
Em relação ao
número anterior, há um número maior de histórias, e de autores, mas isso é mesmo prova de aumento quantitativo, não qualitativo.
Um aspecto recomendável desta publicação, mas que é inerente à própria existência de uma instituição como o atelier Toupeira, a Bedeteca de Beja, e um núcleo de trabalho dedicado, é o facto desta ser uma plataforma de edição e divulgação de autores de banda desenhada. Mas aí se esgota o gesto. Uma vez que há essa premência de “dar a conhecer o trabalho que se faz”, não se imporá qualquer outro critério, nem apriorístico nem de julgamento sobre os trabalhos feitos, e acabamos por ter em mãos um objecto heteróclito, muito diverso, mas que não é capaz de tornar essa diversidade interessante, mas somente confusa, flutuante da pior maneira e até inócua, em alguns momentos.
Não se pode dizer que os autores se agrupem num qualquer tema, nem que se plasmem por partilharem o mesmo espaço. Mas por alguma razão algumas destas histórias partilham uma espécie de desejo em criar “poemas” em banda desenhada: uma linguagem intimista, impressionista, acompanhada por imagens que pretendem abrir-se para um campo do “que fica por dizer”... Falo das bandas desenhadas de Zé Francisco, de Susa Monteiro, de Paulo Monteiro, de Carlos Apolo, de Lobato, de Manu Aine, de Maria João Careto. Todavia, a esmagadora maioria desses trabalhos participa mais no vago do que no sugestivo.
Paulo Monteiro, o mentor do projecto, é quem apresenta a mais conseguida banda desenhada, o que não nos surpreende. O seu traço, aqui, faz-me lembrar autores de uma certa linha de contornos carregados, como David B., Pauline Martin, entre outros, mas com uma estruturação muito própria, fazendo destas duas pranchas um trabalho de franca qualidade em termos de figuração. A escolha por um animal para mostrar a impossibilidade de uma aproximação amorosa, não sendo um registo inédito, é porém tratado de uma forma singular, já que há um equilíbrio notável entre o rosto do carneiro montês/ibex, praticamente inalterado, inexpressivo (se isso fosse possível), e o seu corpo, lançado para a frente na sua deambulação nocturna e confessando o seu amor nessa estranha, desconjuntada e frenética dança final. Susa Monteiro, cujo nível de produção escapa à gravidade de um qualquer amadorismo onde provavelmente nunca esteve, apresenta-nos quatro páginas de uma história digna de qualquer título da Vertigo, mas fazendo pensar mais em Al Columbia do que qualquer outro autor mais
mainstream. E se bem que não me apareça existir uma ponderação da prancha(s) significativa, a força da representação de Susa Monteiro desloca o centro de gravidade para essas mesmas situações que retrata. O pendor decorativo das vinhetas (efeitos de padrões, flores, manchas de sangue, rendilhados, caveiras, papéis de parede; e só podemos imaginar as cores, uma vez que a reprodução é a preto e branco) e a flutuação dos tipos de letra empregue apenas reforçam essa sugestão onírica. O cliché do amor em querer-se ser “um” é aqui transfigurado numa operação invasiva total, cuja última vinheta nos faz duvidar ser real – em relação à protagonista: no despertar da razão, os monstros dissipam-se, mas podem viver no interior. O trabalho de Zé Francisco, neste número presente na capa e numa história de duas pranchas, confirma o que surgira no número anterior: a força deste novo autor reside antes na sua capacidade ilustrativa, bem mais significativamente do que na construção de banda desenhada – a flutuação da representação, a capacidade em representar um rosto próximo do realismo fotográfico em que se baseia (Sean Penn, neste caso) mas a subsequente falha em manter a mesma permanência, e a inconsequência narrativa (se na sua versão de “Alice” ainda se poderia pensar numa desculpa pelo “surrealismo” - cáspite! -, aqui apenas podemos brindar a história “Azul Gaivota” - a preto e branco a história, mais uma vez, e as gaivotas como “buracos brancos” - com um encolher de ombros). Já a capa é francamente competente, num motivo que parece ter partes iguais de um imaginário de teatro e escultura barrocos, homoerotismo e até de um certo “imaginário nacional”... Talvez a este autor possa ainda desenvolver algum trabalho mais interessante, se procurar ou uma colaboração mais consentânea em termos de narrativa ou se até se aventurar por uma via mais pessoal (aconselhá-lo-ia, por exemplo, a ler
Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse, sem querer com isso fechá-lo em qualquer “nicho”; simplesmente sinto uma força de pupa que necessita quebrar o casulo).
Estes são os três autores que me parecem os mais significativos, fora da gravidade “local”. Imageticamente falando, os trabalhos de Carlos Apolo, Lobato e de Manu Aine parecem dar passos numa direcção de experimentalismo formal, mas não me parecem ter atingido o patamar desejado. Parece haver uma paixão grande pelo design gráfico e a fotografia que não se transfigura em banda desenhada; quiçá fosse interessante os autores conhecerem conseguidas experiências dessa “família” da criação da banda desenhada (Vaughn-James, Guibert, McGuire, Spiegelman, Barbier, entre tantos outros).
Maria João Careto apresenta um trabalho menos erótico a que nos temos estado a habituar, para se aproximar de um tema mais
feminista (dentro da
discussão tida; uma pergunta: porque é que MJ. Careto, sendo mulher, cria um erotismo a partir de uma perspectiva “masculina”? Seria bem mais interessante ver um trabalho que partisse da sua própria experiência, em vez de vermos uma versão Manara requentada).
Novos parágrafos: Voltemos um pouco atrás, já que foi chamada a atenção para um certo exercício da crueldade da minha parte, ao arrogar-me do direito de, para uma leitura estética, eu cortar as amarras ao contexto da publicação. Como disse atrás, esta publicação visa, em primeiríssimo lugar, a apresentação dos trabalhos que nascem no interior do atelier local. O que eu pretendo com o meu “corte” é poder ler todos os textos e as obras com os mesmos olhos e os mesmos critérios, mas talvez isso não seja justo – equilíbrio extremamente difícil de encontrar –, e a aplicação de um mesmo olhar face a uma publicação de um autor conhecido por uma plataforma de algum poder editorial e ao trabalho de um novo autor acabe por esmagar mais o segundo do que incentivá-lo. Venham mais cinco inclui trabalhos menos conseguidos de uma mão-cheia de autores, mas em sua defesa está a própria publicação. Véte e Pedro Ganchinho apresentam um traço imaturo, mais preocupado com o desenho das personagens do que de tudo o resto (cenários, planificação, etc.). Véte apresenta evidentes influências directas do mangá e de uma nova leva de super-heróis (Image, Wildstorm), mas não deixa de ser interessante querer contar uma história de amor (um exercício mooriano?) entre estas personagens; outra curiosidade é que os cenários, por menos conseguidos que sejam, seguem referências nacionais, com excepção da última vinheta. Ganchinho conta-nos uma breve anedota, e nota-se que tem um pendor estilizado para as personagens, mas pouco mais, cuja resolução está na perseverança de trabalho. Pedro Amorim participa nos mesmos signos mas também nos mesmos problemas, se bem que pareça dominar, ou estar nesse caminho, de um trabalho de
hatching. As personagens, porém, são pouco diferenciadas (repare-se na 6ª vinheta da pág. 54 ou na última da 55) e, politicamente, não entendo muito bem a moral nihilista, não se percebendo muito bem de “que lado” está o sentido da história. Luís Guerreiro está a um corte acima, dominando o desenho das personagens, mas também com pouco trabalho em termos de cenário, de “raccord”, de uma maior clareza narrativa, ortografia e ainda de um mais equilibrado sentido de design das letras. Victor Cabral não tem cenários, ponto final. Todavia, esse não é um problema, pois o estilo da sua história e todo o modo como ela é construída não precisa deles, bastando-lhe as regras que ele mesmo constróis, como se fossem figuras aplicáveis em um mão-cheia de países; não quer isto dizer que não existam desequilíbrios gráficos de fácil resolução, como o
lettering, uma maior constância das personagens, etc. (Yvan Alagbé seria uma óptima leitura e modelo). Já as histórias de Lam e de Agonia Sampaio e de Kike Benlloch, sendo de pessoas com mais experiência, parece-me, os resultados parecem inócuos. As intenções ecológicas são boas, mas não fazem necessariamente boa banda desenhada (nem qualquer tipo de arte,
malgré Carneiro), especialmente com esta tamanha discrepância entre cenário realista vs. personagens estilizados, mas de trejeitos e detalhes pouco felizes. A prancha de Benlloch, a enésima sobre “uma bd sobre o que devo contar numa bd”, tem apenas dois bons perfis (vinhetas 1 e 7), e tudo o resto surge-me como pura negligência criativa. As duas páginas de Lam não estão à altura da melhor qualidade de
outros trabalhos apresentados pelo mesmo, e ainda que apresentem uma história bem contada e inegavelmente bem construída a todos os níveis do que compõem uma banda desenhada, é o trabalho gráfico que não é bem conseguido (tal como o homem-bomba, demasiado óbvio e que não corresponde à infeliz realidade, mas talvez isso seja secundário...).
Nada disto, claro, nega o facto de que a sua publicação é bem-vinda, e a qual criará leitores e interlocutores a todos estes artistas. Afinal de contas, “
A gente ajuda/Havemos de ser mais/Eu bem sei/Mas há quem queira/Deitar abaixo/O que eu levantei”: esta revista é para ajudar, e que não seja este espaço – pouco lido – o que “deitará abaixo” esse projecto.
Finalmente, Daniel Maia (e Dinis Vale, por atacado), por razões que penso serem claras (convidado, com mais trabalhos publicados, pela sua marca de qualidade, trabalho gráfico e editorial), merecerá uma atenção especial, aquando da edição de
Pão-de-Law.
Nota: agradecimentos a Zepe, pela discussão tida, e pela sua razão exercida. Também à equipa da Toupeira, pela hospitalidade e dedicação (carolice) à "cena".