29 de abril de 2006
Dia Mundial do Fanzine. Bom dia!
Esta é a proposta de João Bragança, criador dos mais interessantes fanzines, em termos formais, de que há memória. O seu Succedâneo (e outras publicações) é, sem dúvida alguma, o fanzine menos "fã" e menos "zine" de todos, mas por isso mesmo mais pleno de significado próprio, tendo atravessando variadíssimos avatares físicos, que já saíram da esfera do papel para passarem por caixas de plástico, solas de borracha, amêijoas, livrinhos compostos de selos e, mais recentemente e como apresentado na exposição Agora...chuchai no dedo... na Bedeteca, dois exemplares de um carrozine (ver foto). Do que conheço dos muitos fanzines de outros pontos do mundo, garanto-vos que o seu (aceitam-se e agradecem-se contraposições) Pecarritchitchi no. 2 (o da amêijoa) é o mais pequeno do mundo (se exceptuarmos somente os dois grãos de trigo onde está escrita a Shema Israel). Mas não é numa questão de tamanho nem de longevidade (10 anos é muito tempo) o que torna as suas publicações interessantes. É que para além de serem objectos artísticos gráficos, ou livros de autor, ou mesmo post-zines, são um espaço total e profundo de liberdade criativa. E é esse o gesto que mais importa, parece-me. Mais, João Bragança não parece estar muito preocupado com o exercício de uma certa linha estética de fácil aceitação, o que lhe seria fácil, acessível e exequível - não só pela sua formação artística, como pelo seu conhecimento de estratégias e o esforço e dedicação a que se entrega nesse mesmo discurso. É seu território o de um gesto mais político, mais democrático, de imediata relação com o seu público, conforme os workshops e a maneira como dialoga com o seu público. Vivendo num limiar entre a publicação (não necessariamente de banda desenhada, mas as suas múltiplas incursões por este território é o que me levam a prestar atenção) e as artes visuais (a divisão é "falsa", mas penso que entendem o que pretendo dizer em termos institucionais), este autor coloca no centro da sua atenção um dos interlocutores mais esquecidos de muita arte contemporânea: o espectador, cuja existência parece ser anátema do discurso actual. Claro que essa atenção transfigura-se por uma série de outras escolhas: uma ironia cáustica mas nunca proselitista, uma referência ergonómica ao corpo humano que surge das mais diversas maneiras, uma forma de reverter a sua própria vida (ou ficções nela) em objectos passíveis de fruição estética (legíveis, visíveis, experienciáveis, etc.).
Logo, considerando-o uma espécie de Pontifex Maximus (ainda que de uma visibilidade discutível) dos ritos do Mistério dos Zines (o "fan-" começa a diluir-se pela prsença de outras forças), declaro-me seu acólito seguindo, a partir de hoje, a comemorar esta data, como Dia do Fanzine.
26 de abril de 2006
The City. Frans Masereel (Dover)
Frans Masereel (1889-1972) é um desses artistas cuja obra traz problemas para a banda desenhada. Isto é, a sua inclusão na história e no corpus da banda desenhada pode ser entendida (tal como a de Max Ernst, Hokusai, Max Klinger, Philip Guston, entre outros) como uma espécie de tentativa de justificação e nobilitação da banda desenhada através da sua aproximação a “artistas mais sérios” (argumento dos detractores dessa inclusão, ou classicistas da banda desenhada) ou como um olhar flexível, questionador, em permanente reestruturação sobre a própria (impossível, como em todas as artes) definição de banda desenhada (argumento dos que o fazem, como eu). Os problemas levantados por Masereel são, porém, como veremos, superficiais. Foi ele pintor, ilustrador, gravador, com um grande e importante trabalho relacionado com movimentos de esquerda (sobretudo comunistas, anarquistas, e anti-belicistas; há uma edição do Manifesto Comunista de Marx e Engels com xilogravuras suas) durante a Primeira Guerra Mundial (e depois disso). Mas o que nos importa aqui, talvez mesmo o que mais importa “salvar do esquecimento” em relação ao trabalho de Masereel (se bem que as suas mais recentes edições alemãs e norte-americanas, como a presente, estejam em curso dessa recuperação) são os seus “romances em xilogravura”. [Talvez fosse interessante entrar pela história da xilogravura na Europa, que desde a sua emergência (ca. séculos XIV-XV) serviu propósitos populares e, rapidamente, de contestação político-social. Numa obra que reúna gravadores do século XX, por exemplo, é natural que a esmagadora maioria seja de artistas “de esquerda” (veja-se a Alemanha do regime nazi e compara-se a arte dos “pólos” políticos). Não haverá espaço para isso aqui, mas fica a noção e o contexto, no qual se inscreve o autor belga.]
Os romances em xilogravura de Masereel tratam-se de pequenos livros, com uma imagem por página, e com uma qualquer linha narrativa, bem simples por sinal, na qual é fácil detectar um ou uma protagonista, um ou vários espaços onde a acção decorrerá, outras personagens com a qual a central se relaciona, um tempo diegético organizado, etc. É por isso que disse antes ser um problema “superficial” a sua inclusão, já que tecnicamente é banda desenhada (se a reduzirmos a sequencialidade narrativa de imagens), e não levanta problemas de maior em termos estéticos como o poderá acontecer com, por exemplo, Terry Morgan, o The Cage de Martin Vaughn-James, o Poor Richard de P. Guston, ou o T.N.T. en Amérique de Jochen Gerner. Se bem que não se possa dizer que existam grandes herdeiros deste estilo ou modo de trabalho, talvez se possam ainda assim referenciar Lynd Ward, norte-americano, mas cujo trabalho é, a meu ver, um pouco mais maniqueísta e simplista que o de Masereel, e o polaco-inglês Andrzej Klimowski, mais artístico, e sobre o qual Domingos Isabelinho escreveu na Satélite Internacional no. 3. De Masereel, então, os exemplos mais famosos e acessíveis dessas suas obras são Uma História Sem Palavras (Geschichte ohne Worte /Story Without Words), O Meu Livro de Horas (Mein Stundenbuch), A Ideia (Die Idee/The Idea), O Sol (Die Sonne/The Sun) e, o presente livro, A Cidade (Die Stadt/The City). Todos rondando os anos 20, este sendo particularmente de 1925.
De entre estes títulos, na verdade, talvez A Cidade seja o menos linear, sem uma personagem única servindo quer de eixo narrativo quer de foco de atenção. É antes uma sucessão de planos sobre a cidade (abstractamente, se bem que alguns dos aspectos retratados apontem obviamente a uma metrópole ocidental, entre Berlim e Nova Iorque, Paris e Londres...). Se este meu texto vai aos solavancos, para trás e para diante na relação aproximativa ou distante da banda desenhada desta(s) obra(s) de Masereel, é porque se trata de uma imitatio do próprio movimento deste livro específico. Ele é, afinal, uma testemunha do vórtice em que as cidades modernas se começavam a tornar, aproximando-o assim das primeiríssimas páginas do romance de Robert Musil, O Homem sem Qualidades (publicado em 1930, mas escrito nos primeiros anos da década de 20), do famoso filme de Vertov, O Homem da Câmara de Filmar, de 1929, ou das primeiras cenas do de Fritz Lang, Metropolis, de 1927. Pois é esse o centro do olhar deste livro, a vida multímoda, diversa, cheia de várias velocidades, de níveis e matizes, desejos, trabalhos, entregas e desafios de uma metrópole, não “em mudança”, mas “de mudanças”. A presença da morte não é alheia a esta visão, tal como não é a crítica social, o sublinhar das disparidades, dos abismos que abre, e da esperança que resta.
Tudo isto através de uma chã e directa apresentação, sem quaisquer comentários ou transformações, ou até mesmo uma estruturação “progressiva” das imagens que pudesse ser interpretável de um modo mais fechado. Quer dizer, não é esta uma sequência encadeada de episódios, mas uma sucessão de “aspectos”. Uma questão que já tinha sido aqui debatida, a propósito de uma das obras de José Carlos Fernandes. O que não impede, de modo algum, que não possa emergir um sentido, uma força de afecção, enfim, até mesmo uma história. E essa história é a de todas as cidades modernas e, assim, a de todos os homens que nelas habitam e a compõem.
A Caixa de Areia (ou eu era dois em meu quintal). Lourenço Mutarelli (Devir)
O Brasil tem uma actividade de criação de banda desenhada muito diversa e activa, também apresentando variadíssimos níveis de qualidade em termos artísticos (como qualquer outro país), mas com alguma dificuldade em atingir renome internacional (por razões óbvias, por ser periferia cultural em termos de banda desenhada, por entraves à distribuição, etc., problemas que também nós sentimos e que se repetem noutros círculos de criação). Para que fique claro, foco aqui um certo modo “adulto” da banda desenhada, colocando de lado (não por “injustiça” mas por “escolha de atenção”) autores como Maurício de Sousa, Ziraldo, Waldyr Igayara de Souza e Renato Vinicius Caninim (estes dois foram os criadores das mais interessantes histórias do Zé Carioca, transformando profundamente esta personagem a partir do “tipo” criado pelos estúdios Disney). Nesse foco, são centrais autores como Luiz Gê, mais recentemente e ainda que se cinja a uma linha de experimentação formal-gráfica, Fábio Zimbres, e Lourenço Mutarelli. Por razões estranhas ou não, já que se prendem com problemas de distribuição que existem mesmo no interior do Brasil, em Portugal sempre tivemos a importação de revistas brasileiras, mas menos de criação brasileira (excepções com a Animal ou Chiclete com Banana). A presença da Devir Portugal no mercado tenta vergar essa situação, que nos tem garantido a presença de alguns destes autores. (Mais)
25 de abril de 2006
O Amor é Vermelho e Arde. Terry Morgan (Assírio & Alvim)
A interpretação não é evasão. A interpretação institui caminhos para a invasão. A própria palavra o implica. Ela obriga, portanto, a uma intimidade. Mas essa intimidade não é com o autor, é com a obra. Todas e quaisquer relações com um autor não fazem parte do discurso interpretativo. A sua mistura, isto é, querer procurar revelar um qualquer valor da obra através da pessoa do autor é uma obscenidade, no seu sentido mais plano: obsceno é aquilo que, na tragédia, deveria ficar “fora de cena”.
A dor não pode ser partilhada. Das experiências humanas, podemos partilhar o riso, um gosto, um pequeno ódio, o prazer físico, dos mais superficiais aos mais profundos. Há outras que se postam num limiar, como um medo comum, a maternidade, uma felicidade intensa. Mas à dor é impossível. Querer “compreender” a dor de outra pessoa está fora do nosso alcance. Todas as experiências de um indivíduo são, por natureza, singulares, logo, únicas, a as comparações parecem roubar parte dessa singularidade. As dores de uma pessoa podem, até certo ponto, reflectir-se nas de um outro, mas serão sempre como espelhos virados um ao outro: reflectem-se, criando um corredor infinito, mas as superfícies jamais se confundem. Tudo isto fazendo parte do seguinte axioma: é impossível conhecer-se o homem. Dito isto, este livro abre-nos caminhos para uma dor qualquer íntima da autora, que intuímos, mas não podemos fazer nossa, só espelharmo-nos nela. Esta dor (herdada de um livro anterior) é, não obstante, redimida no final pelo amor cumprido, mas não é por isso menos presente.
Este livro é composto por imagens singulares, a cada “folha boa”, para utilizar uma expressão de R. Töpffer, acompanhadas por umas palavras que podem ser vistas como títulos, legendas, comentários, reformulações verbais das imagens... Muitas destas imagens são relativamente (com o titulus) auto-explicativas (Enamoramento, O meu retrato), outras fazem recordar a arte alegórica que une um Dürer a um De Chirico (A vida, O encontro, O passado), e ainda outras que se revelam de um modo muito próprio (Os meus demónios), não necessariamente de uma forma óbvia. O profuso e paciente trabalho de tramas, sombras e padrões para aceder a uma volumetria são de uma dedicação extrema, e que mais uma vez nos remete a um sentido barroco, não o negativo horror vacui, mas antes o que Gombrich chamou de amor infini, se bem que muitas das imagens apresentem grandes planos brancos/vazios (Ansiedade, O pânico) ou em que o hatching serve para abrir um outro tipo de esvaziamento (A esperança, O meu retrato), ou até ambos ao mesmo tempo (A posse). A inclusão de cor neste segundo volume parece ser feita para ser apagada, pelos tons mortiços, e que estabelecem uma quase-continuidade (Alguém respondeu por ti).
Centremo-nos, então, numa só imagem, para que possamos ver de mais perto, sem nela tocar, a dor a que me refiro. Veja-se O abrigo (aqui incluída). Não posso substituir uma imagem por outra, para a explicitar. Ela existe e fala por si. Mas posso tentar aproximar-me dela, mesmo que a tenha de rodear várias vezes. Esta menina, a imagem toda, é paradoxal. Misturam-se nela um medo, uma insegurança, um perigo, que não estão anunciados pelo título (que como vimos funciona mais como um comentário verbal). Os olhos dela, negros, cavados, esvaziados talvez, impedem qualquer partilha, mas o ricto da sua face assume um tom de desafio incontornável. O abrigo está aberto, é um muro, ou o fim de um caminho que não se pode continuar, na fuga de um acossador; o abrigo não a protege a ela nem à sua inocência, uma inocência que parece ter já sofrido (veja-se a obra anterior, Lua Negra, A & A: 2000, havendo aqui abertamente uma aliança entre as duas); o rosto dela parece indicar-nos que cessou de ter medo, que nos ameaça agora a nós. Uma “Capuchinho Vermelho” invertida, que interiorizou o terror e agora o devolve ao seu adversário. É como se estivéssemos perante círculos concêntricos e alternados de insegurança/medo e de desafio/audácia, e à medida que nos aproximássemos ora experienciássemos um ora outro, sem jamais poder atingir um estado definitivo.
É possível, como acabei de indicar, senão necessário, mesmo não tomando em conta o posfácio deste livro, relacionar os dois livros de Morgan, este e o anterior Lua Negra, trabalhos separados, mesmo nos seus temas evidentes – infância e crescimento antes e agora o amor. Mas estamos em crer que a vida de Morgan se plasma à sua arte, não como se se esgotasse nela, mas como se para além dessa arte deixasse de ser vida; como se, para nós, passasse a ser apenas uma vida outra, a qual não nos pertence: pois é somente a que está na obra a nossa também.
Digo que o tema é o amor. Dir-me-ão que isso é óbvio. Sem dúvida. Mas as obviedades não nos impedem de a elas prestar atenção e ponderar as implicações. O título, com um sabor algo camoniano (as ligações da autora com Portugal devem ser maiores do que se esperam), apresenta-nos uma capa que remete ao amor cristológico, ao ágape, mas todo o seu interior representa um claríssimo amor entre uma mulher e um homem desejado, carnal. É um amor claramente difícil (Armadilha, Os argumentos vs. O desespero, A rotina, O conflito), mas que tem momentos de encontro e ternura (Os nossos dias, Destino comum, As saudades, O reencontro...). Talvez então o símbolo do ágape remeta antes para uma procura pelo maior humanismo possível no amor entre duas pessoas, o desinteresse a que deve estar submetido um verdadeiro amor (seja isso o que for).
Poder-se-ia pensar, numa leitura apressada, que O Amor... (tal como A Lua Negra), não é uma obra narrativa, mas que seria uma espécie de “ciclo de imagens”, que só no seu cômputo final e global acederia a um sentido uno. Daí que uma associação aos ciclos de Hokusai (a quem se faz uma referência directa verbal e uma indirecta visual), não seja de todo displicente. Mas a verdade é que estes ciclos de Terry Morgan são bem mais narrativos do que isso, e de um modo claro, por vezes mesmo estabelecendo-se relações imediatas entre duas imagens (novamente, Os argumentos e O desespero) ou um grupo maior que perfazem um “episódio” ou uma “parte”. Há mesmo um “final feliz” para este Amor: Retrospectivamente, podemos ver esse “final” como incluindo as seis últimas imagens, ou as sete, as oito, as nove, as dez, e assim, a cada maior abertura – mas não incluindo, parece-me, Expiação – atingindo um sentido diverso. Para utilizar uma expressão que um professor de literatura certa vez usou (a quem infelizmente não poderei fazer justiça, pois esqueci-me do seu nome), a propósito de uma obra, também a de Terry Morgan vive numa “bondade semântica”, isto é, abrindo um campo vastíssimo de interpretações possíveis, que não se esgotaram, de modo algum, com a presente.
Nota: independentemente e mais do que os “segredos” ou as “verdades”, importa respeitar – e isto repito-o de outras ocasiões – não a “intenção do autor”, muito menos “a do leitor”, mas “a da obra”; logo, e como entendo a diferença profunda que existe entre um pseudónimo e um heterónimo, falo aqui de Terry Morgan, a autora, a quem agradeço a oferta do livro.
Venham + 5 #2. AAVV (Toupeira/Bedeteca de Beja)
Em relação ao número anterior, há um número maior de histórias, e de autores, mas isso é mesmo prova de aumento quantitativo, não qualitativo.
Um aspecto recomendável desta publicação, mas que é inerente à própria existência de uma instituição como o atelier Toupeira, a Bedeteca de Beja, e um núcleo de trabalho dedicado, é o facto desta ser uma plataforma de edição e divulgação de autores de banda desenhada. Mas aí se esgota o gesto. Uma vez que há essa premência de “dar a conhecer o trabalho que se faz”, não se imporá qualquer outro critério, nem apriorístico nem de julgamento sobre os trabalhos feitos, e acabamos por ter em mãos um objecto heteróclito, muito diverso, mas que não é capaz de tornar essa diversidade interessante, mas somente confusa, flutuante da pior maneira e até inócua, em alguns momentos.
Não se pode dizer que os autores se agrupem num qualquer tema, nem que se plasmem por partilharem o mesmo espaço. Mas por alguma razão algumas destas histórias partilham uma espécie de desejo em criar “poemas” em banda desenhada: uma linguagem intimista, impressionista, acompanhada por imagens que pretendem abrir-se para um campo do “que fica por dizer”... Falo das bandas desenhadas de Zé Francisco, de Susa Monteiro, de Paulo Monteiro, de Carlos Apolo, de Lobato, de Manu Aine, de Maria João Careto. Todavia, a esmagadora maioria desses trabalhos participa mais no vago do que no sugestivo.
Paulo Monteiro, o mentor do projecto, é quem apresenta a mais conseguida banda desenhada, o que não nos surpreende. O seu traço, aqui, faz-me lembrar autores de uma certa linha de contornos carregados, como David B., Pauline Martin, entre outros, mas com uma estruturação muito própria, fazendo destas duas pranchas um trabalho de franca qualidade em termos de figuração. A escolha por um animal para mostrar a impossibilidade de uma aproximação amorosa, não sendo um registo inédito, é porém tratado de uma forma singular, já que há um equilíbrio notável entre o rosto do carneiro montês/ibex, praticamente inalterado, inexpressivo (se isso fosse possível), e o seu corpo, lançado para a frente na sua deambulação nocturna e confessando o seu amor nessa estranha, desconjuntada e frenética dança final. Susa Monteiro, cujo nível de produção escapa à gravidade de um qualquer amadorismo onde provavelmente nunca esteve, apresenta-nos quatro páginas de uma história digna de qualquer título da Vertigo, mas fazendo pensar mais em Al Columbia do que qualquer outro autor mais mainstream. E se bem que não me apareça existir uma ponderação da prancha(s) significativa, a força da representação de Susa Monteiro desloca o centro de gravidade para essas mesmas situações que retrata. O pendor decorativo das vinhetas (efeitos de padrões, flores, manchas de sangue, rendilhados, caveiras, papéis de parede; e só podemos imaginar as cores, uma vez que a reprodução é a preto e branco) e a flutuação dos tipos de letra empregue apenas reforçam essa sugestão onírica. O cliché do amor em querer-se ser “um” é aqui transfigurado numa operação invasiva total, cuja última vinheta nos faz duvidar ser real – em relação à protagonista: no despertar da razão, os monstros dissipam-se, mas podem viver no interior. O trabalho de Zé Francisco, neste número presente na capa e numa história de duas pranchas, confirma o que surgira no número anterior: a força deste novo autor reside antes na sua capacidade ilustrativa, bem mais significativamente do que na construção de banda desenhada – a flutuação da representação, a capacidade em representar um rosto próximo do realismo fotográfico em que se baseia (Sean Penn, neste caso) mas a subsequente falha em manter a mesma permanência, e a inconsequência narrativa (se na sua versão de “Alice” ainda se poderia pensar numa desculpa pelo “surrealismo” - cáspite! -, aqui apenas podemos brindar a história “Azul Gaivota” - a preto e branco a história, mais uma vez, e as gaivotas como “buracos brancos” - com um encolher de ombros). Já a capa é francamente competente, num motivo que parece ter partes iguais de um imaginário de teatro e escultura barrocos, homoerotismo e até de um certo “imaginário nacional”... Talvez a este autor possa ainda desenvolver algum trabalho mais interessante, se procurar ou uma colaboração mais consentânea em termos de narrativa ou se até se aventurar por uma via mais pessoal (aconselhá-lo-ia, por exemplo, a ler Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse, sem querer com isso fechá-lo em qualquer “nicho”; simplesmente sinto uma força de pupa que necessita quebrar o casulo).
Estes são os três autores que me parecem os mais significativos, fora da gravidade “local”. Imageticamente falando, os trabalhos de Carlos Apolo, Lobato e de Manu Aine parecem dar passos numa direcção de experimentalismo formal, mas não me parecem ter atingido o patamar desejado. Parece haver uma paixão grande pelo design gráfico e a fotografia que não se transfigura em banda desenhada; quiçá fosse interessante os autores conhecerem conseguidas experiências dessa “família” da criação da banda desenhada (Vaughn-James, Guibert, McGuire, Spiegelman, Barbier, entre tantos outros). Maria João Careto apresenta um trabalho menos erótico a que nos temos estado a habituar, para se aproximar de um tema mais feminista (dentro da discussão tida; uma pergunta: porque é que MJ. Careto, sendo mulher, cria um erotismo a partir de uma perspectiva “masculina”? Seria bem mais interessante ver um trabalho que partisse da sua própria experiência, em vez de vermos uma versão Manara requentada).
Novos parágrafos: Voltemos um pouco atrás, já que foi chamada a atenção para um certo exercício da crueldade da minha parte, ao arrogar-me do direito de, para uma leitura estética, eu cortar as amarras ao contexto da publicação. Como disse atrás, esta publicação visa, em primeiríssimo lugar, a apresentação dos trabalhos que nascem no interior do atelier local. O que eu pretendo com o meu “corte” é poder ler todos os textos e as obras com os mesmos olhos e os mesmos critérios, mas talvez isso não seja justo – equilíbrio extremamente difícil de encontrar –, e a aplicação de um mesmo olhar face a uma publicação de um autor conhecido por uma plataforma de algum poder editorial e ao trabalho de um novo autor acabe por esmagar mais o segundo do que incentivá-lo. Venham mais cinco inclui trabalhos menos conseguidos de uma mão-cheia de autores, mas em sua defesa está a própria publicação. Véte e Pedro Ganchinho apresentam um traço imaturo, mais preocupado com o desenho das personagens do que de tudo o resto (cenários, planificação, etc.). Véte apresenta evidentes influências directas do mangá e de uma nova leva de super-heróis (Image, Wildstorm), mas não deixa de ser interessante querer contar uma história de amor (um exercício mooriano?) entre estas personagens; outra curiosidade é que os cenários, por menos conseguidos que sejam, seguem referências nacionais, com excepção da última vinheta. Ganchinho conta-nos uma breve anedota, e nota-se que tem um pendor estilizado para as personagens, mas pouco mais, cuja resolução está na perseverança de trabalho. Pedro Amorim participa nos mesmos signos mas também nos mesmos problemas, se bem que pareça dominar, ou estar nesse caminho, de um trabalho de hatching. As personagens, porém, são pouco diferenciadas (repare-se na 6ª vinheta da pág. 54 ou na última da 55) e, politicamente, não entendo muito bem a moral nihilista, não se percebendo muito bem de “que lado” está o sentido da história. Luís Guerreiro está a um corte acima, dominando o desenho das personagens, mas também com pouco trabalho em termos de cenário, de “raccord”, de uma maior clareza narrativa, ortografia e ainda de um mais equilibrado sentido de design das letras. Victor Cabral não tem cenários, ponto final. Todavia, esse não é um problema, pois o estilo da sua história e todo o modo como ela é construída não precisa deles, bastando-lhe as regras que ele mesmo constróis, como se fossem figuras aplicáveis em um mão-cheia de países; não quer isto dizer que não existam desequilíbrios gráficos de fácil resolução, como o lettering, uma maior constância das personagens, etc. (Yvan Alagbé seria uma óptima leitura e modelo). Já as histórias de Lam e de Agonia Sampaio e de Kike Benlloch, sendo de pessoas com mais experiência, parece-me, os resultados parecem inócuos. As intenções ecológicas são boas, mas não fazem necessariamente boa banda desenhada (nem qualquer tipo de arte, malgré Carneiro), especialmente com esta tamanha discrepância entre cenário realista vs. personagens estilizados, mas de trejeitos e detalhes pouco felizes. A prancha de Benlloch, a enésima sobre “uma bd sobre o que devo contar numa bd”, tem apenas dois bons perfis (vinhetas 1 e 7), e tudo o resto surge-me como pura negligência criativa. As duas páginas de Lam não estão à altura da melhor qualidade de outros trabalhos apresentados pelo mesmo, e ainda que apresentem uma história bem contada e inegavelmente bem construída a todos os níveis do que compõem uma banda desenhada, é o trabalho gráfico que não é bem conseguido (tal como o homem-bomba, demasiado óbvio e que não corresponde à infeliz realidade, mas talvez isso seja secundário...).
Nada disto, claro, nega o facto de que a sua publicação é bem-vinda, e a qual criará leitores e interlocutores a todos estes artistas. Afinal de contas, “A gente ajuda/Havemos de ser mais/Eu bem sei/Mas há quem queira/Deitar abaixo/O que eu levantei”: esta revista é para ajudar, e que não seja este espaço – pouco lido – o que “deitará abaixo” esse projecto.
Finalmente, Daniel Maia (e Dinis Vale, por atacado), por razões que penso serem claras (convidado, com mais trabalhos publicados, pela sua marca de qualidade, trabalho gráfico e editorial), merecerá uma atenção especial, aquando da edição de Pão-de-Law.
Nota: agradecimentos a Zepe, pela discussão tida, e pela sua razão exercida. Também à equipa da Toupeira, pela hospitalidade e dedicação (carolice) à "cena".
The Backwards Folding Mirror #1, Jesse Moynihan (Nonlocal Books) & Plant Life for Human Lesson no. 3, Jo Dery (auto-edição)
Os contos folclóricos, pelo menos desde Propp, não podem deixar de ser vistos como um aglomerado de elementos narrativos menores e irredutíveis, como que nódulos narrativos. Por razões sociais sobejamente estudadas e conhecidas, o desenvolvimento dessas narrativas, a que damos também o nome de “contos tradicionais”, “lendas populares”, etc., deixaram de se desenvolver, isto é, deixou-se de se lhes acrescentar “um ponto” quando se “conta o conto”. Passaram a ser empregues outros tipos de entretimento, por um lado, e a fabricação oral desviou-se para outros modos: “o boato político”, “a lenda urbana”, uma recriação da memória colectiva não obstante os estudos da história, ou até mesmo contra esse discurso, por outro.
Mas os elementos em si não desapareceram de todo. Simplesmente emergem noutras linguagens. A banda desenhada, sendo um modo de criação em que resistiu particularmente e foi fértil a presença de determinados princípios míticos, apresenta muitos deles em diferentes acepções. O Super-homem, tal como Moisés, e outros, preenche o “infante abandonado em berço rio abaixo para sua salvação”, tal como Sansão, e outros, o da “fraqueza da sua força num detalhe”; a descida ao Inferno de Hércules, de Eneias, de Ulisses e de Jesus, e diferentemente da de Orfeu, a entrada na floresta pela Capuchinho Vermelho, a queda na caverna dos morcegos do pequeno Bruce Wayne e a descida aos subterrâneos por Billy Batson, são também unidas por razões óbvias.
Estes dois livros parecem estar unidos pelo mesmo desejo em querer empregar esses elementos, quer “functivos” quer “conjuntivos”. Se bem que o primeiro, de Jesse Moynihan, apresente episódios curtos, partes, histórias aparentemente separadas entre si, a recorrência de um protagonista (que parece um gnomo, jovem e tradicional) e outras personagens e espaços, leva-nos a imaginar uma procurar por um “universo ficcional” coerente, por mais desagregado e absurdo que ele nos parece ser a uma primeira leitura. Um dos autores a quem Moynihan agradece, no final deste primeiro número do seu título, é Tom [Thomas] Herpich, e é de facto com esse autor que parece estabelecer uma afinidade, se não plástica – Moynihan parece procurar uma maior completude na criação dos seus desenhos, na estruturação de uma página mais tradicional, ainda que se mantenha num referencial “naif” em relação à figuração, aos monstros, a uma certa perspectiva -, pelo menos diegética, em que apenas nos é ofertado uma mera (suposta) parte de uma história mais larga (que jamais viremos a saber, presumo). Outra afinidade, comprovada na prancha aqui apresentada, é com Mat Brinkman, por razões algo óbvias para quem conhece Teratoid Heights (surge uma criatura que é plasticamente análoga às que habitam esse estranho "planeta" de Brinkman); todavia, como esta criatura (o filho do “gnomo”) apenas surge neste episódio, talvez seja legível enquanto uma espécie de intromissão. Ainda como Herpich, mas tantos outros, a mais dura das ficções parece querer apontar para uma transformação radical, uma transfiguração, de eventos biográficos, que não importa reconstruir como reais, mas simplesmente sentir como emergentes da sua vida. O título, se bem que se refira a um objecto tangível, concreto e até banal, parece assumir, com esta nova série (bi-mensal, tendo saído já o segundo número), um sentido mais dissipado e até mesmo mágico.
Já o livrinho, do tamanho de um bloco de notas, de Dery, que pertence(ia) ao grupo de artistas de Fort Thunder, e mais próximo do fanzine d’arte clássico (páginas em fotocópias a negro, de alta qualidade, capa em cartão com cores litografadas; aliás, chamam-lhe mini-comic), faz avançar um conto uno, coeso, mas não por isso menos sugestivo.
Companheiros/irmãos/peregrinos avançam por uma terra, onde estão perdidos, quer em termos geográficos (não estão em “casa”) quer temporais (passam 1000 anos), encontrando-se depois entre leões sapientes, onde se partilha uma verdade zen – devemos parar de procurar por respostas – e ocorre um sucessivo corte e salvação...
O final é, mesmo em termos desta total liberdade e preocupação mais formal (repare-se no friso que decora a prancha, exercício constante no livrinho), algo abrupto. Todavia, e como se trata da continuação de uma série (apenas correspondente ao título, já que não às personagens nem aos locais, temas, etc.), quiçá ainda se sigam novos episódios, uma término, uma colecção completa. Seja como for, ainda assim merece folhear lenta e pausadamente este livro, em que cada página parece preencher essas “funções” folclóricas, abrindo-nos novos caminhos a um imaginário que apenas aparentemente a modernidade, e os seus valores demasiado acelerados, conseguiu ocultar.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que mais uma vez me emprestou o livro, o de Moynihan, antes de o ter nas mãos.
Mas os elementos em si não desapareceram de todo. Simplesmente emergem noutras linguagens. A banda desenhada, sendo um modo de criação em que resistiu particularmente e foi fértil a presença de determinados princípios míticos, apresenta muitos deles em diferentes acepções. O Super-homem, tal como Moisés, e outros, preenche o “infante abandonado em berço rio abaixo para sua salvação”, tal como Sansão, e outros, o da “fraqueza da sua força num detalhe”; a descida ao Inferno de Hércules, de Eneias, de Ulisses e de Jesus, e diferentemente da de Orfeu, a entrada na floresta pela Capuchinho Vermelho, a queda na caverna dos morcegos do pequeno Bruce Wayne e a descida aos subterrâneos por Billy Batson, são também unidas por razões óbvias.
Estes dois livros parecem estar unidos pelo mesmo desejo em querer empregar esses elementos, quer “functivos” quer “conjuntivos”. Se bem que o primeiro, de Jesse Moynihan, apresente episódios curtos, partes, histórias aparentemente separadas entre si, a recorrência de um protagonista (que parece um gnomo, jovem e tradicional) e outras personagens e espaços, leva-nos a imaginar uma procurar por um “universo ficcional” coerente, por mais desagregado e absurdo que ele nos parece ser a uma primeira leitura. Um dos autores a quem Moynihan agradece, no final deste primeiro número do seu título, é Tom [Thomas] Herpich, e é de facto com esse autor que parece estabelecer uma afinidade, se não plástica – Moynihan parece procurar uma maior completude na criação dos seus desenhos, na estruturação de uma página mais tradicional, ainda que se mantenha num referencial “naif” em relação à figuração, aos monstros, a uma certa perspectiva -, pelo menos diegética, em que apenas nos é ofertado uma mera (suposta) parte de uma história mais larga (que jamais viremos a saber, presumo). Outra afinidade, comprovada na prancha aqui apresentada, é com Mat Brinkman, por razões algo óbvias para quem conhece Teratoid Heights (surge uma criatura que é plasticamente análoga às que habitam esse estranho "planeta" de Brinkman); todavia, como esta criatura (o filho do “gnomo”) apenas surge neste episódio, talvez seja legível enquanto uma espécie de intromissão. Ainda como Herpich, mas tantos outros, a mais dura das ficções parece querer apontar para uma transformação radical, uma transfiguração, de eventos biográficos, que não importa reconstruir como reais, mas simplesmente sentir como emergentes da sua vida. O título, se bem que se refira a um objecto tangível, concreto e até banal, parece assumir, com esta nova série (bi-mensal, tendo saído já o segundo número), um sentido mais dissipado e até mesmo mágico.
Já o livrinho, do tamanho de um bloco de notas, de Dery, que pertence(ia) ao grupo de artistas de Fort Thunder, e mais próximo do fanzine d’arte clássico (páginas em fotocópias a negro, de alta qualidade, capa em cartão com cores litografadas; aliás, chamam-lhe mini-comic), faz avançar um conto uno, coeso, mas não por isso menos sugestivo.
Companheiros/irmãos/peregrinos avançam por uma terra, onde estão perdidos, quer em termos geográficos (não estão em “casa”) quer temporais (passam 1000 anos), encontrando-se depois entre leões sapientes, onde se partilha uma verdade zen – devemos parar de procurar por respostas – e ocorre um sucessivo corte e salvação...
O final é, mesmo em termos desta total liberdade e preocupação mais formal (repare-se no friso que decora a prancha, exercício constante no livrinho), algo abrupto. Todavia, e como se trata da continuação de uma série (apenas correspondente ao título, já que não às personagens nem aos locais, temas, etc.), quiçá ainda se sigam novos episódios, uma término, uma colecção completa. Seja como for, ainda assim merece folhear lenta e pausadamente este livro, em que cada página parece preencher essas “funções” folclóricas, abrindo-nos novos caminhos a um imaginário que apenas aparentemente a modernidade, e os seus valores demasiado acelerados, conseguiu ocultar.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que mais uma vez me emprestou o livro, o de Moynihan, antes de o ter nas mãos.
22 de abril de 2006
Manifesto (revisto) do “Romance Gráfico”, de Eddie Campbell.
Muito diferentemente do que se tem apresentado neste espaço, tenho o grato prazer de vos ofertar a tradução portuguesa do "Graphic Novel Manifesto", de Eddie Campbell, de 2004. Reservando o espaço do post para o texto, procurem-se nos comentários algumas considerações e, espero, uma discussão continuada sobre os princípios aqui indicados. Boa leitura.
Há tanta discordância – entre nós – e mal-entendidos – no grande público – em torno do “romance gráfico”, que já é tempo de assentarmos uns quantos princípios.
1. “Romance gráfico” é um termo desagradável, mas utilizá-lo-emos seja como for, para compreendermos que gráfico não tem nada a ver com design gráfico e que romance não tem nada a ver com os romances (tal como “Impressionismo” não é um termo verdadeiramente aplicável pois foi utilizado em primeiro lugar como um insulto, e depois adoptado a modo de provocação).
2. Como não nos estamos a referir de maneira alguma ao tradicional romance literário, não defendemos que o romance gráfico deva ter as mesmas dimensões nem o mesmo peso físico. Assim, termos suplementares como “novela” ou “conto”, etc., não serão aqui empregues, e só servem para confundir os públicos em relação ao nosso fito (ver abaixo), levando-os a pensar que é nossa intenção criar uma versão ilustrada de um determinado nível de literatura, quando na verdade temos bem melhor para fazer, a saber, estamos a criar uma arte completamente nova que não será limitada pelas regras arbitrárias de uma outra velha arte.
3. O “Romance gráfico” representa mais um movimento do que uma forma. Por isso podemos falar de “antecedentes” do romance gráfico, como os livros de xilogravuras de Lynd Ward. Porém, não nos interessa utilizar o termo retrospectivamente.
4. Apesar do romancista gráfico considerar os seus vários antecedentes génios e profetas, sem o trabalho dos quais não poderia ter criado o seu próprio trabalho, não deseja colocar-se permanentemente à sombra do Rake’s Progress de William Hogarth sempre que ganha algum grama de publicidade, quer para si quer para a sua arte em geral.
5. Uma vez que o termo se refere a um movimento, a um evento contínuo, mais do que a uma forma, não há nada a ganhar com uma sua definição ou “medição”. O conceito tem cerca de trinta anos, apesar de tanto este como o nome terem sido utilizados casualmente desde uns dez anos antes. Uma vez que se encontra ainda em crescimento, é bem possível que se tenha alterado totalmente por este mesmo período do ano que vem.
6. O fito do romancista gráfico é pegar na forma da revista de banda desenhada [comic book], que agora apenas nos envergonha, e elevá-la a um nível mais ambicioso e mais significativo. Isto implica normalmente aumentar-lhe o tamanho, mas devemos acautelar-nos para não entrar em disputas sobre quais são os tamanhos aceitáveis. Se um qualquer artista apresentar uma colecção de pequenos contos como o seu novo romance gráfico (tal qual Will Eisner fez com A contract with God, por exemplo), não devemos entrar em picuínhices. Devemos apenas examinar se esse romance gráfico é uma boa ou uma má série de histórias. Se o artista ou a artista utilizar personagens que apareceram noutro sítio, como a presença de Jimmy Corrigan (Chris Ware) em títulos que não o principal, ou as de Gilbert Hernandez, etc., ou até mesmo outras personagens que não desejamos que façam parte da nossa “sociedade secreta”, não os desconsideraremos por essa simples razão. Se o seu livro já não se parecer de modo algum com banda desenhada, também não entraremos em picardias. Basta que nos perguntemos se esse trabalho aumenta ou não a totalidade do conhecimento humano.
7. O termo romance gráfico não será empregue como indicativo de um formato comercial (tal como os termos “brochado” e “cartonado”[“trade paperback”, “hardcover”, “prestige format”]). Poderá tratar-se de um manuscrito inédito ou apresentado em episódios ou partes. O mais importante é o intuito, mesmo que este surja após a publicação original.
8. Os temas dos romancistas gráficos são toda a existência, inclusive as suas próprias vidas. Os artistas desprezam os “géneros” e todos os seus clichés horrorosos, apesar de conservarem uma perspectiva alargada. Ressentem particularmente a noção, ainda prevalecente em muitos sítios, e não sem razão, de que a banda desenhada é um subgénero da ficção científica ou da fantasia heróica.
9. Os romancistas gráficos jamais pensariam em empregar o termo romance gráfico quando se encontram entre os seus pares. Referir-se-iam mais normalmente ao seu “último livro” ou o seu “trabalho em curso”, ou “a mesma treta de sempre”, ou até mesmo “banda desenhada”, etc. O termo deve ser empregue como uma insígnia ou uma bandeira velha que se vai buscar ao ouvir o apelo de batalha, ou quando se o tartamudeia ao perguntarmos pela localização de uma certa secção de uma livraria que não conhecemos. Os editores poderão utilizá-lo as vezes que assim entenderem, até que signifique ainda menos do que o nada que já significa.
Mais, os romancistas gráficos têm bem a noção de que a próxima geração de artistas de banda desenhada escolherão formas o mais pequenas possível e que farão pouco da sua arrogância.
10. Os romancistas gráficos reservam o seu direito a retratar-se de todas as alíneas anteriores, se isso os ajudar a vender mais.
Nota: este texto foi traduzido por Pedro Moura e revisto por Domingos Isabelinho. Podem utilizar esta tradução à vontade, copipastá-la, reapresentá-la, em regime de copyleft, mas agradecia que indicassem quem fez a tradução.
The Greedy Story of Six Hungry Men. Bendik Von Kaltenborn (Dongery)
Desconheço os outros livros de Bendik Von Kaltenborn, autor norueguês (e não dinamarquês, como disse antes), com a excepção de um fanzine mais recente, Friends for Fighting. Porém, este fanzine, formal, gráfica e fisicamente muito simples mas muito bem produzido, faz-me ver um autor, o qual, não obstante trabalhar num território livre em termos narrativos e artísticos, parece querer criar um trabalho de grande acessibilidade e competente para chegar a um público muito alargado, sem cair em facilitismos, clichés ou qualquer pendor comercialista. O outro trabalho, de que aqui não falarei, é bem mais livre, com pequenas anedotas (nunca ultrapassando as três páginas) semi-narrativas mas absurdas, num exercício completamente diferente de The Greedy Story...
Homens obesos, desenhados de um modo estilizado mas realista, reúnem-se numa casa afastada de todo o resto do mundo para emagrecerem, numa mistura de dieta radical e um culto esquisito, dirigido por um tal Folino (avatar do qual surge no Friends for Fighting, mas apenas em corpo e nome), personagem caracterizada por um estilo apenas coincidente com o do lenhador da floresta – as peles deles parecem revestidas de um hatching que tanto quererá recordar o efeito do pergaminho como o da madeira (muito análogo aos homens-árvore do Elvis Studio). Um deles, Rupert, cruza-se com o lenhador cego e cai na tentação de comer carne. Esse gesto fá-lo-á cair numa espécie de encanamento e maldição que o lançará num ataque sub-reptício aos seus companheiros, desencadeando as peripécias do livro. É uma espécie de mistura de conto moral, de aviso, mas logo transformado num conto amoral, mesmo absurdo, muito próximo com as versões mais antigas, as mais originais, dos contos tradicionais europeus, cuja violência e estranheza são inegáveis, não obstante a tentativa de dulcificar todo esse imaginário através da Disney (para um "retorno", veja-se a recolha de Consiglieri Pedroso, para Portugal).
Em muitos aspectos, este livrinho de 32 páginas faz-me recordar um comic-book tradicional(apesar das dimensões mais reduzidas), uma vez que a esmagadora maioria dessas páginas apresenta seis vinhetas numa grelha regular, optando por desvios à norma quando narrativamente necessário. Mais, existem momentos em que um enquadramento é mantido, com as personagens alterando as suas posições, e não necessariamente para dar uma descrição completa de um movimento, mas antes para abrandar ou enclausurar o tempo (como quando a personagem Thor se tenta desenvencilhar do tronco de árvore). Muitas vinhetas passam “em silêncio”, mas os diálogos são bem escritos, credíveis, competentemente estruturados. Se bem que o estilo gráfico seja totalmente diferente, faz-me lembrar as competências narrativas de Harvey Kurtzman, como se se tivesse começado uma das aventuras humanas em tempo de guerra de Two-Fisted Tales, mas terminasse num dos absurdos da Help! ou da Mad. A meu ver, a página que aqui se apresenta como exemplo é excelente nessa competência em estruturar uma página e todos os seus elementos actanciais. Todas as linhas diagonais mostram a diferença e dificuldade entre o baixo (onde está o perigo) e o cimo (a casa, a segurança); a direcção do olhar de Thor para o resto dos elementos, o “diálogo” entre este olhar a onomatopeia: Thor vê quem a provoca, mas a nós não nos será dada essa oportunidade. A simplicidade é a mais legível, sempre.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que me emprestou o livro, antes de o ter nas mãos.