No seguimento de algumas das linhas temáticas deste blog, nomeadamente aquelas que perseguem publicações que vivem numa raia entre uma banda desenhada mais “clássica”, legível, narrativa, e um campo mais amplo da experimentação artística, que ocorre naquilo que se pode ver como fanzines, livros de autor, experimentos ou publicações generalistas de arte, farei aqui uma breve apresentação de quatro objectos gráficos, de artistas/ilustradores/banda-desenhadores recentemente publicados, por uma plataforma de livros artísticos, a suíça Nieves.
Nenhum destes títulos apresenta aquilo a que se poderia dar o nome de “história” ou de “narrativa”, de um modo consensual, e apresentam-se como colecções breves de desenhos soltos, esquissos, exercícios de última hora, meros gatafunhos sem sentido, elaboradas explorações de texturas, padrões, ritmos gráficos, ambientes oníricos que possam ser criados pela associação de dois termos, até ao momento, indissociáveis. Nada disto significa que não possa surgir uma associação feita por cada leitor que o faça aceder a um sentido geral, uma sugestão de sentido, uma “leitura” una e coesa. É isso o que a “série”, no seu sentido artístico, permite fazer.
Lispering, Josh Petherick
Este é na verdade um catálogo, de 13 páginas ilustradas, de uma exposição de ilustrações de Petherick, artista visual que trabalha num território plástico muito próximo daquele que abunda no mundo da banda desenhada. Algumas das páginas são populadas por duas ou três “criaturas” coloridas, pedaços de rosto sob rodas, ou nuvens coloridas com pés quebrando montanhas, cuja sugestão pode terminar na contemplação delas mesmas, como poderão servir a fins mais pessoais da parte do espectador. Mas outras (3, estando aqui presentes 2) são bem mais densas, cheias de personagens que poderemos reconhecer surgirem em muitos pontos da prancha – um músico jovem, uns pássaros assistentes de
bigode, um outro músico, maior, barbudo, nuvens personificadas...
Por que não estabelecermos relações entre estas figuras recorrentes e elaborar uma espécie de conto folclórico, apoiado até por informações visuais de arquitectura, tipos de instrumentos e de vestes e outros detalhes? Ajudar-nos-á essa leitura a aceitá-lo no “nosso” campo?
It Looks Like a Smile, Geoff McFetridge
Tal como no caso anterior, este é um catálogo dos trabalhos de Geoff McFetridge, que faz serigrafias e outros trabalhos artísticos na área da impressão, ou exercícios ainda mais ilusórios. Os seus desenhos são também muito estilizados, tal como Petherick, mas de contornos mais suaves, e um trabalho de cor mais livre (notando-se por vezes o que parece ser colocação com canetas de feltro). Apresentando-se um poema final, que inicia o primeiro verso com as mesmas palavras do título da publicação, o seu tom algo infantil, mas de uma moral verdadeira e cautelosa (a de que todos os sorrisos têm dentes por baixo), é como se o autor nos alertasse para que nenhuma das suas imagens amenas nos engane, e saibamos ver o que pulsa, perigoso, sob elas. Esse tom infantil, e até mesmo o seu estilo, faz recordar o mestre ilustrador Eric Carle, famosíssimo autor norte-americano, mas outros tantos exemplos poderão antes apontar a Heinz Edelmann, o ilustrador e designer que deu vida ao filem Yellow Submarine, com ou dos The Beatles.
Os corpos que aqui vemos numa brevíssima sequência parecem explodir com esses dentes que sorriem... e mordem.
Nimb Skills, Nicola Pecoraro
Numa edição limitada a 100 cópias para todo o mundo, este zine tem uma trintena de páginas e uma infinitude de virtudes. É impossível querer fazer-lhe um retrato, pois não consegue estar parado em frente da câmara: desenhos humorísticos, outros mais sérios, uns absurdos, outros bucólicos, outros (como esta imagem aqui) descambando numa catadupa de personagens, linhas de fuga e acumulação de objectos, que tem tanto de marcial como de justificação das influências variegadas que compõem as ideias e as práticas do artista . No cólofon desta publicação indica-se que a arte é composta por “textos e fotografias”, mas não há traços dos primeiros nem das segundas... São apenas desenhos, a menos que cada um destes desenhos deva ser entendido ora como instantâneos fotografados nalgum mundo onde a hostilidade se transmite por via do desenho, ora como textos por si só que podem ser lidos enquanto sugestões de mundos outros, como as aqui discutidas de Suzuki, ou ainda mais violentas, as de um “eroguro mangaka” como Toshio Saeki. O eroticismo, porém, é como o vocábulo nimb, quase-lesto, mas nunca completo...
The Beatles, Mordillo and Vasarely, Dimitri Broquard
O título parece-me ser claro, e remete-nos a um gesto idêntico ao de Pecoraro (e doutras publicações) em, num só espaço, deixar conviver referências de áreas diferentes, que sempre se julgaram arreigadas umas das outras, mas afinal temem a existir numa só coisa, a que se pode dar o nome de Cultura. Quer Paul McCartney esteja morto quer não, a verdade é que podemos crer na existência de uma conspiração contínua em querer manter essas mesmas áreas o mais separadas possível, através de linhas de policiamento académico, quando na verdade, basta adormecer para deixar as barreiras se derreterem e, com elas, os territórios. Por isso, as ilusões de Vasarely bem podem coincidir com o fundo das paisagens urbanas de Mordillo, pelos seus pequenos quadrados, onde não se passa nada a não ser uma cor à qual tanto se pode negar significação como carregá-la até se apagar. Em Strawberry Fields Forever, canta-se “Nothing is real... but nothing to be hung about”. Talvez seja isso mesmo, não ter real absolutamente à mão, mas não se tornar isso fonte de preocupação, mas até de descanso (visual, mental, existencial), como essa paisagem no livro deste Broquard... No entanto, no meio dessa calma aparente, eis que se mexe uma assombrosa árvore ao fundo e, à esquerda, na margem do lago, o que parecem uns esquifes-casulos... Pistas tais como as deixadas por todo o lado pelos Beatles restantes ao Paul/Walrus, morto.
(O Richard Câmara aconselhou-me a colocar uma imagem do interior dos livros para que pudesse o leitor vislumbrar um pouco do que se escondia entre as capas. Era uma boa ideia. Mas como já terão entendido, não sou nada feliz na montagem gráfica deste blog. Eu não queria... a culpa é do Richard! A culpa é sempre dos outros. Desculpem.)
15 de março de 2006
Zines d’arte. AAVV (Nieves)
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:59 da tarde
Etiquetas: Zines
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4 comentários:
Muito engenhosa esse tipo de arte.... Pode ser usado como inspiração para profissionais da área gráfica..... valeu!!!
Tens de me mostrar este material!
Bem Pedro, isso é que tem sido um assalto à Dramastore. Por acaso há lá uns livritos de um autor Português...
Sim, foi isso mesmo. Para os interessados, estes zines podem ser comprados pela internet nos seus próprios sites (Nieves), mas poderão ainda recorrer à tentativamente maior plataforma de venda de zines online, a Dramastore... Temos lá agora material de um tal André Lemos. Deve estar cheio dele, deve!
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