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Sobre as circunstâncias originais (no sentido estrito de “origem”) da factura e edição e limitada recepção deste livro em 1973, remeto todos os leitores interessados aos textos dos seus prólogos, assim como à do
blog específico desta obra. A leitura de todos estes materiais demonstrará as razões dos temas e ideias aqui debatidos. É sempre um aspecto positivo que, num país que não preza a reedição de livros, inclusive aqueles que vários sectores poderão apelidar de “clássicos”, e cuja política de silêncio afecta sobretudo a banda desenhada (mas não só), se encontrem estes pequenos e esporádicos gestos. Ainda que não me pareçam significar uma reestruturação de mentalidades ou a instauração de novas políticas editoriais. No entanto, a bem do rigor, há toda uma nebulosa erguida em torno de
Wanya que me parece discutível.
O primeiro problema surge na cinta em que este livro se vê exposto nas livrarias. Trata-se de mera publicidade, sem dúvida, mas ainda assim leva-nos a pensar. Diz tratar-se de um livro que revolucionou a banda desenhada portuguesa. Mas como é possível revolucionar algo quando não se deixam herdeiros? Falei de reedição, que o é sem dúvida, mas de um livro que não se encontra esgotado. De quando em vez, pequenas ou grandes feiras do livro mostram pequenas pilhas da edição da Assírio & Alvim, de 1973. O facto de não ter esgotado não é suficiente para se entender as razões pelas quais se diz ser um “ilustre desconhecido”, mas é já condição necessária. É verdade que
Wanya foi um desses livros que, regularmente, surge no círculo nacional da produção de banda desenhada que se diz serem “pedradas no charco” ou “lufadas de ar fresco”, mas é igualmente um facto que muito rapidamente o charco volta a estagnar e o ar se adensa novamente.

Numa das entrevistas de então (a Vasco Granja), surge-nos de imediato o nome da influência mais imediata, a saber, a do livro
Saga de Xam, “realizado por Nicolas Devil” (aqui, uma imagem desse livro), apesar de fruto de uma colaboração de uma grande equipa, publicado em 1967 pelo editor Éric Losfeld (o qual ganhara algum renome junto à
intelligentsia francesa pelos seus actos culturalmente subversivos, em prol da literatura e erotismo livre: vide a primeira edição de
Emmanuelle). Folhear esse livro é gesto suficiente para entender onde se encontram as afinidades formais e de mote entre um e outro. Poderíamos estender essa associação a praticamente todos os livros que Losfeld editaria por essa altura, pela simples razão de todos eles partilharem toda uma série de elementos idênticos. Estou a pensar no primeiro álbum de
Barbarella (1964), de Jean-Claude Forest, os dois primeiros álbuns da personagem Scarlett Dream (1967 e 1972), de Claude Moliterni e Robert Gigi,
Pravda, la Survireuse (1968), de Thomas Pascal e Guy Peellaert,
Epoxy (1968), de Jean Van Hamme e Paul Cuvelier,
Valentina (1969), de Guido Crepax, e
Xiris (1970), de Serge San Juan, entre alguns outros títulos. Todos eles partilham a presença de uma personagem principal mulher, ou jovem adulta, livre, belíssima, e cujo exercício de liberdade passa por fazer amor ou deixar-se nua em variadíssimas situações. Pravda, por exemplo, montada numa motocicleta, apenas vestida com as suas botas de cano alto, uns mínimos calções, e um colete de cabedal: é descrição suficiente da “liberdade” dessa mulher.
É acabrunhante, portanto, que se diga que Vânia (há uma discrepância entre o título do livro e a grafia no seu interior) é uma heroína e, para mais, inovadora, quando se verificam elementos que consagrariam o seu contrário. Neste aspecto, também
Wanya. Escala em Orongo, segue a linha que havia sido estabelecida nas edições Losfeld, com as suas pretensas heroínas “feministas”. Feminismo feito por homens, é no que dá: a projecção de fantasias masculinas disfarçadas de uma cumplicidade respeitadora. Lobos disfarçados de cordeiros, sem dúvida. Repara-se como,
primo, não só não é Vânia quem se defende com sucesso dos “aves-do-desespero”, como acaba por sucumbir à violação de Uhr (que debateremos mais à frente), e nenhuma acção é por ela desencadeada (a não ser pela sua mera presença, como se de um catalizador se tratasse), logo... heroína?;
secondo, tal qual Barbarella, Xam, Xiris, e outras que tais, as cenas de acção são mais desculpas para a despir (aos nossos olhos lúbricos, que tornam as situações pouco eróticas em

palcos de um erotismo exacerbado), as situações em que se encontra são flagrantes pretextos, pouco encobertos de resto, para permitir o avanço dos temas – mais do que dos
episódios e
acções - que os autores pretendem debater através do livro, e as composições gráficas, mais do que uma recriação da potencialidade narrativa e legível da banda desenhada (como Crepax havia feito repetidamente, veja-se este exemplo ao lado) são antes confusas, informadas por uma cultura visual, digamos, “alta” (pintura, fotografia, etc.) que ignorando as valências da “baixa cultura” (a banda desenhada) a revisita com a ideia de a transgredir positivamente. É pela existência dessa ignorância que se ergue um obstáculo à ideia de inovação. O facto da personagem ter cabelos curtos é apontado como um dos aspectos inovadores em relação à figuração da personagem. Seja. Mas para além das informações extratextuais acessíveis – Nelson Dias ter-se-ia baseado na sua própria mulher – convêm não esquecer a presença de
Valentina de Crepax desde 1965 na revista italiana
Linus (que chegava a Portugal), já em si baseada em Louise Brooks, e cujo
look seria continuado em Portugal tardiamente por Beatriz Costa. A qual, por sinal, também representou papéis de mulheres com um certo grau de independência, acção e autonomia visíveis, ao contrário de Vânia.
Surgem-se-me aqui dois curtos desvios, em forma de questão. Em primeiro lugar, é natural que me poderão contestar este(s) argumento(s) dizendo, “não era essa a sua intenção”, “não foi essa a sua política”; todavia, não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que por não verbalizarmos ou esclarecermos ou expressarmos
in actu uma determinada política, ela não exista
em contexto. Mais, tornando-se tão claro haver um propósito político, “engajado”, de crítica social e despertar das consciências, mais ou menos apegados às especificidades do regime vigente em Portugal, essoutra política oculta torna-se mais premente. Isto poder-nos-ia levar longe... Quando a chamada agenda política ultrapassa os valores intrínsecos e estéticos de uma obra, esta sofre as consequências de um peso insustentável; mas quando essa mesma agenda tenta ofuscar outras programações, rompe-se mesmo o cerco. Em segundo lugar, poderá sentir-se essa ténue vontade, tantas vezes repetida, de condescendência para com o que se produz em Portugal, uma espécie de atestado da fraqueza congénita das nossas produções, seguida de uma desmesurada alegria pela sua mera existência. Só que acredito que o crescimento de uma arte, de um artista, de uma pessoa, enfim, não se pode dignificar pela condescendência paternalista e nacional-porreirista (e muito menos patrioteira), mas pela acuidade e gravidade da sua leitura e exame.
Uma leitura outra importante a assinalar é a de Rui Zink, em
Literatura Gráfica? (Celta, 1999), uma vez que
Wanya é um dos cinco livros das “close readings” da sua tese. Algumas pistas são aí apresentadas, sobretudo as que dizem respeito a um entendimento desta obra como uma mínima transfiguração da sociedade em que se inseria na altura. Só que surgem ainda assim problemas por resolver. Se Izar, o terrível cérebro com olhos que controla a população de Citânia (um dos pontos a favor da associação imediata com um Portugal real), é “um deus que se comporta como um déspota esclarecido: dominou o povo e retirou aos indivíduos vontade própria, mas fê-lo para os salvar da destruição, mantendo-os nesse estado de hibernação durante vários séculos, mortos-vivos, é certo, mas também imortais” e “Tendo em conta que este texto foi publicado num país com um regime particularmente autoritário (...) as implicações políticas de uma leitura são tentadoras, até pela semelhança fonética entre
Izar e
Salazar” (pág. 156 do livro citado; presumo que se deveria entender antes aqui “as implicações de uma leitura política”?), então a leitura de um suposto Salazar consciente da mágoa e opressão está na ordem do dia, o que não me parece ter sido o caso, tal qual e muito menos a abnegação com que o regime – a Primavera Marcelista – se sacrificaria para bem do povo. Que a “opressão” tenha sido para “bem” do povo de Citânia não nos restam dúvidas, mas esta aceitação passiva implicará, em nós, leitores, a aceitação dessa mesma via. Mais uma vez, não há jamais
não-acção política.
Pouco tempo depois, uns dois anos, de
Wanya ter sido publicado, surgiria a revista
Visão, que se aguentaria um ano, com muitos autores que se tornariam uma espécie de marco, mais consolidado, do espírito dos tempos e os quais exerceriam, de facto, algum peso e influência sobre a banda desenhada a vir. Apenas para citar um nome, por razões que serão claras aos seus leitores, Vítor Mesquita foi o autor de um álbum, relativamente próximo dos temas de
Wanya, atravessando territórios contíguos, mas com uma eficácia bem superior: estamos a falar, claro, de
Eternus 9. Independentemente dos gostos, não se pode negar que este livro (pré-publicado na
Visão), sim, marcou um ponto de viragem, influenciando uma geração, quer directa (Diniz Conefrey, que colaborou com Mesquita) quer indirectamente (a reconstrução utópica da cidade de Lisboa de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de
Filipe Seems encontra em
Eternus 9 uma das raízes, seguramente). No entanto, não me parece existir um trânsito directo entre os autores de Wanya e o grupo da Visão.
Em várias ocasiões deparo com a situação de pessoas formadas em determinada disciplina artística – dita da “alta cultura” – que resolvem visitar a banda desenhada como um território de contacto-e-fuga (ou o popular “toca e foge”). Isto é, considerando a banda desenhada algo de “interessante” para se consumir em termos de superficialidade, e cujos elementos se refiguram para a elaboração de uma “arte maior”. As mais das vezes essa posição implica que a banda desenhada é desprovida de pensamento e de uma capacidade autónoma de experimentação e revalidação das suas valências e especificidades, logo, o artista esclarecido está a fazer um favor em “reinventar” esse modo “inferior”. É claro que isto só é possível dada a ignorância dos primeiros em relação a uma desenvolta e complexa e ampla história da banda desenhada e ilustração, pois caso a soubessem, entenderiam que sempre existiu um movimento interno de reformulações, de reestruturações, de fulgurantes maravilhas e invenções desenvolvidas
no seio da banda desenhada. São raros os artistas das “altas artes” que compreenderam de facto os ágeis e robustecidos caminhos da banda desenhada, quer os narrativos quer os visuais, bebendo dela para criar algo de um encontro feliz. Roy Lichtenstein, o exemplo de sempre,
não foi um deles, fiel à agenda do movimento da Pop Art. Godard, Resnais, David Wojnarowicz, Öyvind Fahlström, sim, podem ser contados como tais.
Como disse atrás, no seu domínio visual, Wanya vive mais sob a influência das artes gráficas – da colagem, da fotografia, da pintura – do que da banda desenhada enquanto território específico,

não obstante os autores conhecerem melhor ou pior o que existia então, e fazem-nos crer que sim, que conheciam. No que diz respeito ao domínio da narrativa, há todo um sopro de vontades políticas, de visões, que se colocam no terreno diegético mas sem lhe permitirem qualquer autonomia. A constante voz de um narrador literário externo apenas sublinha essa falta de autonomia; por vezes cai-se na redundância, por outras apenas o texto explicita a confusão visual (o contraponto com Crepax apenas serve para revelar, mais uma vez, que o autor italiano reforçava a especificidade da visualidade da banda desenhada). As imagens não são suficientes para a condução da
estória, e o texto
explica-as, e mais, fornecendo a dimensão poética que lhe é repetidamente reconhecida, presente pela linguagem elaborada em torno de determinados chavões epocais, quando não de expressões vácuas (pelo que se entende das várias informações, há uma preponderância da imagem sobre o texto mesmo no processo de produção e criação, o que parcialmente explica a inversão da ordem dos nomes dos autores na capa desta nova edição, mas, por uma vez, mais próximo dessa hierarquização). Há ainda uma série de buracos de informação na acção da narrativa, mas cuja vagueza poderá eventualmente contribuir para acentuar a natureza de mito que parece ser seguida, segundo uma outra leitura de Rui Zink. A existência de uma epígrafe, de uma dedicatória – ambas em torno de William Blake, cuja presença se sente igualmente no interior da obra, mormente por via dos nomes e funções actanciais das personagens, informada pela leitura sobretudo dos seus “livros proféticos” – e de episódios a que o investigador português chama de “cantos”, levar-nos-á a um cotejamento com o género literário mitificador por excelência, a saber, a epopeia. Podemos mesmo ver o início da viagem interestelar de Vânia como sendo
in media res e, juntamente com as duas analepses internas, completando-se assim outros elementos do género.
Quando Vânia desperta do seu primeiro desmaio, já na superfície do “estranho” planeta (todos os planetas são estranhos na ficção científica), está amarrada a um poste. É libertada por uma “estranha” criatura, que se parece com um yeti, a qual procede à tentativa de violação da “heroína”. Esta defende-se, mas debalde, e a criatura consegue levar a sua avante. E no espaço de duas pranchas, e o que podemos ver como quatro “vinhetas” (sem filamentos), essa mesma criatura torna-se um homem – o texto explica-nos que rejuvenesce – graças à “vontade satisfeita, daquele subtil apaziguamento”. Que violar uma mulher seja subtil, deixo a questão em aberto. Que ela não demonstre qualquer raiva para com Uhr (aprendemos o seu nome pelo próprio), mas sim até alguma condescendência, só o posso entender como crença no mito psicologista (culpas as quais mal-atribuídas a Freud) de que todas as mulheres desejam ser violadas e que os homens se sentem sempre rejuvenescidos aquando do seu exercício de poder sexual: afinal, conquista-se,
penetrando, um novo território.
Essa violação acontece uma segunda vez, ainda que metafórica e voluntariamente. Depois de atravessar os “arquivos do silêncio” cujas “grandes pantalhas” mostram a violenta história da civilização perdida de Orongo, a sua queda e renascimento sob os auspícios de Izar, a “última ordem” do tirano é que Vânia “conte ao povo de Loss a história do seu mundo”. Há uma troca de informações, ambas analepses, dos povos a que cada um dos narradores internos pertence, os computadores de Citânia e Vânia. As informações são extraídas da e com a heroína mais uma vez numa posição passiva, como que
exposta (o “dentro para fora”). Independentemente de no fim

da narração se escrever “assim falou Vânia”, apercebemo-nos de que parte dessa mesma narrativa foi imagética, um “pensamento vertiginoso”, isto é, sem as rédeas da razão. Abre-se então o espaço narrativo para a história da nossa civilização, em tudo idêntico à estratégia presente na
Saga de Xam, quando a protagonista dá finalmente luz ao “híbrido”, a um só tempo espelho do nosso mundo e caminho para a sua transfiguração (psicadélica, pós-verbal,
extraterrestre). Que esse episódio, “O rosto dos dias”, seja introduzido por dois pontos que se abrem ao domínio visual que vem a seguir e não a uma mera presença do texto verbal, é interessante, mas também ele devedor da experimentação da banda desenhada psicadélica francesa, e perfeitamente inserido na experimentação “esquecida” da banda desenhada portuguesa, se nos recordarmos dos parêntesis dos
Apontamentos Sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb de Bordalo Pinheiro.
No único momento em que parece que Vânia tem algo a dizer ou fazer, o narrador apressa-se a corrigir tal ideia: “Vânia está presente em todas as grande decisões da nova comunidade: sua experiência
parece ser um sucedâneo da prologada dependência de Izar” (meu sublinhado). Ainda não é tempo para a “heroína” ser levada a sério pelo seu próprio valor. Depois de um massacre ou genocídio ecológico – as Aves, mesmo que sendo “do desespero”, não deixam de ser animais, criaturas vivas, dignas de alguma defesa ética, pressuponho, o que põe em risco, acrescendo-lhes os outros elementos debatidos, o valor deste livro enquanto “mensagem pacifista de carácter universal” – Vânia parte “já a caminho de outros limites”, onde, presume-se, possa contactar outros “estranhos” povos. E não precisa de fazer nada, basta-lhe ser e deixar-se ir... Esses limites esgotar-se-iam nesse primeiro livro (salvo uma história curta, que desconheço). Quiçá porque a heroína esgotara a sua capacidade revolucionária?
Nota posterior: ainda na continuidade desta aproximação entre as "artes plásticas" e a banda desenhada, em Portugal, talvez a experiência mais forte e, mais importante, sobrevivente (i.e., ainda cria sentidos novos) é O Peregrino Blindado, de Eduardo Batarda. Aí se concretiza e acaba um desses encontros felizes aludidos acima.