a alçada de Breccia. As "fábulas que deixam sempre no ar uma lição de moral", para continuar a citar e rebater o texto da contra-capa, são sobre um homem, de quem não saberemos nada, a não ser o facto de parecer um arquivista da vida dos outros. Mas qual é essa moral? Uma moral policial, de controlo social, em que cada vida é catalogada e arquivada para futuras inquisições, em todas as forças desta palavra? Ou será antes uma pequena e estranha tetativa de redimir as vidas tragicómicas que se retratam, as de membros de um povo sem satisfação amorosa, sexual, profissional, familiar? Se houver alguma moral, então é análoga à que se encontra em escritores como Max Aub, e os seus Crimes Exemplares. Ou seja, que o homem e a mulher, dadas certas circunstâncias - que Buscavidas, diagonalmente, tenta acusar e minar -, são capazes das mais puras das abjecções e vinganças.
Nota: o texto que aqui critico está na edição espanhola, e assim copiado para a portuguesa. Na francesa, há uma entrevista a Trillo, nalguns pontos iluminadora, e uma excelente nota editorial a abrir o livro. A responsabilidade do mau texto não é da Asa, mas sim a sua continuidade.
A Última Obra-prima de Aaron Slobodj. José Carlos Fernandes (Devir)
À Procura da Obra-Prima Perdida
ou, para uma apreciação analítica de José Carlos Fernandes
É Paul Ricoeur, em Temps et récit, tomo 1º, quem mais cabalmente conseguiu uma aproximação entre a questão de incompletude do tempo no homem, em Santo Agostinho, e a sua inversão (como se uma espécie de salvação se tratasse) através da ordem garantida pela arte da literatura (e suas implicações nas outras artes), conforme a Poética de Aristóteles.
Num dos passos decisivos da obra do filósofo grego, apontam-se os três traços distintivos que tornam a definição do muthos – grafia diferente de mythos, precisamente para estabelecer a precedência da “sustentação dos factos” sobre a mera “história”, ou melhor, “estória” – mais próxima dessa ordem que se estabelece pela arte em contrariedade à desordem da vida vivida. “A tragédia é a representação de uma acção completa (téléias) que forma um todo (holès) e tem uma certa extensão (mégéthos)” (Poética, 1450b 26).
No escopo deste artigo, teremos necessariamente de afunilar, provocando simplificações brutais e violentas, sobre a complexidade e premência destas discussões. No entanto, de forma a avançar, diremos que “ser um todo é ter principio, meio e fim” (Idem, 1450b 26), mas que não implica necessariamente, em relação ao princípio, uma “ausência de antecedentes, mas a ausência da necessidade na sucessão” (Ricoeur, pg. 66). Todos os “tempos” estão subordinados às necessidades e às conexões lógicas da acção do que se conta, e não fruto de uma tal experiência empírica. São “efeitos da ordenação do poema” (idem, 67). Assim como os restantes traços distintivos, uma vez que, ainda de acordo com Ricoeur, Aristóteles não parece interessado em se dedicar às intricadas questões da temporalidade, mas antes à construção da intriga, sublinhando assim o facto que “o laço interno da intriga [uma outra mais aclarada tradução de mythos/muthos] é lógica mais que cronológica” (idem, 68). Uma coerência interna, portanto, que se institui e dilui dentro dos limites da obra mesma.
Uma outra oposição que existe na Poética é aquela que Aristóteles institui entre História (tal como entendida após Heródoto) e a poesia. Valerá a pena revisitar todo o trecho:
O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um se exprimir em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada do seu carácter de História. Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. (Poética, 1451b 1-7)
Ora, o que José Carlos Fernandes faz em A Última Obra-Prima de Aaron Slobodj é precisamente uma mistura de ambos os modos, graças a um curto-circuito que a ficção historiográfica permite à nossa recepção dos factos históricos. A meta-linguagem a que se propõe possui sempre os frutos da ironia distante, do sarcasmo intelectual, e da brilhante descoberta de conexões novas entre esses mesmos acontecimentos, até então desassociados. No entanto, deveremos analisar de perto essas mesmas conexões e tentar descobrir que tipo de metáfora – utilizo este termo o mais próximo possível da sua etimologia, “transporte através ou por sobre” (grego metapherein) – o autor institui.
O name-dropping, ou a capacidade de indicar nomes sonantes das artes e da cultura em geral em profusão, seja essa citação propositada ou não, quando é elevada a um exagero criativo, torna-se fonte de um sentimento duplo: por um lado, uma certa cumplicidade entre o autor e o leitor, quando este é capaz de entender as origens dessas citações, e a sua pertinência e valor na narrativa, por outro, uma espécie de desprezo que ri da circularidade dessas mesmas citações, que apenas prendem as personagens de José Carlos Fernandes aos seus particulares universos, encerrados sobre si próprios. É precisamente pela catadupa e cruzamento de marcos universais e transversais que torna cada universo montado nas suas obras esses pequenos ataques de claustrofobia dos quais as personagens se tentam, em vão, libertar. É neste ponto, e apenas neste ponto, ainda que de um modo muito, muito diferente do escritor checo, que se poderá permitir o uso de “kafkiano” à obra do autor português. Mas essa comparação esgota-se imediatamente nesse mesmo ponto, já que Kafka utilizava instrumentos bem diferentes: uma linguagem seca e nada rebuscada, uma aposta maior na indeterminação de todas as referências materiais (espaços, tempos, físico das personagens), um apagamento de referências concretas, fossem estas pessoais ou históricas.
Não é bem-vindo o exercício de transpor e aplicar conceitos ou princípios organizativos de uma área para uma outra, distinta, se essa transposição não implicar ela-mesma uma transformação desses conceitos. A banda desenhada, é discutido, vive com a permanente apresentação de dois eixos temporais e organizativos do (seu) discurso, aos quais se poderá chamar paradigmático e sintagmático, associando o primeiro à esfera das acções, em que os seus termos (agentes, meios, circunstâncias, etc.) são sincrónicos, pois reversíveis, e o segundo ao do récit, da intriga, do contar, já numa estruturação diacrónica. A passagem do primeiro ao segundo dá-se através da actualização – em que termos com significados apenas virtuais se recobrem ou, melhor, se preenchem de sentido na sua sequencialização (poderemos pensar em deícticos, na gramática, em elementos mínimos ou gerais, convencionais, na banda desenhada como linhas de acção, os balões, os espaços?) – e da integração – os termos paradigmáticos colocando-se em relação uns com os outros, contribuindo a uma totalidade de co-acção (Ricoeur, pgs. 90-91). Uma história, portanto, apenas se compreende se entendermos o que se passa em ambas as esferas: a das acções (“o que se passa”) e a da estória (“como nos é contado”). Será bem mais inteligível se pensarmos em experiências onde isso tenha falhado: por exemplo, ao ler uma mangá deparamos com uma série de convenções que não encontram correspondente nas nossas tradições (franco-belga e americana) e que nos podem lançar em confusão ou quebra do ritmo de leitura – uma bolha de líquido saindo do nariz para indicar sono, e não um serrote num tronco, o nariz a sangrar assinalando a concupiscência, a alteração radical das figuras das personagens para desenhos mais simplificados para indicar um passo de surpresa dessas mesmas personagens (o termo japonês é chibi; vejam o Glossário em http://www.clubotaku.org/), etc. Por outro lado, mesmo que entendamos as convenções do contar, podemos deparar-nos com exemplos de acções que não compreendemos, pois terá a ver com a cultura retratada – uma língua de fora de um tibetano, um cigano cuspindo sobre uma criança.
As “críticas” que leio em relação a este livro ou se cingem a elogios que passam pela esfera pessoal – e já sabem que a vida de um artista nada tem a ver com a sua obra – ou passam por extrapolações que nada têm a ver com o livro, mas sim com questões de recepção, catalogação, etc. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... É por isso que esta associação conceptual, entre filosofia ou outros métodos críticos em geral e os textos de bd, me interessa, é nesse trabalho que me importa aplicar.
Aristóteles já deu as respostas todas, e é por isso que se torna sempre, a cada leitura, um clássico: o filósofo acusa de desnecessário e inverosímeis a intriga feita por episódios que se seguem uns aos outros, ao invés de se encadearem uns nos outros, isto é, um segue “por causa do outro”. Aaron Slobodj torna-se uma personagem tão mais vazia quanto mais surge como função de causalidade. Isto é, não é pessoa completa, mas antes uma “causa”: é por causa de Slobodj que X faz isto ou que Y consegue aquilo, etc. Mas haverá, ainda assim, encadeamento entre os vários episódios?
É precisamente aqui que reside a aposta de Fernandes no indistinto que o seu livro-jogo permite, e aí que se encontra a sua maior defesa e fortaleza. É como se soubesse, como se adivinhasse antecipadamente que ataques poderiam existir da parte dos leitores ou comentadores, e recobrisse toda A Obra-Prima de um campo de força defensiva, que baralha essas mesmas flechas repentinas, derivadas da irreflexão, da apressada consideração, do folhear desatento do seu livro, tornando-as inúteis antes de serem disparadas e ridículas depois o serem.
O facto de eleger a paradoxalidade de uma causalidade sem cronologia, sem ordem aparente, sem mapeamento possível de si-mesma, lança este livro num exercício total da contemporaneidade: ainda (ou sempre) com Aristóteles, vemos estarem ausentes os pontos nodais que tornam determinada intriga complexa – o golpe de teatro (ou a peripécia), o reconhecimento (ou a anagnôrisis) e o efeito violento (ou o pathos). Não existirão enquanto pontos nodais, é certo, mas talvez existam em todas as páginas, todas as pranchas: o reconhecimento dessa causalidade que Slobdj é, o golpe de teatro colocando-o precisamente como causa, e o efeito violento que isso provoca no leitor, que melhor interpela desse modo o que apenas a ficção historiográfica consegue cumprir, ou seja, a instalação da dúvida: “E se isto foi mesmo assim?” Fenomenologicamente falando, o leitor experiencia todos estes níveis de tempo, todos estes espaços, aqui presentes, numa fixação sem centro, numa leitura da multiplicidade que constitui a própria obra, isto é, o livro que se tem nas mãos.
O que permite este contínuo jogo de escrever as regras, possuir a liberdade de as não cumprir fazendo novas regras e assim por diante é uma das condições necessárias da arte contemporânea. Socorrendo-nos de Rainer Rochlitz, é o terceiro, derradeiro e central pilar das suas teses que ele aponta como limite (não limitativo, mas circunstancial da acção): “o contexto institucional e político da arte contemporânea tende a neutralizar esses critérios” (Subversion et Subvention. Art contemporain et argumentation esthétique, pg. 19) pois “a época contemporânea ensaia a institucionalização da revolta e faz coexistir a subversão e a subvenção” (idem). Esta coexistência é perene em cada livro de José Carlos Fernandes, já que a subversão existe sem dúvida no seu programa – o reemprego de personagens ou nomes sobejamente conhecidos e aos quais se associam como que pré-conceitos, pré-noções diegéticas ou “de imaginários”, os cruzamentos e o consequente curto-circuito de qualquer teoria dos géneros, a fragmentação sucessiva no interior de cada série ou história, impedindo a emergência de um universo que tudo englobe e, por isso mesmo e ao mesmo tempo, a emergência de um universo próprio, feito de ruínas e colagens – assim como a subvenção – as bolsas de criação, os prémios, o apoio, agora, de uma editora despreconceituada e arriscando/apostando no autor, as ligações que vai conseguindo com outras plataformas de expressão (recentemente, o cinema), a profissionalização, etc.
Enfim, a crítica, sobretudo a filosófica, deve despojar-se das suas opiniões ou gostos pessoais, para poder atingir os critérios discursivos e analíticos do que permite ver, na obra, e só na obra – não obstante o possível recurso (ou excurso) a informações exteriores à mesma -, aquilo que, de novo com Rochlitz, se pode chamar “graça”, por oposição a uma certa inércia dos comentários em torno da “intenção” ou “conceito” do artista. Para além das heranças distorcidas de um certo romantismo, a obra de arte existirá malgré o próprio artista; no momento em que ela é desperta e ofertada ao mundo, já se divorcia do gesto que a criara. Há como que uma vingança, uma “morte ao pai”, necessariamente forte nas obras fortemente necessárias. E isto não é um jogo de palavras, mas sim o que quer dizer, mesmo.
Em relação a obras anteriores de Fernandes, esta apenas é diferente em termos superficiais – a forma do livro. Não se assume um estilo diferente, nem chega a criar uma linguagem diversa no seu próprio estilo – as citações, os trocadilhos, etc. – como, apenas como exemplo, Manuel Tiago consegue fazer, de entre os autores portugueses contemporâneos. O projectar de um trabalho próprio a uma outra origem autoral e “traduzi-la” ou “editá-la” também não é inédito, tendo em conta O Peregrino Blindado de Eduardo Batarda, as adaptações de André Lemos de autores fictícios, etc. Isto no campo da banda desenhada, para não irmos mais longe. O prefácio, com a sua apócrifa, ainda que exaustiva, bibliografia, faz lembrar o prólogo de Jorge de Sena a esse longo remoque nas letras portuguesas que foi o poema atribuído a frei Grabato Dias (António Quadros na realidade) com As Quibíricas. Jogos que João M. Lameiras e João R. Santos, seus cúmplices de criação (e de pensamento?), já tinham cultivado em As Cidades Visíveis. As reutilizações de Fernandes são em catadupa, como já nos habituámos (não soubesse eu da pouca visibilidade e desimportância que certas bds têm face ao mundo editorial adulto português, quase diria que vejo, numa situação em A Obra-Prima..., um pastiche a O Escritor, bd de Pedro Nora e de mim próprio, na Quadrado 4). Essas reutilizações não significam, porém, plágios, mas sim a força que Fernandes tem sobre as tradições criativas em que se inscreve.
O facto, sobejamente referido, de Fernandes ser o único autor português que vive da e para a bd de pouco lhe serve como valor acrescentado, dada a notória falta de diversidade ou multiplicidade de linguagens da sua lavra. Mais, o autor corre o risco de continuar ad aeternum a produzir este tipo de pequenas apocrifias sobre inusitados personagens do ridículo, avatares todos de uma certa ideia central. O seu traço, ao qual não podemos propriamente chamar de virtuoso, acaba por se cingir mais ao menos às mesmas poses estáticas, senão mesmo hieráticas, histriónicas, de pessoas de meia-idade... O ambiente nostálgico corroborado pela insistência na sépia não constrói uma verdadeira iconoclastia, controlada pela correcção e timidez em ser mais sarcástico talvez, nem uma acabada e franca nostalgia, que tanto poderia surgir sob a forma dos epígonos dos mestres ditos clássicos como num pastiche mentecapto à la Tom Sccioli... Ainda nos poderíamos perguntar se as “brincadeiras” à volta das artes – quer a obra de Slobodj quer os textos que a acompanham – são verdadeiramente respeitadoras e informadas pelos objectos de que falam, ou se não surgirão levemente como uma típica atitude negativa perante as mesmas: afinal, quando se reduz o trabalho de Duchamp, de Christo, de Warhol, etc., a meras boutades ou piadas, esquecendo todas as outras implicações conceptuais, intelectuais e até históricas envolvidas, não se procura um entendimento e aceitação, mas sim uma formulização do “anything goes”.
Enfim, este livro ergue-se como o Mont Analogue de René Daumal (há uma sua tradução na Vega): algures nos mares do Sul, ergue-se invisível aos olhos nus e desatentos que se deixam apenas iluminar apenas pelo sol e o empirismo e a opinião, um enorme monte, “inacessível por meios vulgares humanos”. Mas graças à perseverança e estudos dos personagens, instigados por um líder de nome Sogol – o inverso preciso e precioso de Logos, tal como explicado na novela -, conseguem chegar à ilha-montanha, ainda que jamais cheguem a subi-lo, pois o autor morreu, deixando a obra inacabada, mas não menos misteriosa e monumental.
São precisas coordenadas específicas para se entrar nesta obra, e é pela inversão das nossas expectativas mais usuais, banais até, que se conseguirá penetrar até ao âmago de A Obra-Prima, mesmo que jamais se chegue ao seu fim, isto é, que se a esgote na leitura. E há pistas que apontam para que isto se trate de um imenso McGuffin: a repetição de certos nomes nos textos aponta para que se trate de um puzzle eventualmente organizável numa estrutura clara e simples. Mas é essa intensidade contínua – parece-me a mim que inesgotável, até prova contrária – que se pode elegê-la como, de facto, a obra-prima de José Carlos Fernandes.
Kinderbook. Kan Takahama (Kodansha/Casterman)
Esta relativamente jovem autora japonesa não é muito famosa no seu país, e talvez o seja mais em França (e leitores de edições francesas), graças à sua colaboração com Frédéric Boilet em Mariko Parade (Casterman).
Esta é a edição francesa de uma colecção de histórias curtas que publicara em várias revistas, incluindo a Garo. A edição original, japonesa, pouco diferente (a última história na japonesa foi substituída por três novas na francesa) chamava-se Yellowbacks, apontando para aqueles romances baratuchos que se compram por tuta e meia. Isso é confirmado pelo teor das curtíssimas "histórias" em prosa incluidas no livro, das pessoas "pouco vulgares" e pelas personagens das bds. De facto, estamos perante um catálogo de pessoas vulgares, fazendo a sua vida vulgar e sendo confrontadas com situações vulgares, mas é o tratamento de Takahama dessas mesmas vidas que nos fazem descobrir que nada nunca é vulgar na vida de todos os dias. Por várias razões, as leves influências de um certo “gosto” europeu são mais que óbvias, mas ainda assim permite-se um olhar sobre pequenos gestos que não nos pertencem, ao princípio, mas dos quais nos apropriaremos, depois da sua leitura.
O estilo gráfico da autora dá uso a imagens dos corpos como uma espécie de fotografia contornada nos seus traços mais simples, com gradações de cinzentos e sombras. Quanto aos diálogos, estes surgem numa catadupa que não parecem seguir-se uns aos outros - aumentando à confusão de ler no sentido japonês -, mas antes retratando de próximo a forma fragmentária como falamos uns com os outros. Ora, tudo isso faz com que as situações que retrata não tenham nada de espectacular (ainda que o glamour esteja presente em certas referências) e, por isso mesmo, possam ser apelidadas de "realistas" sem com isso caír na esparrela mais corriqueira dos géneros.
Dispersion 2. Hideji Oda (Kodansha/Casterman)
Há cada vez mais projectos editoriais que nos permitem aceder a uma mais vasta visão e fruição da banda desenhada japonesa. Esta nova colecção, Sakka (v. www.sakka.info), da Casterman e da Kodansha é mais que bem-vinda, e é suficientemente ampla no seu catálogo para poder chegar a um igualmente amplo e diverso público. Os dois ideogramas chineses que compõem esta palavra são "escrita" e "casa", perfazendo "autor": o mote é "a outra mangá", isto é, "de autor", como contraponto a produções mais comerciais... Não vejo que uma classificação dessas implique necessariamente diferenças entre qualidades e forças e valores artísticos, mas deixo essa discussão para outra ocasião. Adiante.
Comecemos com o segundo volume de Dispersion, ou Diffusion em inglês, de Oda.
Uma das características que os próprios japoneses gostam sempre de sublinhar é a sua insularidade e, consequentemente, a sua singularidade. Mas tirando a parte de presunção e arrogância que cabe a cada povo, o facto é que nem sempre é fácil aos filhos do sol nascente lidarem com a ideia do Outro. Estranhamente, esta aventura que mistura tanto de ficção científica, como de maravilhoso e relato urbano-depressivo (o epílogo incluso é bastante informativo nesse sentido), lida muito bem com essas mesmas questões de identidade, alteridade e, claro está, a dispersão que apenas o amor permite ou de que o amor salva. O segundo volume desta estranha narrativa, um trabalho que se iniciou há mais de uma década atrás, e agora acessível em francês, leva-nos ainda mais longe em termos geográficos na errância do protagonista, mas algumas respostas acabam por o redimir.