29 de julho de 2007

Brodo di niente. Andrea Bruno (Canicola)


Parece-me existir, um pouco pela Europa fora, incluindo de uma forma especial Portugal, uma geração sem experiência directa da guerra, apenas herdeiros do que se ecoa nos seus pais, mas na qual existe uma obsessão criativa, mais ou menos vincada, pela guerra. As nossas experiências – e se me incluo a título mesmo pessoal, é porque a geração a que me refiro ronda os trinta anos de idade e partilhará toda uma série de características comuns – de guerra reduzem-se, em termos sincrónicos, aos noticiários. É nessa esfera da “realidade” que se cristalizaram nomes e palavras como Bósnia-Herzegovina, Mogadischio, Sudão, Serra Leoa, Tchetchénia, Tamil, ou ainda “Guerras do Golfo” ou “conflito palestino-israelita” como metonímias de irmão contra irmão, sangue e petróleo misturados, faces oferecidas à mortandade do martírio em nomes de um deus (necessariamente menor, já que tem de matar). Mas essa ideia de guerra é também formada pela história, quer aquela aprendida nos documentos históricos sob a forma de fotografias, livros ou relatos, ou aquela que nos é herdada pelos pais (as Guerras Coloniais) ou avós (as Guerras Mundiais). Em último lugar, vem aquela cuja herança – pelo menos em Portugal – é a mais marcante: a do silêncio.
De todas as guerras possíveis – as suas mais concretas expressões e tipologias - talvez seja a civil aquela que mais nos surge como estranha. Portugal viveu uma guerra destas, mas disfarça-a histórica e imaginariamente com os apodos de “Guerras Liberais” ou “Miguelistas vs. Cartistas”, etc. Hoje vivemos naquele espaço que a Europa gosta de acreditar ser o de uma Pax Aeterna, sem nos responsabilizar pelos conflitos que são forçados a se manterem em nome de uma hegemonia política e económica. É no seio dessa educação que é difícil imaginar a possibilidade de um conflito armado, com os exércitos da morte triunfantes a marcharem pelas ruas de Lisboa ou as praças do Porto. E é no seio dessa dificuldade que surgem, de uma forma esparsa, descentralizada mas regularmente, exemplos de esforços artísticos em responder a essa impossibilidade do imaginário. Na literatura portuguesa, vejam-se os exemplos de Uma Casa na Escuridão de José Luís Peixoto, ou os “livros pretos” (Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, ...) de Gonçalo M.Tavares. Se bem que o filme de animação de André Carrilho, com argumento de J. P. Simões, Jantar em Lisboa, verse antes a realidade mediática a que me referia atrás, atravessa uma imagem de Lisboa em guerra. José Feitor, editor da Imprensa Canalha, há já algum tempo que acalenta um projecto nesse sentido, e pergunto-me se não terá sido essa noção perseguida que o terá levado a apresentar, como um dos projectos expositivos da Feira Laica, o tema “Guerra Civil Portuguesa [cenários]”. De resto, a banda desenhada europeia não se tem escusado a este tema geral: já aqui havia falado de Guerres Civiles e de Notes pour une histoire de guerre. A este grupo junta-se agora Brodo di niente (“Sopa de nada”) do italiano Andrea Bruno.
Parece-me que a Itália retorna à forte presença de colectivos de artistas de banda desenhada cujas personalidades diversificadas não impedem a concatenação de núcleos criativos e editoriais. Se nos anos 80 se falaria sobretudo dos grupos em torno da Valvoline/Frigidaire, esta nova década vê a Coconino Press (com as revistas Mano e Black), e ainda a Canicola (com uma revista com o mesmo nome). Os fãs de Tex ou de Dylan Dog provavelmente dirão que estes todos são precisamente os momentos em que a banda desenhada italiana sofre mais, pelas experiências “elitistas” e “intelectualóides” de artistas menores, e que ainda se deveriam acrescentar os nomes de Manara, Serpieri ou coisa que o valha como os “gigantes” vivos desse país, mas se gigantes são, são-no na qualidade daquele imenso ídolo do sonho de Nabucodonosor (Livro de Daniel), e estes a que me refiro são o solo que, fértil, progride de uma forma mais perene (e de onde a “pedra” será “cortada”). A Canicola surge-me como mais urgente no que diz respeito a uma experimentação gráfica em relação à Black, quase numa imagem de espelho das relações, por exemplo, entre as francófonas Frigobox (Amok) e a Lapin (L’Association) nos anos 90. É lá que, juntamente a Bruno, surgem os nomes de Davide Catania, Alessandro Tota, Giacomo Nanni e da finlandesa Amanda Vähämäki. Bruno destaca-se, todavia, deste grupo, pela mera força dos seus traços “sujos”, sobrepostos, um trabalho que parece mais dos resquícios que se deveriam eliminar de uma grattage ou de trabalhos com tinta do que a própria mancha de escrita e desenho. Toda a sua figuração impede uma exacta figuração, ou a acuidade da representação, mas de um modo surpreendente, nada se perde em termos de expressão facial e física da parte das personagens, nem da construção de um ambiente plasmado com o que se constrói diegeticamente (vejam-se como se assinala a presença do sangue, da chuva, do calor, da noite...).
Sopa (“Brodo”) é o prato que era servido à personagem principal, Rosso, aquando a sua vida militar, um jovem desertor do exército, “inimigo”, que se esconde na cidade do “seu” inimigo. Sem honra, mas a sua única ambição é continuar a viver. Vive-se de expedientes, de um abuso aqui, um furto acolá, uma venda ilegal noutro local. E não se chega, como se esperaria, a lado nenhum. Sopa de quê? “De nada” (“di niente”). Nem forças lhe dão para desempenhar uma relação sexual com uma prostituta.

Pouco importam as causas, as consequências, as lógicas. Aqui não se trata do reino da diegese clara e explicada às criancinhas. Trata-se da construção de um ambiente onde se dão os efeitos e se exploram a regularidade das relações humanas, dos movimentos a que se forçam os seres que vivem esta guerra. De um lado, o exército “inimigo” (talianos?), do outro, um exército vencedor, totalmente composto por padres. Nem sequer a religião surge como razão, nem matéria de “crítica sociológica” (por mais transfigurada que fosse, e eis uma pista: “Rosso” será um símbolo das dificuldades da esquerda na Itália contemporânea, cujo conservadorismo, inclusive católico, tem aumentado? Ou será apenas uma referência à cor do cabelo, “invisível” para nós numa obra a preto-e-branco?) pela parte do autor. É assim, como se tivesse sido há algum tempo, e fica só a esperança de que se retorne “à normalidade”, “à paz”.
Se no caso de Luís Peixoto e Tavares na literatura e Gipi na banda desenhada se servem relatos em cidades inominadas, países desconhecidos (a pátria germânica do Walser e Klump e Vast de Tavares não é certa, e a Itália de Gipi é transfigurada), para Andrea Bruno a italianidade é absolutamente central e necessária à diegese. E tal como todos esses outros autores indicados, a guerra civil ergue-se não como uma doença absoluta que toma conta de todos comportamentos e funções havidas numa cidade, mas apenas se instala no seu centro, torna-se o seu centro de gravidade, e o “resto”, a “normalidade”, vai se desenvolvendo em seu torno: o campeonato do mundo de futebol, no qual a Itália chegará a campeão, os teatros e os bordéis, o recolher obrigatório não impede passeios nocturnos até jaulas escondidas nem a derrocada dos serviços de limpeza urbana suspende encontros fortuitos de amantes.

Na cidade, continua-se a desenrolar um estranho carnaval macabro, uma dança da morte, cujas vagas, de quando em vez, acabam por aportar à vida das personagens que seguimos (o desaparecimento do miúdo sem braços, Marco, a prisão de Teresa, e finalmente a fuga de Rosso...). Pequenos ódios continuam a expressar-se, mesmo por aqueles que esperaríamos aproveitarem a derrocada da paz para descobrir amparos mútuos. Mas, pelo contrário, e como se esperaria, apenas se exacerbam os ódios anteriores, como o dos soldados contra o negro estrangeiro enamorado de uma italiana. Nada de novo.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, por me ter colocado na rota de Bruno. As edições da Canicola são em italiano, mas providenciam uma tradução em inglês no rodapé.

Locus. Mauro Cerqueira (auto-edição)


É curioso que mesmo num tempo onde a esmagadora maioria dos jovens artistas esteja mais preocupado com as (pífias) questiúnculas de “originalidade” e “fama”, e entregues às novas velocidades comunicativas e dispersão de atenção, existam entre alguns dos seus intervenientes aqueles que têm tempo e interesse em revisitar as suas próprias histórias e memórias, por mais recentes e “ultrapassadas” que estejam. "Para que não fique esquecido", reza o índice.
Locus é um fanzine quadrado de pouco mais que uma dúzia de páginas cujo objectivo principal é servir de epitáfio a uma banda de heavy metal de garagem de Guimarães, da qual Mauro Cerqueira fez parte (vocalista). O aspecto musical está presente na inclusão de um CD (garage session) e noutro local.
Se bem que não seja “my cup of tea”, convenhamos que para quem escutou alguma vez – i.e., atento às letras, ao ambiente e até mesmo à imagética, logo, imaginário criado – uns Iron Maiden ou uns Slayer, entenderá que os lados mais negros e pesados do metal namoram algumas das facetas mais egoisticamente deprimidas (Robert Smith larga o metal, mas não a “duprê”) da existência humana. Isto é, contemplam-se o suicídio e o próprio funeral para depois se poder ser mais amado enquanto vivo. Mima-se a morte para se afirmar mais o facto de que apenas vivos o podemos fazer.

Todos os ingredientes se encontram aqui: noites sombrias, monstros, deusas góticas, morte adiada ou regresso de cadáveres q.b., necrofilia ou assassínio, Bocage e Böcklin, títulos sugestivos... O nome Locus (quer do zine quer da banda) destilar-se-á de locus horrendus, um dos mais conhecidos e empregues topoi do Romantismo europeu, cuja função era criar um ambiente perturbador e onde as fronteiras da dor e do prazer se esbateriam, tal como nas do grotesco e de um apreço pela mortalidade humana. Por razões que julgo serem claras na experiência deste Locus preciso, essa perturbação, esse terror, esse confronto com o horrível, acaba por se esbater na claridade quer do gesto editorial quer dos novos desenhos de Mauro Cerqueira. A procissão de mortos-vivos que se apresenta nas primeiras páginas acaba por ser menos um Triunfo da Morte e aproximar-se de um desses carnavais a que James Ensor nos habituou...
Notas: agradecimentos a Mauro Cerqueira pelo zine. Para compras ou outras informações, ler o anterior post sobre Cerqueira ou ir ao myspace da banda (ver link).

Sclerose en plaques. Mattt Konture (L'Association)


Já anteriormente havia falado de Konture, indicando-o como um autor que me parecia não ter desenvolvido uma voz particularmente única no campo de criação de banda desenhada em que se inscreve, surgindo essoutro livro, Les Contures, como uma excepção, ou melhor, uma pequena diferenciação mais feliz na sua área: sendo Konture um autor cujos trabalhos versam a autobiografia (autobiocomix, sendo este o sexto volume da sua contínua Auto-Psy d’un mort-vivant), esse livro envolvia a vivência familiar (sobretudo a da e com a filha), relembrando assim outros trabalhos relativamente do mesmo sinal (Menu, Baudoin, Crumb...).
Todavia, para além da escrita diarística em torno das suas experiências musicais e existenciais (Konture vive afastado da sociedade mais “normalizada”, o que se expressa em todas as facetas da sua vida), foi surgindo um pequeno espigão que incitava à diferença, e que agora surge assumindo todo o seu lugar central e disruptivo da obra do autor: a doença. O diagnóstico foi conclusivo e sabe-se, confessa-se na própria obra, explora-se essa realidade, que Konture sofe de esclerose múltipla. A doença toma conta do título.
Existem muitos livros de banda desenhada que fazem convergir a existência de uma doença e a autobiografia, e onde a construção diegética procura não só explanar os acontecimentos, como sugerir uma via de cura (efectiva ou existencial, pelo menos): Our Cancer Year, de Pekar e os seus colaboradores talvez seja aquele que mais visibilidade teve, mas poderíamos acrescentar Spiral Cage de Al Davison, Cancer Vixen de Marisa Acocella Marchetto e, claro está, L’Ascension du Haut Mal de David B. (sobre a epilepsia do irmão) [um outro tipo de doença se explora em bandas desenhadas tais como as de Debbie Drechsler, Art Spiegelman, Neaud, Baudoin: tomam o nome de “trauma”, “solidão”, “amor”, “morte”]. Ora, de todos estes livros, parece-me que apenas este último, de David B., transforma a especificidade dos sintomas da doença em princípios geradores da linguagem da própria obra. Não serve esta afirmação como um juízo de valor diferenciante das restantes obras, como quem diz “é melhor que” – esse juízo poderá ser feito, mas não nestes termos simples. Simplesmente que David B. permite que essas duas especificidades se encontrem e se sigam numa rota paralela. Também Konture me parece conseguir o mesmo em Sclerose en plaques.
De todo o corpo humano, os neurónios são o único tipo de célula que não se regenera, por isso poder-se-á dizer que o momento em que temos mais neurónios é o exacto momento do nosso nascimento, começando eles a perderem-se por toda uma série de razões (a entropia neuronal é, por este lado, real). No entanto, sabemos que é à medida que crescemos que aprendemos e ganhamos um maior grau de inteligência. Esse processo deve-se em grande parte à educação, à sociabilização, aos estímulos externos do mundo que nos rodeia (a parte na nurture, portanto) mas em parte deve-se igualmente à nossa biologia e metabolismo (e alimentação, descanso, etc., ou seja, a parte da nature). Trata-se de um processo de criação e estabelecimento de redes neuronais, ou ligações de neurónios entre si, pela mielina, e que termina pelos 20 ou 21 anos de idade, e a que se dá o nome de mielinização. Depois disso, não há muito mais a fazer em termos de inteligência, ou capacidades intelectuais, apenas em termos de quantidade de informação (ainda é mentira que “burro velho não aprende línguas”). A esclerose é uma das doenças que provoca a desmielinização, levando a que os processos sinápticos diminuam de rigor, velocidade e eficácia, sendo o maior problema a perda de memória, os “trous de memoire” que Konture refere neste livro.
Se nos damos ao trabalho de indicar alguns aspectos (necessariamente simplificados) do funcionamento biológico desta construção e da desconstrução a que a doença obriga é por esse duplo movimento estar expresso pelo próprio modo como Konture constrói a sua narrativa. Aliás, por uma via metafórica, podemos entender a banda desenhada como sendo uma linguagem que funciona de uma maneira similar, em que os seus neurónios (elementos singulares, as vinhetas), independentemente do seu valor intrínseco e individual, apenas ganham sentido, função e se tornam parte de um texto aquando de uma rede neuronal (a sequência, as pranchas, a obra), unidas por esse líquido congregador e auxiliar à comunicação subtil e rápida, que é a mielina (os espaços intervinhetais, o ponto nulo, a tressage de Groensteen).
Numa famosíssima entrevista de Fritz Lang, o realizador alemão afirmou que a “dor física vem da violência e acho que é a única coisa que as pessoas de facto temem nos nossos dias, e é algo que se tornou uma parte integrante da vida”. Lang referia-se a uma violência externa, colocada no centro da atenção da existência depois da 2ª Grande Guerra e às ligações com o cinema. Mas a doença é também uma violência, que desponta de dentro para fora do corpo e não menos assustadora. A morte é cada vez mais afastada dos nossos dias, ou reinstala-se em formas disfarçadas (a violência da cultura de entretenimento, por exemplo), e a dor da doença faz parte das realidades que desejamos afastadas, disfarçadas, invisíveis. E se possível mudas também. Konture, bem pelo contrário, efectua o gesto contrário, ofertando-lhe, à dor, uma voz com que nos interpela directamente. Parte de Sclerose en plaques mostra através de metáforas visuais a dor que sente (os pregos, as chamas), mas o central da dor ou do medo do autor, aquilo que mais o obceca e ocupa um maior espaço são os “buracos” ou “falhas” de memória. São vários os modos como eles surgem. O primeiro, mais simples, é simplesmente “dizê-lo” (no momento em que está a tocar na banda e se esquece das letras). Mas outros há mais ou menos complexos.




O autor revela que o seu método de trabalho é estabelecer a prancha dividida em vinhetas, preencher os cartuchos superiores de texto e depois elaborar os desenhos que devem corresponder. Um desses modos é desenhar na vinheta personagens, intervenientes ou imagens diferentes daquelas que se esperariam do texto: não a rapariga que o atende nas urgências, mas simplesmente “uma imagem de banda desenhada”, não as pessoas que efectivamente estavam no comboio mas personagens que fazem as vezes dessas pessoas, flores, omeletes-células que servem de metáfora e/ou metonímia (é quase impossível destrinçá-las aqui) à doença, ao interior do corpo, à dor que desponta.

Um outro modo junta-se ao cansaço físico e mental e à falta de vontade: preenche-se uma prancha com paisagens que nada têm a ver com a descrição verbal porque “me chateia” (e repare-se na letra, como treme). Mas rapidamente essas paisagens ganham direito de cidadania e tornam-se um outro sintoma, secundário, do que é descrito: é comos e fossem as florestas por onde a mente hipocondríaca de Konture se tivesse perdido e por onde procura um caminho, e finalmente encontra uma possibilidade de entender as causas (saber o nome à doença é como nos antigos ritos dos demónios, onde saber-se o nome da entidade diabólica permitia exercer algum poder sobre a mesma). E de se reencontrar enquanto indivíduo.

Uma das estratégias de reverter esse processo, e que ao mesmo tempo coloca em questão o funcionamento da memória humana, é o recorrer a trabalhos anteriores, sob a forma de vinhetas retiradas de outros livros e fanzines, incluí-los aqui, e mostrá-los como sintomas anteriores, ainda sem o seu sentido último, mas que finalmente se revelam como sinais primeiros da doença que agora ganha nome (e título).
É assustador apercebemo-nos de que este livro não é construído num momento em que se sabe que o combate foi ganho e existe alguma esperança para um futuro, como sucede, mais uma vez, em Our Cancer Year ou Cancer Vixen (batalha ganha) ou Spiral Cage (batalha superada). Nem tampouco se trata de um gesto externo a quem possui a doença, e o que se pretende é a eliminação de fantasmas e a procura por um novo (e livre) caminho, como em L’Ascension du Haut Mal ou a reconstrução de um trabalho de luto eficaz, como em Mom’s Cancer, de Brian Fies. É assustador apercebermo-nos de que esta banda desenhada de Konture expresse o medo de que o silêncio (a incapacidade para continuar o seu trabalho em banda desenhada) esteja iminente. É assustador apercebermo-nos que esta poderá ser a última prestação de Konture.
Ao mesmo tempo, é assustador porque, como o susto, que nunca se sabe de onde vem (até etimologicamente) ganha uma presença forte que nos interpela directamente. E não temos tempo de desviar o olhar. É sempre, tememos, tarde demais.
Nota: agradecimentos a Miguel Carneiro e Marco Mendes, pelo empréstimo do livro e pela insistência em ultrapassar barreiras.

22 de julho de 2007

How to be everywhere. Warren Craghead (ed. autor)


Regularmente, surgem discussões sobre os espaços ocupados pela banda desenhada e pelas artes, enquanto esferas afastadas, sobre os espaços fronteiriços onde ambas são acolhidas num qualquer diálogo, sobre os espaços que as diferenciam e sobre os que as aproximam. As mais das vezes, essas discussões atravessam as naturezas sociológicas, históricas, essencialistas, disciplinares, de cada uma dessas artes. As mais das vezes, atravessam uma cegueira aspectual, que se relacionará sobretudo com uma entrega demasiado desequilibrada, informada ora pelo ressentimento ora pelo preconceito, a uma dessas esferas. As mais das vezes, quando se fala de onde e quando e como se aproximam as “grandes artes visuais” e a “banda desenhada”, olham-se para as instâncias em que a primeira ausculta a seguinte como fonte de matéria plástico-social a explorar para depois a empregar num qualquer exercício de desmantelamento cultural, desconstrução política, crítica estética, ou para os exemplos em que a segunda mima a primeira pelos canais da ironia, da acérrima diatribe, da desinformada gozação, ou do mero aproveitamento de determinados efeitos superficiais.
É raro, portanto, que se olhe e procure e discuta os momentos em que no seio da própria banda desenhada se experimentam valores e tacteares usualmente apenas encontrados nas ditas artes de primeira, tal como raro é procurar exemplos de obras já dos círculos das artes visuais que dialoguem de facto, de igual para igual, com conhecimento, entendimento, respeito e até encantamento, com a banda desenhada enquanto saber e saber-fazer autónomos, enquanto modo de expressão específico. As razões dessas raridades em termos de discussão e alertas são muito simples, e devem-se ao simples facto de que a existência desses diálogos, dessas obras, dessas instâncias ser rara nela mesma.
Mas de quando em vez essa raridade é rasgada e contrariada e surgem pessoas que demonstram que as melhores experiências estéticas, os mais arriscados gestos, não são devidos a iluminados do exterior de outras disciplinas “descendo” à banda desenhada, mas sim irrompem do seu interior, mesmo que sejam fulgurantes apareceres, votados quem sabe a um desaparecimento e a uma falta de herança (o que aconteceu com Vaughn-James, com McGuire, com muitas das experiências de Spiegelman, com Coché, Alagbé, Fortemps...). Uma vez, em discussão, disseram-me que “abrir as portas para um muro não interessa para nada”, acusando-se a inexistência da herança ou a impossibilidade de se ir para além desse ponto de experimentação como se se tratasse de uma inconsequência em si mesma. Mas não partilho essa visão. Parece-me antes que, mesmo sendo esse gesto o que ele é e onde ele leva – uma porta aberta para uma parede de tijolos intransponível (e só nós, aquém dos criadores, é que podemos entendê-la como tal, apenas e ainda) -, deve ele, o gesto, ser gloriosamente feito e preencher essa promessa com a sua própria acção, cumprimento, existência.
Warren Craghead já havia apresentado curtas experiências em torno da banda desenhada em alguns dos volumes editados por ocasião das Small Press Expos (SPX). Também editou um pequeno zine intitulado Speedy. Este livro agora é o seu último grande projecto. Trata-se de uma colecção de desenhos que foi alvo de uma exposição e é agora re-organizada e re-apresentada em forma de livro, e que despontou de um interesse e de um diálogo com a poesia de Guillaume Apollinaire. Se bem que tenha experimentado aproximações diferenciadas nos trabalhos anteriores, o estilo encontrado numa dessas pequenas experiências da SPX repete-se em How to be everywhere, o qual não pode ganhar outro apodo senão “desagregado”. Nenhuma das figuras está “completa”, nem sequer os contornos se fecham, os rostos não possuem informações suficientes de expressão, os textos vogam em formas livres e sem ordem nem peso, as palavras separam-se nas suas letras.
Apollinaire é um dos nomes que mais contribuiu para a abertura do mundo na poesia. Isto é, Apollinaire deu oportunidade a que a poesia se reinventasse não enquanto voz lírica e estruturação verbal que marca distância do mundo mas veículo onde a estranheza verbal mimasse e respondesse à estranheza real que existia já no mundo, tangível. A experiência directa, física, espiritual do poeta da 1ª Grande Guerra foi um dos aspectos que mais contribuiu para um literal “estilhaçamento” da poesia, o qual encontrará ecos quer nos temas que na própria forma (caligráfica, tipográfica) dos poemas. Os primeiros sintetizam-se na guerra, no ser desagregado em variadíssimos elementos para depois se compor com todo o universo, na ausência de uma linha temporal ou espacial, numa predilecção, que estava “na moda” das letras e artes da época, pela vida da metrópole... Outros poetas alcançariam o mesmo, e não é de desacompanhar Apollinaire de nomes portugueses como os de Sá-Carneiro (“Todo me incluo em Mim”, escreve Sá-Carneiro em Manucure) ou Álvaro de Campos ou o interseccionismo de Pessoa.
A segunda encontra-se numa das “linhas de produção” de Apollinaire, que se consubstancia nos caligramas, isto é, poemas nos quais a disposição dos versos, das palavras, das letras – pois as unidades chegam mesmo a ser desagregadas a esse nível – assume uma figuração que se deseja iconicamente significativa para com o próprio sentido textual do poema. Aliás, é o poeta de expressão francesa quem cunha a palavra, no título homónimo do seu livro de 1918, unindo as palavras gregas “beleza” (kalos) e “escrita” (graphein; pois o sufixo –grama é um erro “normalizado” na modernidade). O aspecto importante reside no facto de que o que faz emergir a beleza não é o sentido construído paulatinamente pela escrita, isto é, “o que quer dizer”, mas é o próprio acto da escrita, o gesto de escrever, o “como” que se torna veículo dessa beleza final. Sendo uma característica possível de se encontrar na “Poesia de 26 Séculos” (Jorge de Sena), é Apollinaire que funda a existência desta aproximação à visualidade da poesia na modernidade. Mesmo não tendo tido este nome, os caligramas constituem uma tradição já antiga, e muitas formas e figuras: os carmen figuratem foram, por exemplo, objecto de cultivo erudito nos tempos do barroco ibérico. Essa experiência seria continuada também depois do poeta, na poesia visual, que também teve uma feliz e desenvolta existência em Portugal e onde algumas das experiências havidas chegaram mesmo a ocupar um espaço que quero ver como fronteiriço à banda desenhada. refiro-me, sobretudo, a O Escritor, de Ana Hatherly. É através destas associações, pela força verdadeiramente poética (poiesis, um “fazer”) das escolhas verbais sobre Apollinaire e a sua criação visual, que Craghead atinge um patamar da poesia em banda desenhada assaz significativo e produtor, bem mais além dos Poema a Fumetti de Dino Buzzati, de contornos mais narrativos, e ainda que diferentes, constituindo exercícios próximos dos que Dice Industries e Katharina den Hausladen apresentaram (entre nós, na Mesinha de Cabeceira Popular).
Warren Craghead III aproveita precisamente essa “linha” para fazer construir o seu próprio caminho. Segue a estrutura dos poemas (“imita” as formas) de Apollinaire dedicados à torre Eiffel, dos da chuva, um outro que desenha um rosto, delineando-o ao mesmo tempo que o descreve.... Quer dizer, toda a poesia de Apollinaire é a matéria-prima que Craghead emprega em How to be everywhere, mas não a única. Ou, por outras palavras, não é a matéria primeira, já que se seguem outras, segundas mas não secundárias. E todas elas são relativamente claras de identificar, já que vogam em torno do mesmo intervalo temporal referente aos poemas originais: as colagens cubistas de Braque e Picasso, meia-demoiselle d’Avignon deste último, uma fotografia de Lartigue, a mulher da tina de Degas. Estas dizem respeito à via erudita, mas tal qual as colagens referidas, também penetram nesta obra objectos desconexos – enquanto signos individuais – da cultura quotidiana desses tempos que compõem um todo significativo: peças de maquinaria automobilística ou militar, aeroplanos e bicicletas, meias de renda em pernas viúvas ou roldanas que nada sopesam, candeeiros de rua, flores, capacetes, postais. E soldados, trincheiras, florestas dizimadas. É numa destas florestas que, letra por letra na ponta dos ramos quebrados e dos troncos despojados que se espraiam os versos (na sua tradução inglesa, claro está) do poema “Merveille de la guerre”, e que dá nome a este livro: “Je lègue à l'avenir l'histoire de Guillaume Apollinaire/Qui fut à la guerre et sut être partout”.
Acredito que não existe obra qualquer de qualquer arte que não possua, nos seus aspectos manifestos ou nos interstícios mais subtis, um signo do próprio programa a que se entrega, um emblema mise-en-abîme da própria obra. Há um outro poema/ilustração em How to be everywhere que me parece cumprir esse destino. Sensivelmente a meio (as páginas não estão numeradas, e cada página/prancha pode ser lida como uma unidade poético-icónica singular), surge um desenho de um rosto de um homem(aqui mostrado em imagem). Por cima está escrito “Let Us Rejoice” (“Rejubilemo-nos”). No interior do rosto, contornando-o em cada elemento e até mesmo substituindo o signo icónico (o olho, deixado “em branco”) pelo signo verbal (“mistake” e “our eyes”), espraia-se o poema que Apollinaire escreveu para o casamento de André Salmon (aliás, o rosto poderá ser um retrato dessa outra personagem da época). No entanto, é curioso notar que as diferenças permitidas pela tradução inglesa e a segunda selecção de Craghead levam a que se sublinhe ainda mais o programa da experiência de um desenho em diálogo com as palavras. O trecho do poema original reza (literalmente) assim: “Não porque tenhamos crescido até que possam confundir os nossos olhos e as estrelas/(...)/Nem porque firmados na poesia tenhamos direitos sobre as palavras que formam e desfazem o Universo”. O poema, tal como surge nestas páginas (mais uma vez, literalmente), lê: “Não porque sejamos altos, muitos confundem os nossos olhos com constelações, nem porque firmes na poesia tenhamos o poder das palavras em formar e deformar o universo”.
Craghead “apaga” todo o resto do poema, transformando as razões do rejubilamento inicial nesta dupla negação. É como se fosse está série de aniquilamentos o primeiro ou o gesto fundamental para dar espaço e início a uma novo movimento (desfazer e depois refazer o universo). O olho apaga-se mas é redesenhado noutra forma. As palavras que compõem a parte que promete o poder das palavras desagregam-se em letras, mas é como se quisesse somente demonstrar a possibilidade de recombinar-se. Tal como nas regras gramaticais do inglês, as duplas negações anulam-se, não existem. Menos por menos dá mais, Não por não dá Sim (o “sim” de Molly Bloom, outra personagem sensivelmente do mesmo período: mergulhar no negativo para descobrir as potencialidades das artes).
O uso da palavra constelação desperta de imediato uma associação às noções de Walter Benjamin, impedindo-se pensar em qualquer ideia como uma mónada, um átomo indivisível, singular e separado de tudo o resto, mas antes entender tudo como estabelecendo pontos de relação entre si. Cabe-nos a nós, interpretantes, leitores, experienciadores, apercebermo-nos de quais as linhas que unem uma “estrela” à outra “estrela”; desenharemos, seguramente, constelações diferentes, mas podem existir muitos pontos em comum. A meu ver, How to be everywhere tem todo o lugar na (minha) constelação da “banda desenhada”. Espero que partilhem ou encontrem pontos em comum com esse entendimento.

18 de julho de 2007

VERBD: blog


Conforme prometido anteriormente, aqui informo estar já disponível o blog do programa VERBD. À medida que surgirem novas informações e os programas forem para o ar na RTP2, disponibilizarei mais informações.

Convido-vos desde já visitarem o blog, deixarem comentários ou questões ou críticas.

Agradeço a atenção e sobretudo que acompanhem o programa.

Agradeço também a continuidade do pedido que fizera anteriormente, aqui.

1 de julho de 2007

Babinski. José Feitor e Luís Henriques (Imprensa Canalha)


Uma epígrafe deve ser levada a sério. A epígrafe de Babinski, que deve ser entendido como um equilíbrio feliz entre a adaptação e a versão original, é um rebus de Grandville. Um rebus é um enigma que se apresenta sob a forma de uma mescla entre imagens e palavras/letras (em termos nominais, como a banda desenhada), mas onde as primeiras tanto assumem o seu valor icónico como simbólico, e as segundas tanto o seu valor denotativo como uma existência material (fonética, gráfica). É uma citação que leva logo a pensar na constelação da banda desenhada, em termos históricos, ontológicos e até formais.
A epígrafe aponta para a existência de dois modos de interpretação. Três. O primeiro é olhar para a superfície das coisas e tomá-las tal qual elas são, com um valor presencial tão forte que pouco importa, na verdade, a interpretação. A segunda está em perscrutar os significados latentes, ora arrancando-os pela força ora seduzindo-os a se mostrarem, pelo trabalho da investigação, da inquirição crítica, da análise. A terceira é bater com a cabeça, isto é, repetidamente falhar na maneira de ler e nem sequer produzir resultados infrutíferos: é não produzir resultados no trabalho interpretativo.
A estória de Babinski surgiu pela primeira vez no romance de Meyrink intitulado O Golem (editado entre nós pela Vega). Tal como o Drácula de Bram Stoker, O Golem é uma obra de má literatura, pretensiosa, epocal, mas que conheceria uma grande fortuna enquanto fonte de inspiração, transformando-se numa plataforma do trabalho imaginativo de outros artistas a vir. Na banda desenhada o Golem, enquanto personagem, tem surgido em avatares díspares pelas mãos de Dino Battaglia e James Sturm, Joann Sfar e David B., e no mundo dos super-heróis tem surgido vezes sem conta em versões mais ou menos disfarçadas. A fortuna de Babinski é breve nesse romance, contada sob a penumbra de uma Praga com símbolos a mais e entre duas canecas de cerveja. A primeira película de transfiguração que atravessa para chegar ao presente livro é o trabalho arqueológico de José Feitor, que arranca desse conto em segunda mão os eventos significativos, transformando-os em nós pertinentes e passíveis de se colocarem enquanto marcos de uma construção pelas imagens. Neste passo em particular, “nós” assume tanto o seu significado narratológico como a de metáfora, através da presença da corda, leit-motif do livro. Esses nós tornam-se a matéria a qual cabe a Luís Henriques - “cristalizar” (para empregar uma palavra que lhe é cara) em forma de imagem: é Henriques o ilustrador, artista, desenhador, banda desenhista, seja qual for a função ache o leitor que ele cumpra, quem assume essa segunda transformação, se bem que julgue estarmos perante um trabalho que confunde todos esses papéis. Confunde no seu pleno e positivo sentido: “verter em conjunto”.
Porque é isso mesmo o que acontece neste Babinski: vertem-se fontes num só cadinho. Quer provenham do campo imagístico (os soldados adormecidos de Piero della Francesca, os Carceri de Piranesi, os panoramas de Praga de Josek Sudek), do campo literário (do epitáfio de Villon às canções de Vian, etc.), quer de campos laterais da e pela História da Arte e da Cultura (de medalhões a moedas aos emblemas medievais, à presença dos nomes das musas de Abelardo e de Jean-Martin Charcot - este último lançando pistas extra- ou intertextuais muito curiosas mas obscuras com a obra presente), a utilização pródiga desses materiais dispersos e diversos leva a uma fuga da preocupação pela acuidade da adaptação - histórica, geográfica, etc. - para entrar num espaço pleno da agudeza da criação de imagens (a diferença entre acuidade e agudeza aqui sendo de graus, a primeira revelando mais da subserviência pela verdade, a segunda da inteligência criativa). Se já nas Black Box Stories, escritas por José Carlos Fernandes, Luís Henriques demonstrara que não lhe interessará desenhar à sua volta (ou do seu trabalho, melhor dizendo) uma fronteira clara entre territórios de expressão, aqui mostra como a criação de imagens pode estar ao serviço de uma abertura contínua... A criação de imagens e o seu emprego não redutor a um texto despoleta leituras abertas. O grau de desarrumação em relação ao próprio campo da banda desenhada ou ilustração fica demonstrado pelas variadíssimas estratégias de distribuição do tempo e da acção, das personagens, da própria organização e estruturação das “pranchas” e “vinhetas”, etc.
Nesta versão em particular, é difícil não escapar do espaço que é desenhado pela corda. Também as Parcas teciam, mediam e cortavam outra corda, a da vida dos mortais; esticada, é a menor linha possível que mede a vida de um homem e o que ela tocou, isto é, a sua circunferência. A circunferência da vida de Babinksi é fechada sobre um crime, que não é somente a do assassinato. Este poderia ser mitigado aos olhos de uma qualquer injustiça pelo seu interesse ulterior em amealhar fortunas roubadas ou garantir um proveito... Mas o pecado de Babinski é maior que isso: está em tomar a vida dos outros como seu território de distribuição (aleatório e caprichoso), usurpando o papel das Parcas. Assim sendo, o pagamento não se encontrará num castigo pela imediata morte fria do Estado, mas pela destruição do seu valor enquanto indivíduo: Babinski viverá o tempo suficiente para se ver despojado das suas paixões de assassino, mas para além disso também, tornando-se brinquedo, marioneta, mas uma marioneta que não ganha a sua própria autonomia (o seu ponto de gravidade, como diria Kleist). Bem pelo contrário, é um mero “joguete”, como soe dizer-se. Nas mãos de crianças, nas montras como peça decorativa, como objecto de melancolia nas mãos dos viúvos e órfãos e abandonados, os sobreviventes das vítimas de Babinski. Por essas razões a corda surge como leit-motif do trabalho gráfico desta versão, seu centro, seu título, seu elo de ligação...
Nota: agradecimentos ao editor e autor José Feitor, pela oferta. As imagens foram aproveitadas do blog do autor-editor.

Faire semblant c'est mentir. Dominique Goblet (L'Association)


O título revela de imediato a pista que nos permite entrar na problemática instituída pelo último livro de Dominique Goblet, a qual já anteriormente, com Souvenir d'un journée parfaite, nos lançara no campo da memória como, não um campo denso e sólido e seguro, mas antes um paul onde o solo desenha uma paisagem aparentemente heterogénea mas que pode subitamente ceder sob o nosso peso, ao pisarmo-lo (como, doutro modo, Gébé o fez). Faire semblant c’est mentir, “Fingir é mentir”. Etimologicamente, o verbo “fingir” associar-se-á a uma outra palavra de contornos muito contemporâneos que é “ficção”: ambos os vocábulos nascem de fingere, cujo significado antigo remete a uma acção, a de “dar forma”.
Souvenirs era uma “ficção”, co- ou inteiramente escrita por Guy Marc Hinant, mas que se se lançava no complexo território da autobiografia (leia-se o prefácio de Menu neste livro), ou pelo menos no da rememoração [uma questão: se é possível falar-se de autobiografia em banda desenhada no caso de livros escritos por um autor, por exemplo Harvey Pekar, que recorre a um artista para os desenhos, porque será confuso aceitar o contrário?]. Faire semblant é também co-escrito por Hinant, mas é antes um exercício daquilo a que se dá o nome de auto-ficção, no qual o autor empírico se coloca enquanto protagonista da diegese que apresenta, existindo várias linhas de divergência entre a “realidade” e o “universo diegético”. Obviamente, pouco (nos) importa explorar quais as divergências aqui presentes, o que nos impeliria para uma investigação biografista, que pouco nos preocupa e pouco nos auxiliaria a ler o livro. A questão é que esse estranho pacto (para repescar a expressão de Lejeune a propósito do pacto autobiográfico) é desde logo um acordo entre o leitor e a obra apresentada, e aceitamo-la precisamente por não apresentar quaisquer fronteiras acertadas entre uma coisa e outra: a nossa mente ricocheteia entre uma leitura de um “isto é verdade” e “isto é ficção”. Não se chega a qualquer remate, mas aí reside a felicidade da obra. O título, gritado por uma das personagens (uma complicada e traumatizada “mulher do pai”; e, como vemos no exemplo da imagem, representada somente nas linhas dos seus sintomas de ódio, intemperança e impaciência), fecha-se num julgamento moral e num desacerto em relação ao acordo indicado: fingir não é mentir, é dar forma a uma outra linha da verdade, que assim chega até nós. Mais tarde, a protagonista repete numa outra versão, e aplicada a uma outra realidade – as relações amorosas – onde o fingimento dá forma também, mas a fantasmas, os quais herdam um peso do qual há que nos alijar o quanto antes.
Faire semblant c’est mentir
surge-nos estruturado em quatro episódios ou partes, uns co-escritos com Hinant (o segundo e quarto), outros somente por Goblet (o primeiro e terceiro). Todos eles nos remetem para um “presente” (a rememoração, na literatura, poder-se-á fazer por um presente transfigurado nos pretéritos imperfeito ou perfeito, mas na banda desenhada as imagens obrigam a um “presente eterno”), mas um presente sub-dividido: os de capítulos de Goblet remetem-nos para uma visita da protagonista, com a sua filha, ao pai, que vive com uma segunda mulher, e as crises que daí advêm... (a mãe terá morrido, está ausente, surgindo na “introdução”, que de resto é apresentada formalmente como pertencendo a um nível exterior a toda a narrativa, como se pertencesse à jurisdição do onírico, ou da memória tout court, i.e., intocável, irreparável, irrepetível, logo, falsa, uma vez que a memória jamais cristaliza); os com Hinant para uma esfera mais reduzida de relações, amorosas, doméstica. Na metade de Goblet a representação é algo livre, em que a cada personagem é atribuída uma plasticidade particular, no qual cabem as intervenções de um desenho infantil, pequenas colagens, intervenções de ícones e símbolos; na com Hinant, a linguagem é mais contida, mas assombrada, literalmente pelos fantasmas das relações terminadas, colocando gente a mais nas relações presentes, e pelo trabalho do carvão, sobretudo carregado nos momentos das paisagens e dos retratos dos fantasmas (transições?), ou da penumbra.
Ou seja, logo à partida, o livro, enquanto um todo, apresenta-se dividido, espelhando a quebra da recepção do leitor de um suposto entendimento coeso das relações entre memória e ficção. Mais, a representação dos corpos, sobretudo da protagonista, é mostrado de uma forma dupla, diferenciados entre cada um dos núcleos de capítulos. Implicará isso, portanto, uma dupla leitura, ou uma diferenciação da leitura conforme as unidades em que se inserem essas representações; ou então, são essas representações diferenciadas, distribuídas nesses episódios que informam (mais uma vez, dão forma a) essas partes como também diferenciadas (o que não quer dizer que não existam como que metástases de cada uma das partes nas outras, impedindo o exercício de uma partição básica e fomentando a indecibilidade da obra). Após o que, retornamos à convergência, por estarem ambas no interior de uma unidade maior, a da obra propriamente dita. De acordo com os ensinamentos de Groensteen, o fenómeno de percepção e memória na banda desenhada a que ele chama tressage encontra aqui uma instância única, que dá que pensar. Não será essa a maior felicidade de uma obra?

Une plume pour Clovis. Gébé (L'Association)


A editora alternativa L'Association, apesar da sua saúde actual, prossegue a sua política de reedição de “livros esquecidos” de autores que fizeram parte de uma revolução silenciosa na banda desenhada moderna francesa (integrado num ciclo maior de recuperações). Mesmo em livros que versam a história do tempo em que ele se inscreveu, Gébé faz parte dos inominados, apesar de ter sido um dos autores mais participativos da revista Pilote que, a seu tempo, protagonizou uma pequena viragem na natureza da banda desenhada francófona. Curiosamente, quando hoje dizemos “bd franco-belga” estamos a compactar toda uma diferenciação de trabalhos num mesmo nome, e poder-se-ão perder, nessa percepção apressada e sem uma predisposição para com a história, os combates a que cada uma dessas obras diferenciadas se entregara, combates que se deram nas suas recíprocas relações. A mais famosa é precisamente a “oposição” que existiria entre a publicação belga Tintin e a francesa Pilote. E assim, ainda que anedoticamente, entre as personagens Tintin e Astérix, respectivas de cada título (uma das razões do esbatimento dessa oposição junto ao público português é o facto de se terem ambas apresentados na nossa revista Tintin; vejam-se o livro de Dias de Deus, Os Comics em Portugal, e a série televisiva a estrear VERBD, episódio 2). Esta longa recordação importa pelo apodo que a Pilote ganharia de ser “iconoclasta” (não tivesse Goscinny passado pela equipa de Kurtzman e da MAD nos E.U.A.); mas poder-se-ia dizer também “onconoclasta”, já que as transformações operadas pelas bandas desenhadas desta revista não só desmontavam o aspecto mistificador que a “bande dessinée” havia proposto durante as largas décadas anteriores, a saber, “divertimento para crianças”, como também o seu papel político e social e até filosófico. Remeto-vos à leitura de livros de historiadores para a complexidade dessas flutuações e papéis, por exemplo, de Bruno Lecigne. Diga-se aqui, porém, para uma máxima clareza de pensamento, que não seriam todas das bandas desenhadas no interior da Pilote que cumpriam esse papel. A iconoclastia de Astérix e Lucky Luke seriam importantes a seu tempo, talvez, mas seriam dissensões “calmas” e de “baixo sinal”, em relação a outros exercícios mais bem mordazes e corrosivos da revista. As de Gébé seriam bem mais vincadas.
La Plume de Clovis é uma pequena história de 27 pranchas, que havia sido publicada a cores nessa revista (e que L’Association agora republica), mas que também conheceu uma edição em livro em 1975, a preto e branco, conjuntamente com outras histórias menores, às vezes de uma página apenas (pelas Éditions du Square).

Muitos dos textos em torno deste livro apresentam-no, as mais das vezes como sendo uma obra singular – no universo da aventura a que a banda desenhada tantas vezes se resume - por apresentar uma personagem que não é “norma” do cânone desta arte: um velho. “Clovis é um pouco o anti-herói por excelência: velho, mais ou menos reformado, rezingão, olha que não está longe de ser um velho idiota, hã?” (como reza na entrada sobre este livro na Bédetheque). Seja. Mas essa leitura só se mantém segura se for feita pelo estreito prisma da banda desenhada das tais décadas a que me referi atrás, e no interior da francofonia. De Töpffer a Bordalo, de Caran d’Ache a Doré, quantos autores colocavam adultos maduros (mesmo que “loucos varridos”) no papel primeiro? E as primeiras prestações dos super-heróis não apresentavam “jovens”, sequer. E que idade tem Krazy Kat? Não é uma adolescente, seguramente.

Esta pequena história apresenta muitas outras linhas de força perfeitamente surpreendentes ainda para os padrões de hoje. No fundo, esta narrativa é uma espécie de novela detectivesca, onde Clovis segue pistas para encontrar um amigo de infância, a qual há muito passou... Em primeiro lugar, há uma reacção que o remete a uma vida interna, na qual a amizade sobrevive no seio da memória, que por sua vez é despoletada através dos objectos que Clovis acumula na sua oficina. A procura é voluntária, mas a descoberta não. Ou seja, testemunhamos um voluntarismo a mergulhar no involuntarismo, relançando as ideias que Proust fizera avançar a propósito da memória em A la recherche... Depois dessa primeira descoberta, Clovis deseja procurar o prémio que lhe havia sido prometido pelo amigo de infância, rapidamente transformada numa busca pelo amigo. As descobertas sucessivas perfazem uma conturbada trama, cheia de acção e movimento. Não descobrimos jamais se se trata de “verdade”. O que importa é o caminho que o protagonista cumpre, e cujo objectivo acaba por “coincidir” com a ideia perseguida. (um eco similar surgiria mais tarde na história da banda desenhada, num outro livro que seguirá a mesma opção construtiva e ontológica: À procura de Sir Malcolm de Rivière e Floc'h).

Esta trama revela, portanto, daquela rapidez e concisão de eventos e nódulos de transformação que Italo Calvino apresentaria como “lições para o novo milénio”. É nesse têxtil de trama apertada e nas suas convergências da memória (o retorno do mesmo) e da ficção (o lançamento do diferente), como com Goblet, que Gébé se revela, outra vez (ou finalmente?), como um autor fundamental para a assunção da banda desenhada como uma linguagem de pleno direito da representação das paixões humanas.