Parece-me existir, um pouco pela Europa fora, incluindo de uma forma especial Portugal, uma geração sem experiência directa da guerra, apenas herdeiros do que se ecoa nos seus pais, mas na qual existe uma obsessão criativa, mais ou menos vincada, pela guerra. As nossas experiências – e se me incluo a título mesmo pessoal, é porque a geração a que me refiro ronda os trinta anos de idade e partilhará toda uma série de características comuns – de guerra reduzem-se, em termos sincrónicos, aos noticiários. É nessa esfera da “realidade” que se cristalizaram nomes e palavras como Bósnia-Herzegovina, Mogadischio, Sudão, Serra Leoa, Tchetchénia, Tamil, ou ainda “Guerras do Golfo” ou “conflito palestino-israelita” como metonímias de irmão contra irmão, sangue e petróleo misturados, faces oferecidas à mortandade do martírio em nomes de um deus (necessariamente menor, já que tem de matar). Mas essa ideia de guerra é também formada pela história, quer aquela aprendida nos documentos históricos sob a forma de fotografias, livros ou relatos, ou aquela que nos é herdada pelos pais (as Guerras Coloniais) ou avós (as Guerras Mundiais). Em último lugar, vem aquela cuja herança – pelo menos em Portugal – é a mais marcante: a do silêncio.
De todas as guerras possíveis – as suas mais concretas expressões e tipologias - talvez seja a civil aquela que mais nos surge como estranha. Portugal viveu uma guerra destas, mas disfarça-a histórica e imaginariamente com os apodos de “Guerras Liberais” ou “Miguelistas vs. Cartistas”, etc. Hoje vivemos naquele espaço que a Europa gosta de acreditar ser o de uma Pax Aeterna, sem nos responsabilizar pelos conflitos que são forçados a se manterem em nome de uma hegemonia política e económica. É no seio dessa educação que é difícil imaginar a possibilidade de um conflito armado, com os exércitos da morte triunfantes a marcharem pelas ruas de Lisboa ou as praças do Porto. E é no seio dessa dificuldade que surgem, de uma forma esparsa, descentralizada mas regularmente, exemplos de esforços artísticos em responder a essa impossibilidade do imaginário. Na literatura portuguesa, vejam-se os exemplos de Uma Casa na Escuridão de José Luís Peixoto, ou os “livros pretos” (Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, ...) de Gonçalo M.Tavares. Se bem que o filme de animação de André Carrilho, com argumento de J. P. Simões, Jantar em Lisboa, verse antes a realidade mediática a que me referia atrás, atravessa uma imagem de Lisboa em guerra. José Feitor, editor da Imprensa Canalha, há já algum tempo que acalenta um projecto nesse sentido, e pergunto-me se não terá sido essa noção perseguida que o terá levado a apresentar, como um dos projectos expositivos da Feira Laica, o tema “Guerra Civil Portuguesa [cenários]”. De resto, a banda desenhada europeia não se tem escusado a este tema geral: já aqui havia falado de Guerres Civiles e de Notes pour une histoire de guerre. A este grupo junta-se agora Brodo di niente (“Sopa de nada”) do italiano Andrea Bruno.
Parece-me que a Itália retorna à forte presença de colectivos de artistas de banda desenhada cujas personalidades diversificadas não impedem a concatenação de núcleos criativos e editoriais. Se nos anos 80 se falaria sobretudo dos grupos em torno da Valvoline/Frigidaire, esta nova década vê a Coconino Press (com as revistas Mano e Black), e ainda a Canicola (com uma revista com o mesmo nome). Os fãs de Tex ou de Dylan Dog provavelmente dirão que estes todos são precisamente os momentos em que a banda desenhada italiana sofre mais, pelas experiências “elitistas” e “intelectualóides” de artistas menores, e que ainda se deveriam acrescentar os nomes de Manara, Serpieri ou coisa que o valha como os “gigantes” vivos desse país, mas se gigantes são, são-no na qualidade daquele imenso ídolo do sonho de Nabucodonosor (Livro de Daniel), e estes a que me refiro são o solo que, fértil, progride de uma forma mais perene (e de onde a “pedra” será “cortada”). A Canicola surge-me como mais urgente no que diz respeito a uma experimentação gráfica em relação à Black, quase numa imagem de espelho das relações, por exemplo, entre as francófonas Frigobox (Amok) e a Lapin (L’Association) nos anos 90. É lá que, juntamente a Bruno, surgem os nomes de Davide Catania, Alessandro Tota, Giacomo Nanni e da finlandesa Amanda Vähämäki. Bruno destaca-se, todavia, deste grupo, pela mera força dos seus traços “sujos”, sobrepostos, um trabalho que parece mais dos resquícios que se deveriam eliminar de uma grattage ou de trabalhos com tinta do que a própria mancha de escrita e desenho. Toda a sua figuração impede uma exacta figuração, ou a acuidade da representação, mas de um modo surpreendente, nada se perde em termos de expressão facial e física da parte das personagens, nem da construção de um ambiente plasmado com o que se constrói diegeticamente (vejam-se como se assinala a presença do sangue, da chuva, do calor, da noite...).
Sopa (“Brodo”) é o prato que era servido à personagem principal, Rosso, aquando a sua vida militar, um jovem desertor do exército, “inimigo”, que se esconde na cidade do “seu” inimigo. Sem honra, mas a sua única ambição é continuar a viver. Vive-se de expedientes, de um abuso aqui, um furto acolá, uma venda ilegal noutro local. E não se chega, como se esperaria, a lado nenhum. Sopa de quê? “De nada” (“di niente”). Nem forças lhe dão para desempenhar uma relação sexual com uma prostituta.
De todas as guerras possíveis – as suas mais concretas expressões e tipologias - talvez seja a civil aquela que mais nos surge como estranha. Portugal viveu uma guerra destas, mas disfarça-a histórica e imaginariamente com os apodos de “Guerras Liberais” ou “Miguelistas vs. Cartistas”, etc. Hoje vivemos naquele espaço que a Europa gosta de acreditar ser o de uma Pax Aeterna, sem nos responsabilizar pelos conflitos que são forçados a se manterem em nome de uma hegemonia política e económica. É no seio dessa educação que é difícil imaginar a possibilidade de um conflito armado, com os exércitos da morte triunfantes a marcharem pelas ruas de Lisboa ou as praças do Porto. E é no seio dessa dificuldade que surgem, de uma forma esparsa, descentralizada mas regularmente, exemplos de esforços artísticos em responder a essa impossibilidade do imaginário. Na literatura portuguesa, vejam-se os exemplos de Uma Casa na Escuridão de José Luís Peixoto, ou os “livros pretos” (Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, ...) de Gonçalo M.Tavares. Se bem que o filme de animação de André Carrilho, com argumento de J. P. Simões, Jantar em Lisboa, verse antes a realidade mediática a que me referia atrás, atravessa uma imagem de Lisboa em guerra. José Feitor, editor da Imprensa Canalha, há já algum tempo que acalenta um projecto nesse sentido, e pergunto-me se não terá sido essa noção perseguida que o terá levado a apresentar, como um dos projectos expositivos da Feira Laica, o tema “Guerra Civil Portuguesa [cenários]”. De resto, a banda desenhada europeia não se tem escusado a este tema geral: já aqui havia falado de Guerres Civiles e de Notes pour une histoire de guerre. A este grupo junta-se agora Brodo di niente (“Sopa de nada”) do italiano Andrea Bruno.
Parece-me que a Itália retorna à forte presença de colectivos de artistas de banda desenhada cujas personalidades diversificadas não impedem a concatenação de núcleos criativos e editoriais. Se nos anos 80 se falaria sobretudo dos grupos em torno da Valvoline/Frigidaire, esta nova década vê a Coconino Press (com as revistas Mano e Black), e ainda a Canicola (com uma revista com o mesmo nome). Os fãs de Tex ou de Dylan Dog provavelmente dirão que estes todos são precisamente os momentos em que a banda desenhada italiana sofre mais, pelas experiências “elitistas” e “intelectualóides” de artistas menores, e que ainda se deveriam acrescentar os nomes de Manara, Serpieri ou coisa que o valha como os “gigantes” vivos desse país, mas se gigantes são, são-no na qualidade daquele imenso ídolo do sonho de Nabucodonosor (Livro de Daniel), e estes a que me refiro são o solo que, fértil, progride de uma forma mais perene (e de onde a “pedra” será “cortada”). A Canicola surge-me como mais urgente no que diz respeito a uma experimentação gráfica em relação à Black, quase numa imagem de espelho das relações, por exemplo, entre as francófonas Frigobox (Amok) e a Lapin (L’Association) nos anos 90. É lá que, juntamente a Bruno, surgem os nomes de Davide Catania, Alessandro Tota, Giacomo Nanni e da finlandesa Amanda Vähämäki. Bruno destaca-se, todavia, deste grupo, pela mera força dos seus traços “sujos”, sobrepostos, um trabalho que parece mais dos resquícios que se deveriam eliminar de uma grattage ou de trabalhos com tinta do que a própria mancha de escrita e desenho. Toda a sua figuração impede uma exacta figuração, ou a acuidade da representação, mas de um modo surpreendente, nada se perde em termos de expressão facial e física da parte das personagens, nem da construção de um ambiente plasmado com o que se constrói diegeticamente (vejam-se como se assinala a presença do sangue, da chuva, do calor, da noite...).
Sopa (“Brodo”) é o prato que era servido à personagem principal, Rosso, aquando a sua vida militar, um jovem desertor do exército, “inimigo”, que se esconde na cidade do “seu” inimigo. Sem honra, mas a sua única ambição é continuar a viver. Vive-se de expedientes, de um abuso aqui, um furto acolá, uma venda ilegal noutro local. E não se chega, como se esperaria, a lado nenhum. Sopa de quê? “De nada” (“di niente”). Nem forças lhe dão para desempenhar uma relação sexual com uma prostituta.
Pouco importam as causas, as consequências, as lógicas. Aqui não se trata do reino da diegese clara e explicada às criancinhas. Trata-se da construção de um ambiente onde se dão os efeitos e se exploram a regularidade das relações humanas, dos movimentos a que se forçam os seres que vivem esta guerra. De um lado, o exército “inimigo” (talianos?), do outro, um exército vencedor, totalmente composto por padres. Nem sequer a religião surge como razão, nem matéria de “crítica sociológica” (por mais transfigurada que fosse, e eis uma pista: “Rosso” será um símbolo das dificuldades da esquerda na Itália contemporânea, cujo conservadorismo, inclusive católico, tem aumentado? Ou será apenas uma referência à cor do cabelo, “invisível” para nós numa obra a preto-e-branco?) pela parte do autor. É assim, como se tivesse sido há algum tempo, e fica só a esperança de que se retorne “à normalidade”, “à paz”.
Se no caso de Luís Peixoto e Tavares na literatura e Gipi na banda desenhada se servem relatos em cidades inominadas, países desconhecidos (a pátria germânica do Walser e Klump e Vast de Tavares não é certa, e a Itália de Gipi é transfigurada), para Andrea Bruno a italianidade é absolutamente central e necessária à diegese. E tal como todos esses outros autores indicados, a guerra civil ergue-se não como uma doença absoluta que toma conta de todos comportamentos e funções havidas numa cidade, mas apenas se instala no seu centro, torna-se o seu centro de gravidade, e o “resto”, a “normalidade”, vai se desenvolvendo em seu torno: o campeonato do mundo de futebol, no qual a Itália chegará a campeão, os teatros e os bordéis, o recolher obrigatório não impede passeios nocturnos até jaulas escondidas nem a derrocada dos serviços de limpeza urbana suspende encontros fortuitos de amantes.
Se no caso de Luís Peixoto e Tavares na literatura e Gipi na banda desenhada se servem relatos em cidades inominadas, países desconhecidos (a pátria germânica do Walser e Klump e Vast de Tavares não é certa, e a Itália de Gipi é transfigurada), para Andrea Bruno a italianidade é absolutamente central e necessária à diegese. E tal como todos esses outros autores indicados, a guerra civil ergue-se não como uma doença absoluta que toma conta de todos comportamentos e funções havidas numa cidade, mas apenas se instala no seu centro, torna-se o seu centro de gravidade, e o “resto”, a “normalidade”, vai se desenvolvendo em seu torno: o campeonato do mundo de futebol, no qual a Itália chegará a campeão, os teatros e os bordéis, o recolher obrigatório não impede passeios nocturnos até jaulas escondidas nem a derrocada dos serviços de limpeza urbana suspende encontros fortuitos de amantes.
Na cidade, continua-se a desenrolar um estranho carnaval macabro, uma dança da morte, cujas vagas, de quando em vez, acabam por aportar à vida das personagens que seguimos (o desaparecimento do miúdo sem braços, Marco, a prisão de Teresa, e finalmente a fuga de Rosso...). Pequenos ódios continuam a expressar-se, mesmo por aqueles que esperaríamos aproveitarem a derrocada da paz para descobrir amparos mútuos. Mas, pelo contrário, e como se esperaria, apenas se exacerbam os ódios anteriores, como o dos soldados contra o negro estrangeiro enamorado de uma italiana. Nada de novo.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, por me ter colocado na rota de Bruno. As edições da Canicola são em italiano, mas providenciam uma tradução em inglês no rodapé.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, por me ter colocado na rota de Bruno. As edições da Canicola são em italiano, mas providenciam uma tradução em inglês no rodapé.