Só no título encontramos todo um programa. A palavra não se refere tão-somente a uma Paris hipotética, passada pelo filtro de uma ficção científica retro, ou steampunk, género ao qual este livro pertence, mas é também uma homenagem e uma influência imagética directa. Como o autor revela de imediato numa nota introdutória, este livro baseia-se na obra do grande ilustrador francês do século XIX J. J. Grandville – o qual tem na sua carteira de trabalhos as ilustrações de animais antropomorfizados e gentlemen das fábulas de La Fontaine (1838) como ainda um outro livro dedicado aos animais, Scènes de la Vie Privée et Publique des Animaux (de Balzac, 1842), na qual explora a mesma condição de cruzamento de mundos. É daí que Talbot aproveita estes animais antropomorfizados, no seio de acções de uma sociedade o mais próxima possível daquela em que vivemos (vivíamos). Por outro lado, uma segunda referência é feita ao ilustrador, também francês, de ficção científica desse mesmo século, Albert Robida, que tantas imagens criou daquilo que imaginaria ser o mundo (na perspectiva civilizada da sua Paris) no futuro.
Se se perguntasse a alguém vivendo no século XIX como é que o futuro seria, é óbvio que a resposta procuraria partir dos paradigmas do seu tempo para depois explorar as hipóteses por eles lançados: um exemplo disso seria a noção ausente da electricidade, mas o pensamento de que as indústrias a vapor evoluíriam de um modo impressionante, revolucionando o que de facto viria a se revolucionar (transportes, comunicações, conforto burguês) com mais força e presença do que tinha atingido até então. São essas as imagens e essas as noções criadas por Robida, mas também outros especuladores inteligentes da ciência e tecnologia do seu tempo, sendo Verne o exemplo mais famoso. É esse olhar paradoxal para um futuro que parte de um outro passado, ou melhor, para um futuro que não foi através de um passado concreto, que nasce a corrente do steampunk, que Talbot explora aqui, como já o havia feito na sua série excelente de uma Britânia hipotética, The adventures of Luther Arkwright.
Mas há outras linhas de força que unem esta fábula fantasiosa. Para além do substrato policial (Talbot indica Conan Doyle e Tarantino), há uma outra linha, que é a da fantasia infantil. O autor indica Rupert the Bear, a famosa série infantil de banda desenhada dos anos 20, mas também poderia ter citado essa outra pérola da literatura do início do século, The Wind in the Willows, de Kenneth Grahame (1908). Não é apenas a história em torno de animais, recriando a ideia da fábula, mas o facto de que esse romance dar a ver um tema que seria explorado pela literatura do início do século XX, a saber, o da invasão da modernidade e da multiplicidade na vida do homem, e da inexorável velocidade do tempo. Com a indicação que foi publicado mais ou menos 20 anos antes dos romances de Musil e o poema The Waste Land de Eliot. Todos conhecemos a impressionante abertura de O Homem sem Qualidades (o primeiro volume publicado em 1930), as cenas rodopiantes de Sunrise, de Murnau (1927), ou outras cenas análogas neste tema. O romance de Grahame mostra a personagem do Sapo sistemática e sucessivamente fascinada com veículos cada vez mais rápidos. Essa rapidez é demonstrada de modo imediato, e espectacular, nas primeiras páginas, o prólogo, deste Grandville.
O próprio objecto, com a capa trabalhada em todos os seus elementos constitutivos e com impressão em relevo, cuidado com as guardas ocupadas com um padrão emblemático ao tema, etc., far-nos-á recordar de todos aqueles álbuns de luxo ou “de prémio” do fim do século XIX e princípios do XX, sobretudo os da casa Hetzel, Hachette e outros. Mais uma camada de significação para a sua leitura.
A trama é simples e claríssima em relação àquilo que tenta espelhar do nosso mundo. O inspector LeBrock, um gigantesco e musculado texugo (para além de Grahame, talvez compense saber que uma série de animação de prevenção rodoviária inglesa, Tufty Squirrel, tinha um texugo como polícia, e que “broc” vem das línguas célticas), tenta resolver um caso de homicídio, utilizando uma capacidade extraordinária de associação de ideias e pistas (como Holmes), e descobre estar relacionado com uma conspiração muito maior, com contornos políticos muito graves. Nesse mundo hipotético, existe um gigantesco império francês e as ilhas britânicas estão dele separadas, mas vencidas e vexadas. A animosidade entre ingleses e franceses encontra aqui uma outra forma de paródia e revanche, numa série de pequenos episódios, e sobretudo diálogos.
Essa conspiração tem a ver com um terrível acontecimento passado, a explosão da Torre Robida, e a consequente descoberta que os presumíveis culpados (anarquistas britânicos) nada têm a ver com o caso. A ligação deste caso ao das Torres Gémeas é por demais claro. Talbot não procura fazer comentários directos sobre esse caso real, mas o modo como aproveita os acontecimentos e os molda na economia narrativa de Grandville leva-o a colocar-se numa posição política de maior ponderação e cuidado do que as certezas dos governantes (quer os reais quer os desta ficção). Como é mandatário neste tipo de aventuras, existem todos aqueles elementos que compõem uma história: interesses amorosos, momentos de tragédia, muita acção, clin d’oeil a realidades que partilhamos (da guerra da Indochina ao companheiro de Tintin, de expressões literais – procurem por “horsing around” – à vaca que não ri...). Num mundo de animais antropomorfizados, a presença de humanos é estranhíssima, reduzidos que são a companheiros inferiores e sem direitos de cidadania em relação aos seres mais perfeitos. Nessa realidade, são chamados de “cara de massa”, dada a plasticidade exagerada das suas feições e expressões (LeBrock descreve-os como “uma raça sem pêlo de chimpazés que evoluíram na cidade de Angoulême”). Todo o Grandville é composto desta forma.
Não é, de maneira nenhuma, uma obra tão alongada e cheia de volutas narrativas como Luther Arkwright, apesar de empregar muitos dos elementos que compõem essa outra obra. Não é tampouco uma exploração da história nacional e do imaginário cultural como Alice in Sunderland, se bem que explore também essas ligações. E não é uma obra tão tocante e perturbante como A Tale of One Bad Rat, se bem que o tipo de ligação desse título à obra de Beatrix Potter, isto é, mais uma vez a uma imaginário da tradição literário-artística infantil sob um prisma radicalmente diferente se encontre aqui mais amplamente conduzido. Ou seja, é como se Talbot tivesse vasculhado todas as suas estratégias anteriores para construir um livro relativamente mais leve, mas que não deixa de suportar uma visão de um “futuro que não foi”. E que se adivinha continuar num futuro, este partilhado na realidade, próximo.
8 de dezembro de 2009
A Casa da Mosca Fosca. Eva Mejuto e Sergio Mora (Kalandraka)
Este livro é uma adaptação de um conhecido conto tradicional russo, também conhecido como “O castelo da mosca” (veja-se o recente Myths and Legends of Russia, escrito por Aleksandr Afanasev e ilustrações em silhuetas de Niroot Puttapipat, na Folio Society), que se presta à estrutura típica das lenga-lengas, em que cada animal tem um qualquer apodo que rime com o seu descritivo (Mosca Fosca, Morcego Ralego, Sapo Larapo, e por aí fora), e cuja acumulação permite toda uma série de jogos de prosódia e de todos os elementos paralinguísticos usualmente afectos ao contador de histórias (a cinésica, a proxémica, etc.). Por essa razão, talvez, tenha sido alvo de várias encenações, inclusive uma com fantoches: todos os elementos estão prontos a essa encenação mínima, mesmo que sejam apenas os pais a ler em voz alta...
A estrutura do livro também procura seguir esse ritmo, com a apresentação em sequência de cada um dos intervenientes, respondendo ao aroma que se desprende da festa improvisada que a Mosca preparou em sua casa, e a acumulação dos comensais em torno da mesa em que o bolo vai ganhando cada vez maior protagonismo. Sergio Mora, que faz parte de uma geração de ilustradores que faz convergir a linguagem de redução e simplificação da ilustração infantil contemporânea com os elementos informados de uma nova corrente ilustrativa que responde pelo nome de pop surrealism ou lowbrow art (onde encontraremos nomes como J. Otto Seibold, Tim Biskup, Gary Baseman e tantos outros), e ainda uma qualidade quase táctil da cor (aparentada com a de André Letria) cria aqui ambientes de grande legibilidade – condição sine qua non da ilustração infantil – cruzados com pequenos desvios de alucinação: as perspectivas, a construção do espaço totalmente livre, a figuração das personagens, a pulverização de pormenores divertidos (os cerais “Oskis”, a bengala do Escaravelho Carquelho) ou mesmo escabrosos (o morcego emborcando de um porrón), tornando a acção linear e cumulativa num pequeno exercício de concentração da parte dos ouvintes (já que este livro se presta a ser lido pelo contador – mero meio, intermediário, veículo secundário – e observado pela criança – leitor último e ideal).
O texto em si segue duas direcções: uma espécie de didascália em prosa, sem qualquer exploração de ritmos internos, que servem somente para abrir a entrada em cena de cada nova personagem, e depois as falas em diálogo cumulativo e rimado e ritmado entre elas. Ele deve ser explorado, precisamente respeitando essas duas linhas, pelo contador de forma a que possa transmitir essas duas vivências, às quais cabe ao leitor ideal a união final.
O fim, como soe ser, abrupto, apenas deverá ser acompanhado pelo também brusco fechar do livro com força, imitando o fecho da mandíbulas do Urso Lambeiro... com esse gesto derradeiro.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro.
A estrutura do livro também procura seguir esse ritmo, com a apresentação em sequência de cada um dos intervenientes, respondendo ao aroma que se desprende da festa improvisada que a Mosca preparou em sua casa, e a acumulação dos comensais em torno da mesa em que o bolo vai ganhando cada vez maior protagonismo. Sergio Mora, que faz parte de uma geração de ilustradores que faz convergir a linguagem de redução e simplificação da ilustração infantil contemporânea com os elementos informados de uma nova corrente ilustrativa que responde pelo nome de pop surrealism ou lowbrow art (onde encontraremos nomes como J. Otto Seibold, Tim Biskup, Gary Baseman e tantos outros), e ainda uma qualidade quase táctil da cor (aparentada com a de André Letria) cria aqui ambientes de grande legibilidade – condição sine qua non da ilustração infantil – cruzados com pequenos desvios de alucinação: as perspectivas, a construção do espaço totalmente livre, a figuração das personagens, a pulverização de pormenores divertidos (os cerais “Oskis”, a bengala do Escaravelho Carquelho) ou mesmo escabrosos (o morcego emborcando de um porrón), tornando a acção linear e cumulativa num pequeno exercício de concentração da parte dos ouvintes (já que este livro se presta a ser lido pelo contador – mero meio, intermediário, veículo secundário – e observado pela criança – leitor último e ideal).
O texto em si segue duas direcções: uma espécie de didascália em prosa, sem qualquer exploração de ritmos internos, que servem somente para abrir a entrada em cena de cada nova personagem, e depois as falas em diálogo cumulativo e rimado e ritmado entre elas. Ele deve ser explorado, precisamente respeitando essas duas linhas, pelo contador de forma a que possa transmitir essas duas vivências, às quais cabe ao leitor ideal a união final.
O fim, como soe ser, abrupto, apenas deverá ser acompanhado pelo também brusco fechar do livro com força, imitando o fecho da mandíbulas do Urso Lambeiro... com esse gesto derradeiro.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro.
Fitz… Filipe Abranches (Ao Norte)
Na continuidade desta colecção dirigida por Tiago Manuel, a escolha de Filipe Abranches caiu sobre um dos cinco filmes que juntou os carismáticos e problemáticos actor Klaus Kinski e realizador Werner Herzog, Fitzcarraldo (veja-se o documentário My Best Fiend para perceber a turbulenta relação entre os dois e, particularmente, as condições adversas das filmagens dos seus filmes conjuntos, inclusive este agora “traduzido”, que levou Kinski às suas mais explosivas invectivas).
O coração deste filme, desta história, é também um de trevas, como o do Kurtz, mas opera-se aqui uma completa inversão do programa da novela de Conrad. Se nessa o que se passava era a erosão do significado da civilização integrante a um homem no centro da barbárie, a personagem semi-ficcional de Herzog é antes um homem que deseja levar um sinal luminoso – de acordo com os seus cultores, o maior sinal – dessa civilização para o seio da mais selvagem das naturezas, ou a mais incipiente das civilizações. Fitzgerald deseja construir um teatro de ópera no seio da Amazónia. O esforço é de Sísifo, como seria de esperar (e como é repetidamente notado na crítica ao filme), e não haverá emblema mais nítido dessa acção do que a cena de um barco a vapor a ser transportado por sobre uma colina, entre dois rios, que é arrasada, e o preço humano dessa acção (ver as duas últimas imagens neste post). Seguidamente, a cena da descida dos rápidos mostra uma outra paga a fazer em nome da hubris do protagonista.
Sendo essas as cenas mais famosas e fortes do filme, e as que dão azo às imagens mais belas, aos planos mais marcantes, é natural que o olhar e a mão de Abranches recaiam preferencialmente sobre elas, ainda que não abdique de, através de uma forma de anotação pontual, fazer presente todo o filme neste pequeno livro de 32 vinhetas, irmanadas 2 a duas por cada página aberta, com a excepção da primeira e da última, espécie de prólogo visual de apresentação da personagem principal, e imagem última da dissipação total do sonho de Fitzgerald.
Há um aspecto curioso no desenho, ou nas opções de desenho, de Abranches, que tem a ver com a ausência de expressão das personagens. A primeira imagem revela-nos o protagonista com o rosto totalmente coberto de negro, e o da sua acompanhante (a amante Molly?) por desenhar; seguir-se-ão rostos cobertos de negro, ou longíquos demais, ou dos índios, impávidos. Subitamente, irrompe a imagem que mostra o nome do barco a vapor, Molly Aida (uma dupla homenagem de Fitzgerald à sua amante e a uma figura da ópera), apresentada sob a forma de um contrapicado colocando à nossa vista a placa com o nome, numa curva de pontas descendentes, e duas vigias. É impossível não ver neste desenho uma vontade em fazer emergir um rosto e, o que é mais, com uma expressão indesmentível (princípio de expressão ao qual Gombrich chamaria “lei de Töpffer”), reequilibrando, de certa forma, a expressão “em falta” de alguns dos rostos no livro, como se Abranches quisesse desviar esse grau de expressividade para fora das personagens humanas para sublinhar a importância, o valor central do acto sobre o barco. O que também pode ser interpretado como a desumanização necessária (o preço a pagar) pela assunção do triunfo de algo que, não obstante ser objectual (um barco, um teatro, uma ópera), lhe é superior (o que se almeja).
Só após essa vitória, portanto, a passagem de um navio sobre uma colina, de pouca dura, é que podemos retornar ao rosto de Fitzgerald, lado a lado das sombras dos ocupantes do seu barco, imediatamente antes de cair nas malhas dos rápidos.
Como é de esperar, e como se verificara já na transposição de outros filmes para a banda desenhada nesta colecção peculiar, que menos se preocupa com “versões em banda desenhada” mais costumeiras, mas sim a apropriações de alguma natureza criativa, Filipe Abranches opta por reescrever, com os elementos presentes no filme, uma outra leitura. Ou melhor, pelo facto de não procurar ser uma tradução completa e exaustiva (o próprio título aponta a esse aspecto necessariamente incompleto), nem sequer “clara”, a apresentação num objecto deste tipo, um livro, leva a que surja uma outra narrativa. O fecho desta narrativa, Fitz..., é uma estranha composição “positiva”, “vencedora”: depois da encenação breve de uma ópera, ou de algumas das suas árias, com a banda, e os cantores dando as mãos – mas separados na paginação, o que leva ao típico paradoxo, explorado no filme e no livro, da impossibilidade final de uma verdadeira união de vontades diferentes – vemos Fitzgerald fumando o seu cigarro, em pé junto à sua cadeira, no topo do barco. Um triunfo, de certa forma. A última imagem (colocada lado a lado com a penúltima, na página anterior) mostra-nos uma paisagem vaga, abstracta, com uma coluna de fumo atravessando diagonalmente o campo de composição. O fumo do charuto. O fumo do barco. Mas também, como dizia Gil Vicente, os “fumos da Índia”, a dissipação final deste esforço em nome da arte maior, que se pretende sublime, que em tudo ultrapassa a vida humana e, por isso, cobra um preço sobre-humano.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
O coração deste filme, desta história, é também um de trevas, como o do Kurtz, mas opera-se aqui uma completa inversão do programa da novela de Conrad. Se nessa o que se passava era a erosão do significado da civilização integrante a um homem no centro da barbárie, a personagem semi-ficcional de Herzog é antes um homem que deseja levar um sinal luminoso – de acordo com os seus cultores, o maior sinal – dessa civilização para o seio da mais selvagem das naturezas, ou a mais incipiente das civilizações. Fitzgerald deseja construir um teatro de ópera no seio da Amazónia. O esforço é de Sísifo, como seria de esperar (e como é repetidamente notado na crítica ao filme), e não haverá emblema mais nítido dessa acção do que a cena de um barco a vapor a ser transportado por sobre uma colina, entre dois rios, que é arrasada, e o preço humano dessa acção (ver as duas últimas imagens neste post). Seguidamente, a cena da descida dos rápidos mostra uma outra paga a fazer em nome da hubris do protagonista.
Sendo essas as cenas mais famosas e fortes do filme, e as que dão azo às imagens mais belas, aos planos mais marcantes, é natural que o olhar e a mão de Abranches recaiam preferencialmente sobre elas, ainda que não abdique de, através de uma forma de anotação pontual, fazer presente todo o filme neste pequeno livro de 32 vinhetas, irmanadas 2 a duas por cada página aberta, com a excepção da primeira e da última, espécie de prólogo visual de apresentação da personagem principal, e imagem última da dissipação total do sonho de Fitzgerald.
Há um aspecto curioso no desenho, ou nas opções de desenho, de Abranches, que tem a ver com a ausência de expressão das personagens. A primeira imagem revela-nos o protagonista com o rosto totalmente coberto de negro, e o da sua acompanhante (a amante Molly?) por desenhar; seguir-se-ão rostos cobertos de negro, ou longíquos demais, ou dos índios, impávidos. Subitamente, irrompe a imagem que mostra o nome do barco a vapor, Molly Aida (uma dupla homenagem de Fitzgerald à sua amante e a uma figura da ópera), apresentada sob a forma de um contrapicado colocando à nossa vista a placa com o nome, numa curva de pontas descendentes, e duas vigias. É impossível não ver neste desenho uma vontade em fazer emergir um rosto e, o que é mais, com uma expressão indesmentível (princípio de expressão ao qual Gombrich chamaria “lei de Töpffer”), reequilibrando, de certa forma, a expressão “em falta” de alguns dos rostos no livro, como se Abranches quisesse desviar esse grau de expressividade para fora das personagens humanas para sublinhar a importância, o valor central do acto sobre o barco. O que também pode ser interpretado como a desumanização necessária (o preço a pagar) pela assunção do triunfo de algo que, não obstante ser objectual (um barco, um teatro, uma ópera), lhe é superior (o que se almeja).
Só após essa vitória, portanto, a passagem de um navio sobre uma colina, de pouca dura, é que podemos retornar ao rosto de Fitzgerald, lado a lado das sombras dos ocupantes do seu barco, imediatamente antes de cair nas malhas dos rápidos.
Como é de esperar, e como se verificara já na transposição de outros filmes para a banda desenhada nesta colecção peculiar, que menos se preocupa com “versões em banda desenhada” mais costumeiras, mas sim a apropriações de alguma natureza criativa, Filipe Abranches opta por reescrever, com os elementos presentes no filme, uma outra leitura. Ou melhor, pelo facto de não procurar ser uma tradução completa e exaustiva (o próprio título aponta a esse aspecto necessariamente incompleto), nem sequer “clara”, a apresentação num objecto deste tipo, um livro, leva a que surja uma outra narrativa. O fecho desta narrativa, Fitz..., é uma estranha composição “positiva”, “vencedora”: depois da encenação breve de uma ópera, ou de algumas das suas árias, com a banda, e os cantores dando as mãos – mas separados na paginação, o que leva ao típico paradoxo, explorado no filme e no livro, da impossibilidade final de uma verdadeira união de vontades diferentes – vemos Fitzgerald fumando o seu cigarro, em pé junto à sua cadeira, no topo do barco. Um triunfo, de certa forma. A última imagem (colocada lado a lado com a penúltima, na página anterior) mostra-nos uma paisagem vaga, abstracta, com uma coluna de fumo atravessando diagonalmente o campo de composição. O fumo do charuto. O fumo do barco. Mas também, como dizia Gil Vicente, os “fumos da Índia”, a dissipação final deste esforço em nome da arte maior, que se pretende sublime, que em tudo ultrapassa a vida humana e, por isso, cobra um preço sobre-humano.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
O Livro Azul. Isabel Baraona (auto-edição)
Numa verdadeira pesquisa artística, as palavras “evolução”, “avanço”, “novidade”, não têm grande valor. Uma pesquisa é um processo que tem antes a ver com um caminho titubeante, tentativo, feito de passos curtos, variações, desvios, que vão aos poucos compondo uma imagem eventualmente, ou melhor dizendo, virtualmente alcançável, mas sobre a qual não há qualquer obrigação de cumprimento, isto é, de vitória. Existem objectivos, sem dúvida, a ideia de um projecto que concerta estratégias, opções e políticas, uma espécie de fim, mas nada implica que se atinja esse fim. Aliás, a pesquisa artística é normalmente coroada com o alcançar-se um local ou estádio bem diverso daquele que, à partida, parecera ser o que se deveria atingir.
Isto para dizer que O Livro Azul de Isabel Baraona faz parte do contínuo do programa iniciado pelos livros anteriores, e que se presume vir a ser continuado pelo menos por mais um volume. Muitos dos seus “temas”, se assim se pode entender, retornam, tal qual como algumas das estratégias de figuração, de composição, de cenografia mesmo.
Numa das páginas conseguimos ler, de forma claríssima, “não há/nem mais/nem menos”, inscrito por sobre uma complicada massa de linhas e manchas que nos recoloca nas questões de organicidade discutidas nos títulos anteriores. Sob essa mancha compósita, uma figura humana parece estar preocupada com a curta frase seguinte: “não és”. Toda esta significação negativa vê-se, por seu lado, negada na página ao lado, onde dois pares de pessoas – envolvidos em actos de uma comunhão íntima – estão colocados sob a égide de uma terceira frase: “dessin de vérité”. É ainda na frase, que encontramos na capa, invertida, e depois nas seguintes páginas, cobertas com novos desenhos, frases, linhas, que encontraremos uma pista adicional: “que linda paisagem vejo quando abro a boca”.
Há, portanto, logo ao início, a ideia de uma formação de um espaço, visível, que apenas emerge por um acto da palavra, da verbalização. O desenho surge como factor, se não da, pelo menos de uma verdade. A inversão das palavras recordará, mais uma vez, a escrita “secreta” de Leonardo, autor para quem os desenhos eram sementes de um projecto, e jamais desenhos acabados, de uma expressão totalmente livre... A qualidade de palimpsesto deste livrinhos de Isabel Baraona, a que cada novo folhear revela como que camadas sobrepostas de desenhos, reescritas, variações, correcções sequentes, aliada a esses princípios ontológicos, leva-nos a pensar em tudo isto como um projecto o qual, ainda que nos surja como uma forma acabada – os livros – aponta à sua potencialidade de infinito, de contínuo e turtuoso gesto inacabado.
Este volume tem mais intervenções não figurativas, sob a forma de manchas e riscos, que quase recordariam sujidades gráficas de tinta fresca, erros de impressão, acidentes para além do controlo do autor, aumentando o grau de ruído e, dessa mesma forma, aumentando a entropia, a abertura, a exactidão pela via do não rigoroso. Como se, ao folhear o livro, nos deparássemos, sem querer, em algo que não deveríamos ter encontrado.
Borges tem um dos seus mais famosos contos, e “objectos”, no “Livro de Areia”, um objecto que lhe chega às mãos de modo misterioso, cujas páginas jamais se repetem, livro que nos impede de encontrar a primeira e a última página, e cujo único fim só pode ser o abandono violento, não tome ele toda a existência do seu leitor. Essa metáfora da impossibilidade do leitor completo e, logo, do autor e criador completo, é como que transposto de modo seguro mas ao mesmo tempo programaticamente falho, por Baraona. Estes objectos têm um formato, informações exactas e legais, uma capa e contracapa, e uma paginação final.
Mas a promessa que têm da sua leitura não tem essa coincidência de ordenação ou de organização. São livros abertos, em aberto. Poderemos lê-los como unidades, perfeitamente legíveis e interpretáveis de acordo com a “promessa narrativa” que cada um, pela circunstancialidade da sua ordem interna, encerra. Todavia, imaginamos também que um exercício violento de os desfazer folha a folha, e reordená-los livremente, levando a uma eventual, ou virtual, nova textura interpretável. Como os actos de magia combinatória, mas em que, menos preocupada em encontrar uma qualquer linguagem universal, um denominador comum a que se pudessem reduzir todos os átomos que constituem o mundo,a autora procurasse uma repetição do caos e liberdade deles, nos desenhos e frases que colecciona.
Isto para dizer que O Livro Azul de Isabel Baraona faz parte do contínuo do programa iniciado pelos livros anteriores, e que se presume vir a ser continuado pelo menos por mais um volume. Muitos dos seus “temas”, se assim se pode entender, retornam, tal qual como algumas das estratégias de figuração, de composição, de cenografia mesmo.
Numa das páginas conseguimos ler, de forma claríssima, “não há/nem mais/nem menos”, inscrito por sobre uma complicada massa de linhas e manchas que nos recoloca nas questões de organicidade discutidas nos títulos anteriores. Sob essa mancha compósita, uma figura humana parece estar preocupada com a curta frase seguinte: “não és”. Toda esta significação negativa vê-se, por seu lado, negada na página ao lado, onde dois pares de pessoas – envolvidos em actos de uma comunhão íntima – estão colocados sob a égide de uma terceira frase: “dessin de vérité”. É ainda na frase, que encontramos na capa, invertida, e depois nas seguintes páginas, cobertas com novos desenhos, frases, linhas, que encontraremos uma pista adicional: “que linda paisagem vejo quando abro a boca”.
Há, portanto, logo ao início, a ideia de uma formação de um espaço, visível, que apenas emerge por um acto da palavra, da verbalização. O desenho surge como factor, se não da, pelo menos de uma verdade. A inversão das palavras recordará, mais uma vez, a escrita “secreta” de Leonardo, autor para quem os desenhos eram sementes de um projecto, e jamais desenhos acabados, de uma expressão totalmente livre... A qualidade de palimpsesto deste livrinhos de Isabel Baraona, a que cada novo folhear revela como que camadas sobrepostas de desenhos, reescritas, variações, correcções sequentes, aliada a esses princípios ontológicos, leva-nos a pensar em tudo isto como um projecto o qual, ainda que nos surja como uma forma acabada – os livros – aponta à sua potencialidade de infinito, de contínuo e turtuoso gesto inacabado.
Este volume tem mais intervenções não figurativas, sob a forma de manchas e riscos, que quase recordariam sujidades gráficas de tinta fresca, erros de impressão, acidentes para além do controlo do autor, aumentando o grau de ruído e, dessa mesma forma, aumentando a entropia, a abertura, a exactidão pela via do não rigoroso. Como se, ao folhear o livro, nos deparássemos, sem querer, em algo que não deveríamos ter encontrado.
Borges tem um dos seus mais famosos contos, e “objectos”, no “Livro de Areia”, um objecto que lhe chega às mãos de modo misterioso, cujas páginas jamais se repetem, livro que nos impede de encontrar a primeira e a última página, e cujo único fim só pode ser o abandono violento, não tome ele toda a existência do seu leitor. Essa metáfora da impossibilidade do leitor completo e, logo, do autor e criador completo, é como que transposto de modo seguro mas ao mesmo tempo programaticamente falho, por Baraona. Estes objectos têm um formato, informações exactas e legais, uma capa e contracapa, e uma paginação final.
Mas a promessa que têm da sua leitura não tem essa coincidência de ordenação ou de organização. São livros abertos, em aberto. Poderemos lê-los como unidades, perfeitamente legíveis e interpretáveis de acordo com a “promessa narrativa” que cada um, pela circunstancialidade da sua ordem interna, encerra. Todavia, imaginamos também que um exercício violento de os desfazer folha a folha, e reordená-los livremente, levando a uma eventual, ou virtual, nova textura interpretável. Como os actos de magia combinatória, mas em que, menos preocupada em encontrar uma qualquer linguagem universal, um denominador comum a que se pudessem reduzir todos os átomos que constituem o mundo,a autora procurasse uma repetição do caos e liberdade deles, nos desenhos e frases que colecciona.
1 de dezembro de 2009
Onde vivem os Monstros. Maurice Sendak (Kalandraka)
Onde vivem os monstros. 1. Livro. (Filme) A literatura ilustrada infantil produz centenas, se não milhares, de livros relativamente importantes para a sua própria história. Desde o Struwwelpeter a Os piolhos do miúdo e os miúdos do piolho, estes objectos de histórias conduzidas por imagens (e não meramente com algumas imagens ilustrando um texto) exercem um fascínio particular sobre os seus primeiros interlocutores, as crianças, mas ao mesmo tempo criam laços com os adultos, quer os que emergem dessas crianças leitoras quer aqueles que os descobrem mais tarde. É num contexto de memória garantida, de força editorial, de redes de referência cultural que uma determinada obra sobrevive, se torna um “clássico” e, depois, parte integrante da cultura. Os Estados Unidos, assim como o Reino Unido ou a França ou a Alemanha, têm uma história riquíssima, mas mais importantemente ainda, uma história que sobrevive. Livros com 100 anos continuam a ser lidos e, por vezes, sabidos de cor. O mesmo, infelizmente, não se pode dizer de Portugal, pois vivemos num país que se tradição tem, é a da pobreza, das vistas curtas, da debilidade do comércio e da recordação e da manutenção de um imaginário que pudesse alguma vez vir a ser comum. Falar de Dona Redonda, de El-Rei Camelo, da Arca de Noé de Quim (com desenhos de António Jacobetty) é um exercício obscuro de investigador e bibliotecário, ou de octagenário nostálgico, não de leitores comuns... O mesmo não ocorre com os leitores de Where the Wild Things Are, que desde 1963 é repetidamente lido e amado (ou evitado e detestado).
É nesse quadro de produção imensa e contínua, mas da possibilidade de manter activa a memória de alguns livros – tal como ocorre na área da “literatura de crescidos” – que o primeiro livro criado sozinho por Sendak surge. Outros se seguiriam, ora com variações mínimas ora com grandes diferenciações dessa experiência, mas é aquele primeiro que mais memória deixaria. E que, agora com a versão cinematográfica de Spike Jonze, se reforçará. O momento da sua tradução em português é bem escolhido, e é feliz que a existência do filme tenha forçado a sua aparição. Num primeiro momento, neste post, falarei do livro, passando depois noutro ao filme, o qual desdobra e aumenta alguns dos temas do livro.
Onde vivem os Monstros é um livro exemplarmente construído, e a Kalandraka, naturalmente, respeita-o em todos os aspectos: nas cores pouco garridas, ou pouco histéricas, no formato, na composição de página, no ritmo do texto. Muitos estudos lhe foram dedicados, mas é a leitura repetida do livro que fará descobrir os seus segredos por vir, a cada leitor. Descobrir a forma como o pequeno Max vai fazendo expandir o seu espaço (imitado na composição da página, a qual, ainda que simples em relação a outros géneros onde a ilustração está presente ou toma conta de toda a organização narrativa, conta com uma estratégia precisa e equilibrada) com a força da sua fantasia, e depois, calmo, regressa ao seu mundo “real”. Como a “justiça” pode revestir-se de formas menos esperadas, e está prevista na solidão que se segue à entrega total aos prazeres mais egoístas. E como as “coisas selvagens”, os “monstros”, são seres compósitos feitos disto e daquilo, de patos e cabras, bois e pessoas, e que têm tanto de asustador como de pateta... e é aí que reside o seu charme.
Este livro não é de fantasia pura e dura. As acções estão ancoradas numa existência real e plausível – o mau comportamento de Max e o seu castigo imediato – a partir da qual surgirá a premisa da fuga, ou do “escape”, se preferirem, ainda que esta seja momentânea e em nenhum momento possamos estar seguros se se tratará da imaginação de Max ou se de acontecimentos reais. Claro está que, se por um lado isso não é importante, tratando-se de ficção, por outro, é óbvio que aconteceu, quer porque se trata de fantasia e do maravilhoso, no qual há lugar para os acontecimentos extraordinários quer porque se trata de algo vivido por uma pessoa do número das crianças, para as quais as brincadeiras são experiências tão reais como aquelas que não pertecem a esse círculo.
O livro não conseguiu ganhar o consenso no seu país. Não querendo generalizar os Estados Unidos de um modo que seria desonesto e palerma, e tendo em conta que esse assunto não é somente complexo como tem presença em todos os países, inclusive em Portugal, os agentes de educação infantil daquele país viram no livro vários factores negativos: a presença de monstros aterradores, a violência de Max contra a mãe e a aparente condescendência dela no fim, a ausência de justiça moral em relação ao comportamento do miúdo. Mas, tal como ocorreria no ano seguinte ao do livro de Sendak com The Giving Tree/A árvore generosa, de Shel Silverstein (editado em português pela Bruaá), a aparente ausência de “castigo” ou “redenção”, e o unívoco triunfo do egoísmo das personagens, abre-se a toda uma variedade de interpretações, desde as mais simples aproximações narratológicas, às costumeiras reduções pelos esquemas da psicanálise, a um escavar profundo das linhas políticas e filosóficas que qualquer obra humana contém. Outros livros posteriores de Sendak causariam celeumas idênticas, primeiro com o Pierre que “não se importa” com nada (de The Nutshell Library, 1962), parecido com Max em termos de comportamento, e depois com a banda desenhada In the Night Kitchen (1970), com a viagem de Mickey num universo de inúmeras referências e memórias do autor cruzadas por acontecimentos abertos às mais violentas das interpretações (a nudez do protagonista provocou graves ódios, a sua cozedura num forno aproximou-o de uma metáfora à Shoah, mas na verdade nem sequer é definitiva como a morte de Max und Moritz). Seja como for, Sendak permitiria a emergência de todo um rol de livros com novos e modernos monstros, enormes e horríveis, mas que se tornam companheiros inseparáveis dos meninos que tentam assombrar. Logo em 1968 saíria uma pequena imitação, de Mercer Mayer, There’s a Nightmare in my closet/Um pesadelo no meu armário (também na Kalandraka, por cá; e outros livros do autor foram publicados nos anos 1980), e daí derivariam tantos outros títulos. Este tema é exemplarmente estudado num artigo de Ana Margarida Ramos.
Há um outro estudo, desta obra de Sendak em particular, e cujo título aponta desde logo para a interpretação que dela faz: “Max’s Colonial Fantasy”, de John Clement Ball (também disponível online). Como se depreenderá, essa fantasia colonial, ou mesmo colonialista, não deixa de estar associada a todo um imaginário fundando nas raízes da literatura dita infantil, sobretudo dirigida aos rapazes, e que serviu de fundamento a tantos dos romances de Verne como às fantasias ideologicamente insustentáveis de personagens clássicas como Tarzan ou o Fantasma. Uma leitura dessa natureza parece ser errónea, por trazer à tona interpretações negativas a algo que tanta maravilha causa, mas creio que nos é possível apreciar todas as contradições presentes (como as luas do livro!) em Onde vivem os Monstros, e abraçar o seu paradoxo, ressalvando que o seu fascínio não deixa de existir, malgré tout. De resto, contradições e paradoxos próprios de qualquer verdadeira obra de arte.
A imagem mais emblemática de todo o livro é, julgo eu, aquela em que Max encabeça a procissão dos monstros no seu momento de absoluto poder e prazer. Essa imagem, no filme, é transformada numa cena frenética, bela, no momento em que todas as criaturas da ilha e Max encontram um equilíbrio perfeito de entendimento mútuo e coincidência de expressão (os uivos, música dissonante, mas música).
São inúmeras as associações que se tornam possíveis em relação a essa imagem processional, quase podendo entendê-la como uma “forma retornada”, como os “engramas” de Aby Warburg: isto é, formas ou imagens que retornam em vários momentos e circunstâncias da história humana, mesmo que se revestindo de forças e significados diferentes, mas que estabelecem entre si a ideia de continuidade de uma memória silenciosa. O autor indica que veio a descobrir mais tarde imagens do filme King Kong, e como algumas das suas ilustrações quase mimavam a cena mais famosa, no alto do Empire State Building, afirmando: “[a imagem] talvez se tivesse impresso na minha cabeça trinta anos antes” (meu sublinhado). A noção está presente, mas poderá mesmo recuar de um modo que ultrapasse a experiência pessoal do autor. A meu ver, as primeiras imagens que se podem procurar como uma espécie de origem e conseuquência imediata a Where the Wild Things are é, quanto à primeira, a capa e trama de um outro livro, também recipiente da medalha Caldecott (Honor Book de 1944), In the forest, de Marie Halls Ets, e, para exemplo da segunda, a simples capa do The Incredible Hulk no. 49 (sem qualquer relação com o interior do comic book). Contudo, penso que esta ideia de procissão, de hierarquia, de uma espécie de alegria nímia no facto de se estar vivo mas expressá-lo através de signos terríficos (monstros) tem a sua mais antiga raiz iconográfica nas Danças Macabras medievais. É uma subtil e quase imperceptível ligação, decerto, mas há nessa expressão uma mesma contradição, um mesmo paradoxo, entre vida e morte, terror e alegria, o transitório e o perene. De novo, esse reequilíbrio.
Nessa senda de interpretação, não poderíamos ler a viagem de Max como uma descida aos infernos (idêntica à de Eneias, à de Cristo, ... à de Dante), ao desespero, a uma regressão total (o quarto não se transforma simplesmente numa floresta, são os móveis regredindo à sua natureza originária), atravessando o rio que separa o mundo dos vivos do dos mortos numa barca (de Caronte, dos Autos), para se encontrar com aqueles monstros que são uma imagem distorcida dele mesmo (como Calibão ou um pai, de resto, ausente e sublimado nos monstros)? Talvez pareça um abuso querer ler nesta “aventura” uma catábase, mas no momento em que a elegemos, encontramos na própria estrutura das frases e da composição de páginas uma possível aplicação do termo retórico. E, mitologicamente, o encontro do herói literário com as almas dos mortos, muitas vezes heróis, de tantos livros, parece ser retomada por Max: os monstros são outros Max, já perdidos, já tombados, junto aos quais procura conselho e consolação, descobrindo que é à terra dos vivos que deve retornar, e é lá que encontrará a verdadeira e possível, parcial consolação (volta a uma sopa quente, um copo de leite e uma fatia de bolo, mas não o vemos jamais junto à mãe).
O valor do livro não é imediato, nem simples, e essa é razão pela qual os polícias da educação do controle social, os depuradores da moral, os crentes da perfeição asséptica, e os propugnadores da suposta inocência das crianças (isto é, aqueles que querem criar uma bolha em seu torno apenas com fantasia açucarada, ilusões desirmanadas da existência, e teorias de papel) dele desconfiam. E essa é razão pela qual os seus bons leitores – de que Eggers e Jonze são um excelente exemplo – o manterão para sempre perto, e vivo, para o poderem desdobrar vezes sem conta, descobrindo sempre cantos novos.
O autor, no seu discurso de aceitação do prémio Caldecott, afirmou o seguinte: “É evidente que desejamos proteger as nossas crianças de experiências novas e dolorosas que estão para além da sua compreensão emocional e que aumentarão a sua angústia. E até certo ponto conseguimos evitar que se exponham prematuramente a essas experiências. Isso é evidente. Mas aquilo que é igualmente evidente, e que muitas vezes passamos por cima, é que desde a sua mais tenra idade os miúdos estão muito bem familiarizados com emoções perturbantes, com o facto de que o medo e a angústia fazem parte integrante das suas vidas quotidianas, e que têm de lidar constantemente com frustrações, da melhor maneira que conseguirem. E é através da fantasia que as crianças conseguem atingir a catarse. É o melhor método que têm para domar os Monstros”.
Cabe agora aos leitores portugueses que não conhecem este livro perceber essas razões e conquistar este método.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Algumas notas e informações foram coligidas de The Art of Maurice Sendak, de Selma G. Lanes (Abradele/Abrams: 1980).
É nesse quadro de produção imensa e contínua, mas da possibilidade de manter activa a memória de alguns livros – tal como ocorre na área da “literatura de crescidos” – que o primeiro livro criado sozinho por Sendak surge. Outros se seguiriam, ora com variações mínimas ora com grandes diferenciações dessa experiência, mas é aquele primeiro que mais memória deixaria. E que, agora com a versão cinematográfica de Spike Jonze, se reforçará. O momento da sua tradução em português é bem escolhido, e é feliz que a existência do filme tenha forçado a sua aparição. Num primeiro momento, neste post, falarei do livro, passando depois noutro ao filme, o qual desdobra e aumenta alguns dos temas do livro.
Onde vivem os Monstros é um livro exemplarmente construído, e a Kalandraka, naturalmente, respeita-o em todos os aspectos: nas cores pouco garridas, ou pouco histéricas, no formato, na composição de página, no ritmo do texto. Muitos estudos lhe foram dedicados, mas é a leitura repetida do livro que fará descobrir os seus segredos por vir, a cada leitor. Descobrir a forma como o pequeno Max vai fazendo expandir o seu espaço (imitado na composição da página, a qual, ainda que simples em relação a outros géneros onde a ilustração está presente ou toma conta de toda a organização narrativa, conta com uma estratégia precisa e equilibrada) com a força da sua fantasia, e depois, calmo, regressa ao seu mundo “real”. Como a “justiça” pode revestir-se de formas menos esperadas, e está prevista na solidão que se segue à entrega total aos prazeres mais egoístas. E como as “coisas selvagens”, os “monstros”, são seres compósitos feitos disto e daquilo, de patos e cabras, bois e pessoas, e que têm tanto de asustador como de pateta... e é aí que reside o seu charme.
Este livro não é de fantasia pura e dura. As acções estão ancoradas numa existência real e plausível – o mau comportamento de Max e o seu castigo imediato – a partir da qual surgirá a premisa da fuga, ou do “escape”, se preferirem, ainda que esta seja momentânea e em nenhum momento possamos estar seguros se se tratará da imaginação de Max ou se de acontecimentos reais. Claro está que, se por um lado isso não é importante, tratando-se de ficção, por outro, é óbvio que aconteceu, quer porque se trata de fantasia e do maravilhoso, no qual há lugar para os acontecimentos extraordinários quer porque se trata de algo vivido por uma pessoa do número das crianças, para as quais as brincadeiras são experiências tão reais como aquelas que não pertecem a esse círculo.
O livro não conseguiu ganhar o consenso no seu país. Não querendo generalizar os Estados Unidos de um modo que seria desonesto e palerma, e tendo em conta que esse assunto não é somente complexo como tem presença em todos os países, inclusive em Portugal, os agentes de educação infantil daquele país viram no livro vários factores negativos: a presença de monstros aterradores, a violência de Max contra a mãe e a aparente condescendência dela no fim, a ausência de justiça moral em relação ao comportamento do miúdo. Mas, tal como ocorreria no ano seguinte ao do livro de Sendak com The Giving Tree/A árvore generosa, de Shel Silverstein (editado em português pela Bruaá), a aparente ausência de “castigo” ou “redenção”, e o unívoco triunfo do egoísmo das personagens, abre-se a toda uma variedade de interpretações, desde as mais simples aproximações narratológicas, às costumeiras reduções pelos esquemas da psicanálise, a um escavar profundo das linhas políticas e filosóficas que qualquer obra humana contém. Outros livros posteriores de Sendak causariam celeumas idênticas, primeiro com o Pierre que “não se importa” com nada (de The Nutshell Library, 1962), parecido com Max em termos de comportamento, e depois com a banda desenhada In the Night Kitchen (1970), com a viagem de Mickey num universo de inúmeras referências e memórias do autor cruzadas por acontecimentos abertos às mais violentas das interpretações (a nudez do protagonista provocou graves ódios, a sua cozedura num forno aproximou-o de uma metáfora à Shoah, mas na verdade nem sequer é definitiva como a morte de Max und Moritz). Seja como for, Sendak permitiria a emergência de todo um rol de livros com novos e modernos monstros, enormes e horríveis, mas que se tornam companheiros inseparáveis dos meninos que tentam assombrar. Logo em 1968 saíria uma pequena imitação, de Mercer Mayer, There’s a Nightmare in my closet/Um pesadelo no meu armário (também na Kalandraka, por cá; e outros livros do autor foram publicados nos anos 1980), e daí derivariam tantos outros títulos. Este tema é exemplarmente estudado num artigo de Ana Margarida Ramos.
Há um outro estudo, desta obra de Sendak em particular, e cujo título aponta desde logo para a interpretação que dela faz: “Max’s Colonial Fantasy”, de John Clement Ball (também disponível online). Como se depreenderá, essa fantasia colonial, ou mesmo colonialista, não deixa de estar associada a todo um imaginário fundando nas raízes da literatura dita infantil, sobretudo dirigida aos rapazes, e que serviu de fundamento a tantos dos romances de Verne como às fantasias ideologicamente insustentáveis de personagens clássicas como Tarzan ou o Fantasma. Uma leitura dessa natureza parece ser errónea, por trazer à tona interpretações negativas a algo que tanta maravilha causa, mas creio que nos é possível apreciar todas as contradições presentes (como as luas do livro!) em Onde vivem os Monstros, e abraçar o seu paradoxo, ressalvando que o seu fascínio não deixa de existir, malgré tout. De resto, contradições e paradoxos próprios de qualquer verdadeira obra de arte.
A imagem mais emblemática de todo o livro é, julgo eu, aquela em que Max encabeça a procissão dos monstros no seu momento de absoluto poder e prazer. Essa imagem, no filme, é transformada numa cena frenética, bela, no momento em que todas as criaturas da ilha e Max encontram um equilíbrio perfeito de entendimento mútuo e coincidência de expressão (os uivos, música dissonante, mas música).
São inúmeras as associações que se tornam possíveis em relação a essa imagem processional, quase podendo entendê-la como uma “forma retornada”, como os “engramas” de Aby Warburg: isto é, formas ou imagens que retornam em vários momentos e circunstâncias da história humana, mesmo que se revestindo de forças e significados diferentes, mas que estabelecem entre si a ideia de continuidade de uma memória silenciosa. O autor indica que veio a descobrir mais tarde imagens do filme King Kong, e como algumas das suas ilustrações quase mimavam a cena mais famosa, no alto do Empire State Building, afirmando: “[a imagem] talvez se tivesse impresso na minha cabeça trinta anos antes” (meu sublinhado). A noção está presente, mas poderá mesmo recuar de um modo que ultrapasse a experiência pessoal do autor. A meu ver, as primeiras imagens que se podem procurar como uma espécie de origem e conseuquência imediata a Where the Wild Things are é, quanto à primeira, a capa e trama de um outro livro, também recipiente da medalha Caldecott (Honor Book de 1944), In the forest, de Marie Halls Ets, e, para exemplo da segunda, a simples capa do The Incredible Hulk no. 49 (sem qualquer relação com o interior do comic book). Contudo, penso que esta ideia de procissão, de hierarquia, de uma espécie de alegria nímia no facto de se estar vivo mas expressá-lo através de signos terríficos (monstros) tem a sua mais antiga raiz iconográfica nas Danças Macabras medievais. É uma subtil e quase imperceptível ligação, decerto, mas há nessa expressão uma mesma contradição, um mesmo paradoxo, entre vida e morte, terror e alegria, o transitório e o perene. De novo, esse reequilíbrio.
Nessa senda de interpretação, não poderíamos ler a viagem de Max como uma descida aos infernos (idêntica à de Eneias, à de Cristo, ... à de Dante), ao desespero, a uma regressão total (o quarto não se transforma simplesmente numa floresta, são os móveis regredindo à sua natureza originária), atravessando o rio que separa o mundo dos vivos do dos mortos numa barca (de Caronte, dos Autos), para se encontrar com aqueles monstros que são uma imagem distorcida dele mesmo (como Calibão ou um pai, de resto, ausente e sublimado nos monstros)? Talvez pareça um abuso querer ler nesta “aventura” uma catábase, mas no momento em que a elegemos, encontramos na própria estrutura das frases e da composição de páginas uma possível aplicação do termo retórico. E, mitologicamente, o encontro do herói literário com as almas dos mortos, muitas vezes heróis, de tantos livros, parece ser retomada por Max: os monstros são outros Max, já perdidos, já tombados, junto aos quais procura conselho e consolação, descobrindo que é à terra dos vivos que deve retornar, e é lá que encontrará a verdadeira e possível, parcial consolação (volta a uma sopa quente, um copo de leite e uma fatia de bolo, mas não o vemos jamais junto à mãe).
O valor do livro não é imediato, nem simples, e essa é razão pela qual os polícias da educação do controle social, os depuradores da moral, os crentes da perfeição asséptica, e os propugnadores da suposta inocência das crianças (isto é, aqueles que querem criar uma bolha em seu torno apenas com fantasia açucarada, ilusões desirmanadas da existência, e teorias de papel) dele desconfiam. E essa é razão pela qual os seus bons leitores – de que Eggers e Jonze são um excelente exemplo – o manterão para sempre perto, e vivo, para o poderem desdobrar vezes sem conta, descobrindo sempre cantos novos.
O autor, no seu discurso de aceitação do prémio Caldecott, afirmou o seguinte: “É evidente que desejamos proteger as nossas crianças de experiências novas e dolorosas que estão para além da sua compreensão emocional e que aumentarão a sua angústia. E até certo ponto conseguimos evitar que se exponham prematuramente a essas experiências. Isso é evidente. Mas aquilo que é igualmente evidente, e que muitas vezes passamos por cima, é que desde a sua mais tenra idade os miúdos estão muito bem familiarizados com emoções perturbantes, com o facto de que o medo e a angústia fazem parte integrante das suas vidas quotidianas, e que têm de lidar constantemente com frustrações, da melhor maneira que conseguirem. E é através da fantasia que as crianças conseguem atingir a catarse. É o melhor método que têm para domar os Monstros”.
Cabe agora aos leitores portugueses que não conhecem este livro perceber essas razões e conquistar este método.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Algumas notas e informações foram coligidas de The Art of Maurice Sendak, de Selma G. Lanes (Abradele/Abrams: 1980).
Where the wild things are. Filme de Spike Jonze.
Onde vivem os Monstros. 2. Filme. (Livro)
Esta não é a primeira adaptação de Onde vivem os Monstros para um meio de imagens em movimento. Em 1973 surgiu uma versão animada, por Gene Deitch (pai de Kim Deitch), que adaptaria ainda In the Night Kitchen, já havia realizado Munro, escrito por Jules Feiffer, e trabalharia sobre Krazy Kat. Excelente currículo e companhia, o que explica a boa versão. Todavia, este filme de Jonze não é, nem o poderia alguma vez ser, uma mera transposição, um verter, de um mesmo “conteúdo”, de uma “forma” para outra... É antes uma transubstanciação, uma transrealização, uma transformação, não total, mas através dos desdobramentos possíveis a partir dos elementos do livro para um meio como o do cinema.
Independentemente da maneira como as condições de produção do livro avançaram, antes de se tornar o texto que hoje conhecemos (as “Wild Things” referiam-se a toda uma série de animais mais normalizados, digamos assim, numa sua versão com cavalos, partes do texto foram sendo reescritas até mesmo com os editores), o que nos importa enquanto leitores é a sua forma final, o texto em si. É interessante que Jonze tenha optado pela exploração de uma hipotética backstory, da novela familiar por detrás do exercício de escapismo, tornando a viagem de Max numa forma de expressão com raízes (mais) dolorosas.
Sem querer reduzir todos os filmes de Jonze a uma espécie de estrutura apriorística e psicologizante, creio porém ser-se relativamente fácil apercebermo-nos de que os seus filmes e vídeos exploram toda a capacidade que a ficção, sobretudo aquela pejada de elementos consolidados que nos fazem chamar pelos “géneros” sem titubeações, tem para nos poder transportar a toda uma nova realidade ou capacidade de sensações. Seja a cabeça de John Malkovich, ou a do argumentista de Adaptation, o fabuloso (em toda a acepção da palavra) vídeo-clip “Da Funk” dos Daft Punk, ou o gato da Björk (“Triumph of a Heart”), servem todas essas pequenas narrativas para nos colocar num território de estranheza, de alteridade, até mesmo de alienação, para se poder retornar ao centro, o que não é mais do que o programa do livro de Sendak. O acompanhamento do autor do livro original e o dedo de Dave Eggers, Papa da McSweeney’s, o qual haveria de trabalhar o argumento até se tornar uma jóia bem polida, e, a par e passo do filme, uma outra versão em forma de romance, The Wild Things/O sítio das coisas selvagens (editado em Portugal pela Quetzal), traz ainda mais uma coroa de segurança e honestidade cultural que blindou o projecto de outras direcções pautadas por desejos de estúdio (o que explica em parte os problemas pelos quais atravessou durante a produção do filme). Nota-se uma grande distância de todos os filmes “para toda a família” com os seus espartilhos morais e estilísticos: a diferença nota-se a todos os níveis, dos diálogos credíveis e “banais” às cores naturalistas e selvagens, da pura parvoeira das acções propostas na ilha à falta de jeito em cumpri-las, das pequenas piscadelas de olho à cultura popular (quantas cenas dos monstros são um reflexo de Jackass?, e quando Alexander, o monstro-cabra, diz “that tickles!”, está a repetir a famosíssima frase de Elmo, personagem da série Rua Sésamo), e em toda a parafernália cool em torno (a música, acima de tudo, em canções facilmente assobiáveis).
Preenchendo todo o sentido da palavra, este é um filme maravilhoso, e que emprega a fantasia do modo pautado e sóbrio que se indicou para poder abrir espaço à exploração do “método” que Sendak havia preconizado no seu livro. Não um mero escape ou desvio de atenção por distrações fáceis, rodriguinhos de cor e efeitos (o projecto inacabado da Disney teria sido exemplo de um péssimo caminho; e o novo Alice de Burton faz temer o pior), mas sim um instrumento através do qual a criança pode aceder a significados que começa a sondar na sua existência completa e espiritual.
Max surge aqui, no corpo de um menino real, em todo o esplendor do mau comportamento que quer dizer “olha para mim e ama-me”. Não há qualquer histrionismo nem talento precoce Hollywoodesco, mas apenas a triste capacidade que todas as crianças têm em inventar histórias e ver o mundo acabar a todo o brinquedo partido. Quanto às criaturas, espelhos de Max, não têm nome no livro em si, mas numa primeira versão teatral foram baptizadas com os nomes judaicos dos familiares do autor (aliás, o autor baseou-se nos tios e primos para desenhar as “wild things”, sendo aqueles, nas palavras dele, bichos enormes de olhos esbugalhados, maus dentes e narizes peludos e que agarram nas bochechas com força para demonstrar carinho), o que seria aproveitado pelos bonecos da McFarlane; a versão cinematográfica apresenta outros nomes, numa distribuição equilibrada entre origens e distribuição sexual, tomando o pulso ao tempo e para sublinhar o desenho universal da história. O desdobramento das suas personalidades, tal como o desenvolvimento da backstory que justifica as fugas de Max (a real e a imaginária, se não as lermos às duas como reais, o que será provavelmente a melhor hipótese), é algo necessário num projecto fílmico narrativo. Já muito foi dito dos efeitos especiais das criaturas, que passam pela credibilidade táctil dos herdeiros de Jim Henson; The Dark Crystal chegou perto (em termos da naturalidade e movimento, não de qualidade literária e estética), mas este filme está no nosso ponto, de um modo que nenhum outro filme dependente em tecnologias CGI consegue atingir, preterindo-se a técnica em favor da proximidade.
O filme utiliza todos os instrumentos que tem disponíveis para poder explorar e abrir o universo narrativo contido nas páginas do livro de Sendak, mas lançando-o para outros campos da expriência infantil. A forma como som é muitas vezes tratado, com diálogos escutados subjectivamente a partir da posição de Max (à margem, ao largo, no interior de K.W.), ecoa a forma como muitas crianças escutam as discussões dos pais, em surdina, não os envolvendo directamente mas reduzindo-os a moeda de troca e chantagem, de ameaças e razões. Tudo concorrendo para a metáfora familiar, que este filme explora, mais que qualquer outra interpretação prevista no livro (precisamente porque, estendendo-se numa só direcção, vai fechando outros caminhos virtuais). Nesse sentido, e tendo em conta mais uma vez a ausência do pai ou de qualquer figura paterna quer no livro quer no filme (a mãe, que está fora de campo no livro, passa a estar presente no filme, mas impotente), a violência do monstro Carol, aquele que começara como o mais protector, o mais próximo, o mais amigo, é o que traz o medo à mais viva flor da pele. Não por ser um monstro que tem olhos e dentes e garras terríveis, como reza o texto de Sendak, mas porque precisamente é aquele que mais parecia estar longe dessa raiva destruidora real. Melhor retrato da violência parental ou do amor tornado ódio e agressão não haverá.
O espaço onde o filme se desenvolve é também cheio de vitalidades. A ilha onde vivem os monstros surge como todas as ilhas dos clássicos literários com os quais pode ser irmanado, e, não obstante a possibilidade da leitura colonialista, ela é um micro-cosmos social como os locais visitados por Gulliver, a ilha refundada por Robinson Crusoe, ou a de Próspero, “cheia de ruídos”. A sua diversidade de paisagens – deserto de areia, bosque, planície pedregosa, montanhas, cavernas húmidas – apenas aumenta o grau de amplitude e potencialidade dessa ilha. Mas ela é também uma gigantesca máquina de ficção. Em primeiro lugar, para os próprios monstros: a caverna e galeria de Carol é uma mise en abîme da ilha e dos seus habitantes, um pequeno modelo utópico e projecção do seu criador (e que tem o fim que todas as utopias, quando tentadas na realidade, atingem). É também um espaço de ficção para Max, no qual este, através das brincadeiras (o “rumpus” que, mais do que a “festa” na tradução do livro, é uma excitada doideira, macacada, palhaçada) e do grande projecto de reconstrução da ilha e da sua sociedade (que não é mais do que a sublimação mais controlada e benigna das acções violentas levadas a cabo por Carol, quando o conhecemos, e a realização dos seus modelos), aprende a situar-se na relação com os outros, a ler as emoções dos outros e, assim, crescer. Pelo desenvolvimento narratológico indispensável no filme, isso é bem mais claro ou explícito neste do que no mais conciso, subtil livro, aberto à interpretação. O filme de Jonze, com um intuito moral, prevê que se explorem as relações de amizade entre as criaturas, os laços que se vão desfazendo e o modo como o “reinado” de Max os reforça.
Seria interessante tentar perceber se Max reina de facto ou não, isto é, até que ponto as acções cumpridas por todos e as alterações das suas redes relacionais nascem da necessidade da força externa da criança, tal como esse “poder” se espelha no modo como ele é “reinado”. Mais importante, contudo, é o facto de que em português há a felicidade de encontrar o paradoxo explorado na ilha nesse mesmo verbo: “reinar”.
Ora, tudo isto é então um comentário sobre o poder da ficção e a sua importância enquanto instrumento de aprendizagem, desenvolvimento pessoal e crescimento humano. É uma ferramenta muito importante, pois simplificando as arestas da realidade ajuda-nos a concentrar melhor num qualquer assunto ou evento das nossas vidas. E a importância é acrescida ao se relacionar com a infância, onde tantas vezes o fingimento não o é, mas é antes uma outra forma de se ser realmente. Está-se a reinar. Há um momento em que Douglas, o monstro-ave (e que bem que são escolhidas as vozes; aqui o culto de personalidade do cinema comercial norte-americano funciona a favor do desenvolvimento destas personagens; Chris Cooper tem uma perfeita voz da asserção e sapiência impotente), revela que Max é “um rapazinho a fazer de lobo a fazer de rei”. Todavia, não é uma mentira o que Max fez, não é um fingimento: É uma forma ficcional de expressar uma verdade.
É essa, uma só, verdade, o que vemos explorado no filme. Há uma em cada um de nós.
Esta não é a primeira adaptação de Onde vivem os Monstros para um meio de imagens em movimento. Em 1973 surgiu uma versão animada, por Gene Deitch (pai de Kim Deitch), que adaptaria ainda In the Night Kitchen, já havia realizado Munro, escrito por Jules Feiffer, e trabalharia sobre Krazy Kat. Excelente currículo e companhia, o que explica a boa versão. Todavia, este filme de Jonze não é, nem o poderia alguma vez ser, uma mera transposição, um verter, de um mesmo “conteúdo”, de uma “forma” para outra... É antes uma transubstanciação, uma transrealização, uma transformação, não total, mas através dos desdobramentos possíveis a partir dos elementos do livro para um meio como o do cinema.
Independentemente da maneira como as condições de produção do livro avançaram, antes de se tornar o texto que hoje conhecemos (as “Wild Things” referiam-se a toda uma série de animais mais normalizados, digamos assim, numa sua versão com cavalos, partes do texto foram sendo reescritas até mesmo com os editores), o que nos importa enquanto leitores é a sua forma final, o texto em si. É interessante que Jonze tenha optado pela exploração de uma hipotética backstory, da novela familiar por detrás do exercício de escapismo, tornando a viagem de Max numa forma de expressão com raízes (mais) dolorosas.
Sem querer reduzir todos os filmes de Jonze a uma espécie de estrutura apriorística e psicologizante, creio porém ser-se relativamente fácil apercebermo-nos de que os seus filmes e vídeos exploram toda a capacidade que a ficção, sobretudo aquela pejada de elementos consolidados que nos fazem chamar pelos “géneros” sem titubeações, tem para nos poder transportar a toda uma nova realidade ou capacidade de sensações. Seja a cabeça de John Malkovich, ou a do argumentista de Adaptation, o fabuloso (em toda a acepção da palavra) vídeo-clip “Da Funk” dos Daft Punk, ou o gato da Björk (“Triumph of a Heart”), servem todas essas pequenas narrativas para nos colocar num território de estranheza, de alteridade, até mesmo de alienação, para se poder retornar ao centro, o que não é mais do que o programa do livro de Sendak. O acompanhamento do autor do livro original e o dedo de Dave Eggers, Papa da McSweeney’s, o qual haveria de trabalhar o argumento até se tornar uma jóia bem polida, e, a par e passo do filme, uma outra versão em forma de romance, The Wild Things/O sítio das coisas selvagens (editado em Portugal pela Quetzal), traz ainda mais uma coroa de segurança e honestidade cultural que blindou o projecto de outras direcções pautadas por desejos de estúdio (o que explica em parte os problemas pelos quais atravessou durante a produção do filme). Nota-se uma grande distância de todos os filmes “para toda a família” com os seus espartilhos morais e estilísticos: a diferença nota-se a todos os níveis, dos diálogos credíveis e “banais” às cores naturalistas e selvagens, da pura parvoeira das acções propostas na ilha à falta de jeito em cumpri-las, das pequenas piscadelas de olho à cultura popular (quantas cenas dos monstros são um reflexo de Jackass?, e quando Alexander, o monstro-cabra, diz “that tickles!”, está a repetir a famosíssima frase de Elmo, personagem da série Rua Sésamo), e em toda a parafernália cool em torno (a música, acima de tudo, em canções facilmente assobiáveis).
Preenchendo todo o sentido da palavra, este é um filme maravilhoso, e que emprega a fantasia do modo pautado e sóbrio que se indicou para poder abrir espaço à exploração do “método” que Sendak havia preconizado no seu livro. Não um mero escape ou desvio de atenção por distrações fáceis, rodriguinhos de cor e efeitos (o projecto inacabado da Disney teria sido exemplo de um péssimo caminho; e o novo Alice de Burton faz temer o pior), mas sim um instrumento através do qual a criança pode aceder a significados que começa a sondar na sua existência completa e espiritual.
Max surge aqui, no corpo de um menino real, em todo o esplendor do mau comportamento que quer dizer “olha para mim e ama-me”. Não há qualquer histrionismo nem talento precoce Hollywoodesco, mas apenas a triste capacidade que todas as crianças têm em inventar histórias e ver o mundo acabar a todo o brinquedo partido. Quanto às criaturas, espelhos de Max, não têm nome no livro em si, mas numa primeira versão teatral foram baptizadas com os nomes judaicos dos familiares do autor (aliás, o autor baseou-se nos tios e primos para desenhar as “wild things”, sendo aqueles, nas palavras dele, bichos enormes de olhos esbugalhados, maus dentes e narizes peludos e que agarram nas bochechas com força para demonstrar carinho), o que seria aproveitado pelos bonecos da McFarlane; a versão cinematográfica apresenta outros nomes, numa distribuição equilibrada entre origens e distribuição sexual, tomando o pulso ao tempo e para sublinhar o desenho universal da história. O desdobramento das suas personalidades, tal como o desenvolvimento da backstory que justifica as fugas de Max (a real e a imaginária, se não as lermos às duas como reais, o que será provavelmente a melhor hipótese), é algo necessário num projecto fílmico narrativo. Já muito foi dito dos efeitos especiais das criaturas, que passam pela credibilidade táctil dos herdeiros de Jim Henson; The Dark Crystal chegou perto (em termos da naturalidade e movimento, não de qualidade literária e estética), mas este filme está no nosso ponto, de um modo que nenhum outro filme dependente em tecnologias CGI consegue atingir, preterindo-se a técnica em favor da proximidade.
O filme utiliza todos os instrumentos que tem disponíveis para poder explorar e abrir o universo narrativo contido nas páginas do livro de Sendak, mas lançando-o para outros campos da expriência infantil. A forma como som é muitas vezes tratado, com diálogos escutados subjectivamente a partir da posição de Max (à margem, ao largo, no interior de K.W.), ecoa a forma como muitas crianças escutam as discussões dos pais, em surdina, não os envolvendo directamente mas reduzindo-os a moeda de troca e chantagem, de ameaças e razões. Tudo concorrendo para a metáfora familiar, que este filme explora, mais que qualquer outra interpretação prevista no livro (precisamente porque, estendendo-se numa só direcção, vai fechando outros caminhos virtuais). Nesse sentido, e tendo em conta mais uma vez a ausência do pai ou de qualquer figura paterna quer no livro quer no filme (a mãe, que está fora de campo no livro, passa a estar presente no filme, mas impotente), a violência do monstro Carol, aquele que começara como o mais protector, o mais próximo, o mais amigo, é o que traz o medo à mais viva flor da pele. Não por ser um monstro que tem olhos e dentes e garras terríveis, como reza o texto de Sendak, mas porque precisamente é aquele que mais parecia estar longe dessa raiva destruidora real. Melhor retrato da violência parental ou do amor tornado ódio e agressão não haverá.
O espaço onde o filme se desenvolve é também cheio de vitalidades. A ilha onde vivem os monstros surge como todas as ilhas dos clássicos literários com os quais pode ser irmanado, e, não obstante a possibilidade da leitura colonialista, ela é um micro-cosmos social como os locais visitados por Gulliver, a ilha refundada por Robinson Crusoe, ou a de Próspero, “cheia de ruídos”. A sua diversidade de paisagens – deserto de areia, bosque, planície pedregosa, montanhas, cavernas húmidas – apenas aumenta o grau de amplitude e potencialidade dessa ilha. Mas ela é também uma gigantesca máquina de ficção. Em primeiro lugar, para os próprios monstros: a caverna e galeria de Carol é uma mise en abîme da ilha e dos seus habitantes, um pequeno modelo utópico e projecção do seu criador (e que tem o fim que todas as utopias, quando tentadas na realidade, atingem). É também um espaço de ficção para Max, no qual este, através das brincadeiras (o “rumpus” que, mais do que a “festa” na tradução do livro, é uma excitada doideira, macacada, palhaçada) e do grande projecto de reconstrução da ilha e da sua sociedade (que não é mais do que a sublimação mais controlada e benigna das acções violentas levadas a cabo por Carol, quando o conhecemos, e a realização dos seus modelos), aprende a situar-se na relação com os outros, a ler as emoções dos outros e, assim, crescer. Pelo desenvolvimento narratológico indispensável no filme, isso é bem mais claro ou explícito neste do que no mais conciso, subtil livro, aberto à interpretação. O filme de Jonze, com um intuito moral, prevê que se explorem as relações de amizade entre as criaturas, os laços que se vão desfazendo e o modo como o “reinado” de Max os reforça.
Seria interessante tentar perceber se Max reina de facto ou não, isto é, até que ponto as acções cumpridas por todos e as alterações das suas redes relacionais nascem da necessidade da força externa da criança, tal como esse “poder” se espelha no modo como ele é “reinado”. Mais importante, contudo, é o facto de que em português há a felicidade de encontrar o paradoxo explorado na ilha nesse mesmo verbo: “reinar”.
Ora, tudo isto é então um comentário sobre o poder da ficção e a sua importância enquanto instrumento de aprendizagem, desenvolvimento pessoal e crescimento humano. É uma ferramenta muito importante, pois simplificando as arestas da realidade ajuda-nos a concentrar melhor num qualquer assunto ou evento das nossas vidas. E a importância é acrescida ao se relacionar com a infância, onde tantas vezes o fingimento não o é, mas é antes uma outra forma de se ser realmente. Está-se a reinar. Há um momento em que Douglas, o monstro-ave (e que bem que são escolhidas as vozes; aqui o culto de personalidade do cinema comercial norte-americano funciona a favor do desenvolvimento destas personagens; Chris Cooper tem uma perfeita voz da asserção e sapiência impotente), revela que Max é “um rapazinho a fazer de lobo a fazer de rei”. Todavia, não é uma mentira o que Max fez, não é um fingimento: É uma forma ficcional de expressar uma verdade.
É essa, uma só, verdade, o que vemos explorado no filme. Há uma em cada um de nós.
23 de novembro de 2009
Israel Sketchbook. Ricardo Cabral (Asa)
Visito Israel (ou outro lugar qualquer) munido de um mapa, um guia, um jornal, e uma câmara fotográfica. Ou visito-a com um caderno de desenho. Aquilo que verei, experienciarei, degustarei, e depois devolverei serão duas realidades bem distintas.
Neste livro que nasce de um conjunto de cadernos de viagem de Ricardo Cabral, a chave encontra-se talvez na página 124, onde o autor apontou o seguinte: “... a Cúpula da Rocha – que não está realmente ali mas que eu forço para aparecer no desenho...”. A palavra-chave está em forçar, isto é, o exercício de um esforço transformador sobre a paisagem, a alteração desta, a qual está à partida totalmente fora do alcance da manipulação de um só homem (excepto os casos da landart, claro está), através de um instrumento que, bem pelo contrário, poderá estar sob o total domínio do seu criador, a saber, o desenho.
Em Cadernos de Viagem, editado por Eduardo Salavisa, recordar-se-ão da história de Mário Bismarck, em que este, quando desenhava num templo do Egipto, foi interpelado por um guarda que o proibiu de desenhar. Num diálogo “por gestos”, o pintor foi informado que poderia fotografar e até filmar, mas não desenhar. Ora esse guarda revela uma inteligência arguta (aliás, Bismarck afirma mesmo que “daria um excelente professor de Desenho!”, pois sabe que o desenho permite que se pense mais além da mera angariação dos dados.
A fotografia, sabemo-lo com Vilém Flusser, pode ser vista como um princípio de “automação estúpida”, reduzindo-se os aparelhos a uma “caixa negra” e o fotógrafo a um “funcionário”, isto é, quando quem fotografa apenas se pauta em relação ao parelho, trabalha (ou “brinca”, nas palavras de Flusser) no interior das suas limitações técnicas e políticas. Outro pensador da fotografia, Henri Van Lier, faz-nos encontrar o equilíbrio próprio dessa linguagem entre a imparcialidade (a captação automática de fotões em papel químico-óptico) e a indexação do gesto (todas as opções possíveis, a contextualização, a focalização). A fotografia não pretende devolver a realidade (“acontecimentos e objectos”) mas um real (“processos e continuidades”). O desenho é igualmente um processo, mas algo que parte de uma continuidade mais recuada, mais próxima do objecto (é preciso contorná-lo, como a jovem de Corinto ao seu amante) e, ao mesmo tempo, mais afastada (não há fotões reais sobre os objectos, mas a promessa de um afastamento posterior).
A opção, hoje, pelo retorno ao caderno de desenho em detrimento do aparelho fotográfico, revela então um processo de correcção dessa visão automática “pobre”, “repetente”, introduzindo-se um qualquer grau de individualidade e voz própria. O desenho, enquanto instrumento de conhecimento, é algo de muito antigo, algo que encontrou em Leonardo o ápice da sua completude e sofreguidão, e que tem tido ao longo dos séculos da criação humana os seus cultores. Ricardo Cabral não é turista em Israel (não o é apenas, pelo menos), e poderíamos mesmo argumentar que não vemos nestes cadernos a Israel passível de uma mediação supostamente objectiva – se é que isso é possível com algum lugar, mas temo que Israel o seja menos ainda – mas a Israel de Ricardo Cabral (tal como há um Fuji de Hokusai, uma Berlim de Grosz, uma Londres de Geoffrey Fletcher ou de Francis Marshall, uma Nova Iorque de Vasco Colombo). Através dos seus momentos calmos, Cabral desenhou esta Israel, as suas várias cidades, os seus cantos menos teatrais, os lugares mais confortáveis e reais do artista, para que a pudesse conhecer de um modo outro, e que depois nos pudesse devolver (um desenho, tal como uma fotografia, uma frase, é sempre feito para alguém, para o futuro, é sempre uma esperança de partilha, apesar da frase de Manuel San Payo destacada no post anterior).
Quanto aos desenhos em si, participam de um território misto. Ao acompanhar alguns dos desenhos que iam sendo expostos no blog do autor, e o processo de trabalho a que se entregava (vejam aqui), notar-se-á que a procura de Cabral não se cinge à disciplina do desenho, mas ao seu cruzamento com a fotografia onde esta permite uma aproximação mais naturalista das cores. O abdicar de uma maior expressividade através de outras técnicas de cor (como as aguarelas ou as ecolines), o facto de tomar decisões de alteração ora do desenho original ora da paisagem efectiva, a opção em representar algumas vistas em “olho de peixe”, a inclusão de pequenos pormenores de produção (o seu próprio reflexo em superfícies, as páginas sob aquela visível, um estranho equilíbrio entre pormenores quase hiperrealistas e outros moldados por aproximação, uma franca opção por abandonar a figuração humana “mangaizada” de Evereste por uma outra maneira que experimenta em desenhos, inclusive os enormes painéis que expôs na galeria Corrente d’Arte), fazem deste livro um caso de estudo das fronteiras da ilustração, do desenho, do gesto gráfico, e até mesmo da fotografia, muito profícuo.
Em termos de exemplo, vejam-se as páginas 148-149 e 150-151. É impossível crer que, mesmo não tomando em consideração a cor, estes desenhos tenham sido feitos nos momentos que retratam, tão curto intervalo; terá sido um apontamento estenográfico posteriormente esculpido?, duas fotografias desenhadas?, um só desenho desdobrado? Questões que apenas poderíamos perguntar directamente ao autor, mas que se torna mais interessante colocar ao próprio livro, e esperar que a sua leitura nos desvende as várias respostas. Um outro exemplo, páginas 156-157. Fala-se de “uma menina brinca junta ao abrigo”. Vemos três. Não, vemos uma, em três momentos e acções diferentes. De novo as questões surgem, e com o desenho, as respostas fluem também. Há apenas um momento em que a especificidade do espaço físico do caderno de desenho faz explodir a concentração representacional: nas páginas 208-209 o autor desenhava a paisagem urbana em frente a uma esplanada, “mas não acabo... já não é a rua que me interessa. São as pessoas que passam (...) a vida que aqui há”. É sempre essa vida “que aqui há” que está presente nos desenhos de Ricardo Cabral (e não uma reportagem, uma construção coesa de um qualquer discurso regrado), mas este é o único momento em que se instala a total liberdade da qualidade de palimpsesto do caderno (para empregar um termo previsto no catálogo referido atrás). Todavia, como vemos, as opções de Cabral pautam-se por um qualquer grau de naturalismo.
Há que nos remetermos aqui para as questões dos textos, dos pequenos e breves comentários do autor em relação ao que se vê representado, quase sempre num tempo presente, criando-se um equilíbrio entre distância e presença. Poder-se-ia ainda acrescentar que se trata de um discurso a-politizado, uma vez que não há quaisquer comentários em relação à situação política de Israel (apesar de se anotar um susto de uma bomba, a protecção nos abrigos, a presença dos militares, uma fronteira...), que mais suscitaria interesse à partida, de uma certa perspectiva. No entanto, poderemos ver aí mesmo um posicionamento, de resto inevitável, nesses mesmos palcos. As relações de Ricardo Cabral com os seus interlocutores locais parece ser o da amizade somente, não há diálogos transcritos, não adivinhamos tensões de qualquer espécie, tertemunhamos até uma aparente bonomia, uma serenidade, até mesmo uma banalidade das vistas.
São esses mesmos momentos, descomplexados, aqueles que mais nos conquistam em termos pessoas. As imagens dos interiores, aquelas “sem acção”, sem até personagens... são essas as que mais revelam não o mero aborrecimento pelo banal e comezinho, mas sim os momentos em que o desenho de Cabral leva mais tempo a contornar os objectos, a apalpá-los e moldá-los com linhas e sombras. A vista de um bule de chá eléctrico em primeiro plano, do que se esconde por entre um beco, os restos de uma refeição, são bem mais eficientes nessa transmissão do que os retratos das pessoas que passam, mais ou menos rapidamente, na “vida retratada” destes cadernos (recordando-nos, de um modo estranho, as “paisagens” de Shinji Kimura.
O livro de Ricardo Cabral não participa, a meu ver, daqueles interesses peculiares que podem ocorrer nos diários gráficos de pintores ou artistas visuais de outras disciplinas. Isto é, em que a aguarela, a trama do lápis, do carvão, da grafite ou da sanguínea exploram as suas próprias capacidades expressivas ou aquele grau de simbiose que se torna possível com o gesto do artista. É inevitável que, tal como outros artistas de banda desenhada que têm cadernos publicados (Baudoin, Loustal, Dupuy e Berbérian, Gallardo, Joaquin López Cruces, Crumb, Kuper), se procurem afinidades entre uma actividade e outra (contar histórias, procurar elos narrativos, dar a ver a expressão das “personagens”, treinar uma maneira de desenhar, etc.). O cruzamento com a fotografia de Cabral aumenta o grau do seu desejo em fixar. E mais do que o virtuosismo do desenho, ou a captação do momento afortunado, encontro aqui uma espécie de processo em descobrir coisas, acima de tudo a sua própria capacidade de concentração e desenho, de relacionamento humano com os outros, e a semi-timidez em encontrar uma forma de a tornar acessível a nós, leitores e espectadores.
Existem muitos cadernos de viagem e de campo e diários gráficos... Ricardo Cabral tem a felicidade de encontrar uma forma de os publicar com qualidade e visibilidade. Não há que fazer hierarquias internas aos trabalhos, mas sim dos esforços editoriais, que ainda pecam, entre nós, pela timidez. Fosse esta uma família que crescesse...
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Neste livro que nasce de um conjunto de cadernos de viagem de Ricardo Cabral, a chave encontra-se talvez na página 124, onde o autor apontou o seguinte: “... a Cúpula da Rocha – que não está realmente ali mas que eu forço para aparecer no desenho...”. A palavra-chave está em forçar, isto é, o exercício de um esforço transformador sobre a paisagem, a alteração desta, a qual está à partida totalmente fora do alcance da manipulação de um só homem (excepto os casos da landart, claro está), através de um instrumento que, bem pelo contrário, poderá estar sob o total domínio do seu criador, a saber, o desenho.
Em Cadernos de Viagem, editado por Eduardo Salavisa, recordar-se-ão da história de Mário Bismarck, em que este, quando desenhava num templo do Egipto, foi interpelado por um guarda que o proibiu de desenhar. Num diálogo “por gestos”, o pintor foi informado que poderia fotografar e até filmar, mas não desenhar. Ora esse guarda revela uma inteligência arguta (aliás, Bismarck afirma mesmo que “daria um excelente professor de Desenho!”, pois sabe que o desenho permite que se pense mais além da mera angariação dos dados.
A fotografia, sabemo-lo com Vilém Flusser, pode ser vista como um princípio de “automação estúpida”, reduzindo-se os aparelhos a uma “caixa negra” e o fotógrafo a um “funcionário”, isto é, quando quem fotografa apenas se pauta em relação ao parelho, trabalha (ou “brinca”, nas palavras de Flusser) no interior das suas limitações técnicas e políticas. Outro pensador da fotografia, Henri Van Lier, faz-nos encontrar o equilíbrio próprio dessa linguagem entre a imparcialidade (a captação automática de fotões em papel químico-óptico) e a indexação do gesto (todas as opções possíveis, a contextualização, a focalização). A fotografia não pretende devolver a realidade (“acontecimentos e objectos”) mas um real (“processos e continuidades”). O desenho é igualmente um processo, mas algo que parte de uma continuidade mais recuada, mais próxima do objecto (é preciso contorná-lo, como a jovem de Corinto ao seu amante) e, ao mesmo tempo, mais afastada (não há fotões reais sobre os objectos, mas a promessa de um afastamento posterior).
A opção, hoje, pelo retorno ao caderno de desenho em detrimento do aparelho fotográfico, revela então um processo de correcção dessa visão automática “pobre”, “repetente”, introduzindo-se um qualquer grau de individualidade e voz própria. O desenho, enquanto instrumento de conhecimento, é algo de muito antigo, algo que encontrou em Leonardo o ápice da sua completude e sofreguidão, e que tem tido ao longo dos séculos da criação humana os seus cultores. Ricardo Cabral não é turista em Israel (não o é apenas, pelo menos), e poderíamos mesmo argumentar que não vemos nestes cadernos a Israel passível de uma mediação supostamente objectiva – se é que isso é possível com algum lugar, mas temo que Israel o seja menos ainda – mas a Israel de Ricardo Cabral (tal como há um Fuji de Hokusai, uma Berlim de Grosz, uma Londres de Geoffrey Fletcher ou de Francis Marshall, uma Nova Iorque de Vasco Colombo). Através dos seus momentos calmos, Cabral desenhou esta Israel, as suas várias cidades, os seus cantos menos teatrais, os lugares mais confortáveis e reais do artista, para que a pudesse conhecer de um modo outro, e que depois nos pudesse devolver (um desenho, tal como uma fotografia, uma frase, é sempre feito para alguém, para o futuro, é sempre uma esperança de partilha, apesar da frase de Manuel San Payo destacada no post anterior).
Quanto aos desenhos em si, participam de um território misto. Ao acompanhar alguns dos desenhos que iam sendo expostos no blog do autor, e o processo de trabalho a que se entregava (vejam aqui), notar-se-á que a procura de Cabral não se cinge à disciplina do desenho, mas ao seu cruzamento com a fotografia onde esta permite uma aproximação mais naturalista das cores. O abdicar de uma maior expressividade através de outras técnicas de cor (como as aguarelas ou as ecolines), o facto de tomar decisões de alteração ora do desenho original ora da paisagem efectiva, a opção em representar algumas vistas em “olho de peixe”, a inclusão de pequenos pormenores de produção (o seu próprio reflexo em superfícies, as páginas sob aquela visível, um estranho equilíbrio entre pormenores quase hiperrealistas e outros moldados por aproximação, uma franca opção por abandonar a figuração humana “mangaizada” de Evereste por uma outra maneira que experimenta em desenhos, inclusive os enormes painéis que expôs na galeria Corrente d’Arte), fazem deste livro um caso de estudo das fronteiras da ilustração, do desenho, do gesto gráfico, e até mesmo da fotografia, muito profícuo.
Em termos de exemplo, vejam-se as páginas 148-149 e 150-151. É impossível crer que, mesmo não tomando em consideração a cor, estes desenhos tenham sido feitos nos momentos que retratam, tão curto intervalo; terá sido um apontamento estenográfico posteriormente esculpido?, duas fotografias desenhadas?, um só desenho desdobrado? Questões que apenas poderíamos perguntar directamente ao autor, mas que se torna mais interessante colocar ao próprio livro, e esperar que a sua leitura nos desvende as várias respostas. Um outro exemplo, páginas 156-157. Fala-se de “uma menina brinca junta ao abrigo”. Vemos três. Não, vemos uma, em três momentos e acções diferentes. De novo as questões surgem, e com o desenho, as respostas fluem também. Há apenas um momento em que a especificidade do espaço físico do caderno de desenho faz explodir a concentração representacional: nas páginas 208-209 o autor desenhava a paisagem urbana em frente a uma esplanada, “mas não acabo... já não é a rua que me interessa. São as pessoas que passam (...) a vida que aqui há”. É sempre essa vida “que aqui há” que está presente nos desenhos de Ricardo Cabral (e não uma reportagem, uma construção coesa de um qualquer discurso regrado), mas este é o único momento em que se instala a total liberdade da qualidade de palimpsesto do caderno (para empregar um termo previsto no catálogo referido atrás). Todavia, como vemos, as opções de Cabral pautam-se por um qualquer grau de naturalismo.
Há que nos remetermos aqui para as questões dos textos, dos pequenos e breves comentários do autor em relação ao que se vê representado, quase sempre num tempo presente, criando-se um equilíbrio entre distância e presença. Poder-se-ia ainda acrescentar que se trata de um discurso a-politizado, uma vez que não há quaisquer comentários em relação à situação política de Israel (apesar de se anotar um susto de uma bomba, a protecção nos abrigos, a presença dos militares, uma fronteira...), que mais suscitaria interesse à partida, de uma certa perspectiva. No entanto, poderemos ver aí mesmo um posicionamento, de resto inevitável, nesses mesmos palcos. As relações de Ricardo Cabral com os seus interlocutores locais parece ser o da amizade somente, não há diálogos transcritos, não adivinhamos tensões de qualquer espécie, tertemunhamos até uma aparente bonomia, uma serenidade, até mesmo uma banalidade das vistas.
São esses mesmos momentos, descomplexados, aqueles que mais nos conquistam em termos pessoas. As imagens dos interiores, aquelas “sem acção”, sem até personagens... são essas as que mais revelam não o mero aborrecimento pelo banal e comezinho, mas sim os momentos em que o desenho de Cabral leva mais tempo a contornar os objectos, a apalpá-los e moldá-los com linhas e sombras. A vista de um bule de chá eléctrico em primeiro plano, do que se esconde por entre um beco, os restos de uma refeição, são bem mais eficientes nessa transmissão do que os retratos das pessoas que passam, mais ou menos rapidamente, na “vida retratada” destes cadernos (recordando-nos, de um modo estranho, as “paisagens” de Shinji Kimura.
O livro de Ricardo Cabral não participa, a meu ver, daqueles interesses peculiares que podem ocorrer nos diários gráficos de pintores ou artistas visuais de outras disciplinas. Isto é, em que a aguarela, a trama do lápis, do carvão, da grafite ou da sanguínea exploram as suas próprias capacidades expressivas ou aquele grau de simbiose que se torna possível com o gesto do artista. É inevitável que, tal como outros artistas de banda desenhada que têm cadernos publicados (Baudoin, Loustal, Dupuy e Berbérian, Gallardo, Joaquin López Cruces, Crumb, Kuper), se procurem afinidades entre uma actividade e outra (contar histórias, procurar elos narrativos, dar a ver a expressão das “personagens”, treinar uma maneira de desenhar, etc.). O cruzamento com a fotografia de Cabral aumenta o grau do seu desejo em fixar. E mais do que o virtuosismo do desenho, ou a captação do momento afortunado, encontro aqui uma espécie de processo em descobrir coisas, acima de tudo a sua própria capacidade de concentração e desenho, de relacionamento humano com os outros, e a semi-timidez em encontrar uma forma de a tornar acessível a nós, leitores e espectadores.
Existem muitos cadernos de viagem e de campo e diários gráficos... Ricardo Cabral tem a felicidade de encontrar uma forma de os publicar com qualidade e visibilidade. Não há que fazer hierarquias internas aos trabalhos, mas sim dos esforços editoriais, que ainda pecam, entre nós, pela timidez. Fosse esta uma família que crescesse...
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Diários Gráficos. Desenhos em Cadernos. (Centro Cultural de Lagos/Galeria Municipal de Torres Vedras)
Serve o presente e brevíssimo post para dar conhecimento da disponibilidade do catálogo desta exposição comissariada por Eduardo Salavisa e Carlos Mendes em torno de um objecto gráfico específico, os diários gráficos. A exposição dá continuidade e forma expositiva ao gesto a que Salavisa havia presidido com Diários de Viagem. Reunem-se no espaço 300 cadernos cedidos pelos seus cultores, apresentam-se painéis aumentados de algumas das suas páginas, publicam-se breves frases, verdadeiros programas (recuperadas, a sua maioria, do livro).
O catálogo organiza-se de um modo mais sistemático do que o livro (bem mais livre, e não faço aqui qualquer hierarquização dessas opções), se bem que falando-se de menos autores, abrindo-se terrenos mais circunscritos: os “desenhadores quotidianos”, em que impera a imprevisibilidade aliada à visibilidade aumentada, a experimentação ao exercício, o ritual à descontração; os “viajantes/investigadores e desenhadores científicos”, em cujo trabalho se encontra uma aliança mais imediata entre uma disciplina programada e regrada e um objectivo claro e directo, mas não se impedindo a intervenção de escolhas intempestivas; os “cadernos de trabalho e livros de artista”, os quais, quer enquanto plataformas de preparação do que está por vir quer enquanto repositório final do objecto a mostrar, são em si mesmo processos de abertura e visibilidade do modo de funcionamento intelectual e intuitivo (muitas vezes em novelo) dos artistas implicados.
Apresentada em Lagos, seguirá depois para Torres Vedras e adivinha-se a sua continuidade. É sempre mais uma lição num território que se adivinha profícuo, articulável com muitas outras esferas de criação e de pensamento, flutuante enquanto imagem, e insuperável enquanto amplificador.
Nota: para mais informações, aconselho seguirem o blog de Eduardo Salavisa [cliquem em "Exposição em Lagos"], a quem agradeço a oferta do catálogo.
O catálogo organiza-se de um modo mais sistemático do que o livro (bem mais livre, e não faço aqui qualquer hierarquização dessas opções), se bem que falando-se de menos autores, abrindo-se terrenos mais circunscritos: os “desenhadores quotidianos”, em que impera a imprevisibilidade aliada à visibilidade aumentada, a experimentação ao exercício, o ritual à descontração; os “viajantes/investigadores e desenhadores científicos”, em cujo trabalho se encontra uma aliança mais imediata entre uma disciplina programada e regrada e um objectivo claro e directo, mas não se impedindo a intervenção de escolhas intempestivas; os “cadernos de trabalho e livros de artista”, os quais, quer enquanto plataformas de preparação do que está por vir quer enquanto repositório final do objecto a mostrar, são em si mesmo processos de abertura e visibilidade do modo de funcionamento intelectual e intuitivo (muitas vezes em novelo) dos artistas implicados.
Apresentada em Lagos, seguirá depois para Torres Vedras e adivinha-se a sua continuidade. É sempre mais uma lição num território que se adivinha profícuo, articulável com muitas outras esferas de criação e de pensamento, flutuante enquanto imagem, e insuperável enquanto amplificador.
Nota: para mais informações, aconselho seguirem o blog de Eduardo Salavisa [cliquem em "Exposição em Lagos"], a quem agradeço a oferta do catálogo.
20 de novembro de 2009
Alack Sinner, L’Intégrale (2 vols.). & Conversations. Carlos Sampayo e José Muñoz (Casterman)
A edição integral de todos os trabalhos relativos à personagem Alack Sinner, do escritor Carlos Sampayo e do desenhador José Muñoz, é ditada por várias linhas convergentes. O prémio de carreira/obra para Muñoz em Angoulême, a potencialização da recuperação da memória na banda desenhada, as novas imposições de mercado que pedem por novas formas de divulgação e fruição. Encontrar-se-á nesse conjunto de factores uma explicação parcial pela qual se optou pela reformatação dos álbuns ditos “clássicos” em algo mais aparentado ao livro literário. Se por um lado acreditamos que se deverá isso a uma imposição nova do domínio económico (o formato livro, “a graphic novel”, o “romance gráfico” possui um qualidade diferente de distruibuição e exposição nas livrarias), por outro pautará seguramente uma experiência de leitura diferente: do herdeiro do álbum de estampas coloridas (da Quentin, da Épinal) ou do livro engalanado do século XIX (os livros Hertzel em primeiríssimo lugar), prémio infantil, momento de divertimento, escape e espojamento no chão para ler e navegar, passa-se à experiência mais contida, íntima, da leitura silenciosa, do livro símbolo da idade adulta. O que se ganhará e o que se perderá nessas reformatações? Talvez seja cedo ainda para o responder. Esta leitura ganha uma dimensão acrescida pela publicação e leitura paralela do volume Conversations avec Muñoz et Sampayo, de Goffredo Fofi, que aprsenta alguns aspectos biográficos e do percurso académico e profissional dos autores, as suas cumplicidades, as suas vidas, as origens de Alack Sinner, os métodos de trabalho mas, acima de tudo, já que as conversas de Fofi jamais se desejam ver espartilhadas pela “bd”, procura-se dar a entender o que os três autores (Fofi não se reduz a um entrevistador, mas alguém que pensa) entendem do mundo em termos literários, políticos, sociais, filosóficos, tornando mais rica a apreensão de todo este conjunto.
Não obstante, se se ganha um determinado nível de conforto, simplicidade e imagem de conjunto com esta edição integral, por outro não se procura aqui a reescrita de uma linha coesa destes livros. Cada um dos episódios, das partes, dos álbuns originais mantém a sua autonomia (foi sendo a série publicada em episódios curtos no suplemento alterlinus da revista italiana Linus e em traduções francesas na Charlie Mensuel e depois na (A Suivre), entre 1975 e 2006), e não estamos perante um crescendo unificado ao longo destas 700 páginas, mas antes de núcleos de intensidades, um pulsar e um ritmo próprios. A opção dos autores em não apresentar uma simples disposição cronológica poderia levar a pensar num gesto mínimo de reescrita dos episódios sobre o detective, mas terá antes a ver com a possibilidade de compor (como na música) uma progressão de canções interligadas, do que de uma sinfonia coesa. O facto de não serem aqui incluídas as histórias derivadas da série principal (em americano, spin-offs), como Le Bar à Joe (na qual se encontra a magistral curta “Ce sympathique Mister Wilcox”) e Sophie Comics/Sophie Going South, não invalida todo o projecto, torna-o antes concentrado nessa reescrita unificada, ainda que livre.
Este conjunto faz-nos aperceber também de uma espécie de evolução interna à obra da dupla argentina, as torções a que foi sendo submetida. Tal como sucede quando lemos um só volume reunindo um trabalho que se espraia por vários anos (penso, a título de exemplos, em Hicksville de Dylan Horrocks e Box Office Poison de Alex Robinson), temos num só objecto um estilo que se vai alterando, figurações que se vão contornando de modos diferentes, apuramentos narrativos e políticos. Não será de surpreender que numa obra que se estende por quase trinta anos se verifiquem transformações radicais, no pleno sentido desta palavra. Digo-o porque se trata de facto das raízes em que se inscreve Alack Sinner. Aquilo que começara como uma série classicizante – isto é, desejando integrar uma “classe” pré-existente – do policial transformar-se-ia numa obra magna de expressão individual dos autores, abandonado os clichés moralistas e do status quo do “policial” para se revestir até mesmo de uma voz contra a mundividência norte-americana (sobretudo nas ruas relações internacionais, expressas em guerras movidas por interesses financeiros). O desenho de Muñoz e a escrita de Sampayo estabelecem, nos primeiros episódios, uma estratégia em todo análoga à dos modelos que seguiam, de Milton Caniff (visto por Pratt, mas recuando até Steve Canyon) e dos hard boiled. Histórias policiais detalhadas, em que a composição das páginas e das vinhetas são cheias e “simbólicas”, em que todos os objectos e pequenas acções devem concorrer para a construção psicológica das personagens (até parecem terem lido Eco sobre Canyon para depois aplicar a lição), a trama se centra no caso central, que é desvendado e resolvido no fim e, como qualquer romance policial que se preze, é menos o papel activo do detective que para isso concorre do que a força quase fatalista dos acontecimentos em torno do crime, a inexorabilidade do nexo e da moral. O próprio nome da personagem – que os autores explicam ser uma espécie de corruptela sobre a expressão “Hélas!, pecador” – quer fazer-se passar por um significado totalmente previsto, e o detectiva possa vir a ser o bode expiatório, aquele que carrega os pecados no mundo para que este se purgue deles. Um inocente que vai apagando os crimes, portanto, mas que fica manchado por eles, sem se tornar num criminoso ele mesmo.
Todavia, há uma tensão que está logo presente nas primeiras histórias e que promete ser um sendeiro percorrido até ao fim (ou sê-lo-á e afirmamo-lo em retrospectiva). Existem algumas vinhetas em que o herói é relegado para segundo plano, e surgem-nos todos aqueles elementos secundários que servem para compor o ambiente, a paisagem social, com um direito à cidadania do protagonismo (curiosamente, o melhor autor brasileiro do Zé Carioca, Renato Canini, fazia precisamente o mesmo): os becos, os “vadios” e “deliquentes”, e pequenas pistas que servem para o tal retrato político e urbano, desde os Black Panthers a referências ao Watergate, aos verões quentes e tensos da Nova Iorque dos anos 1970, a crise do petróleo de 73 e suas consequências, e muitos outros detalhes daquilo que se vai desprendendo de “mero policial” para se tornar um retábulo, no qual se ergue um gesto mais expressivo e que ausculta mais profundamente o homem Sinner. É mesmo essa atenção para com o social, com o marginal que vai ganhando maior presença e subtileza (veja-se o modo demasiado óbvio do tricot no primeiro caso, “L’Affaire Webster”, contrastanto com a subtileza da mosca-sintoma em “Constancio et Manolo”, e noutras histórias também, uma espécie de assinatura desdobrada). que pauta a idêntica transformação do traço de Muñoz e a escrita de Sampayo, ou melhor, a refabricação de Alack Sinner.
Nesse sentido, penso que estão muito patentes algumas influências do movimento Neue Sachlichkeit, sobretudo pelas figuras de Otto Dix, Karl Hubbuch e, claro está, Georg Grosz. Este último não é apenas citado por Muñoz nas conversas com Fofi, como tem o nome aplicado a uma das personagens em Alack Sinner e, acima de tudo o mais, tem uma presença constante na transformação do estilo gráfico de Muñoz. De Caniff a Grosz, o traço de Muñoz vai-se inflectindo por valores mais densos, contrastados, plásticos, maleáveis, tal como ocorrera em Breccia, professor do primeiro. Ambos passam a explorar nas suas Buenos Aires (veja-se Buscavidas), Paris e Nova Iorque as grotesqueries que Grosz havia retratado da sua Berlim. Os traços vão-se engroszando, se assim se pode dizer. Os pretos são “sombra absoluta”, os brancos “luz absoluta”, nas palavras do artista. O chiaroscuro ganha, com Muñoz, não apenas um novo cultor (inserindo-se numa linha que na banda desenhada tem Caniff num dos princípios), mas uma nova presença (com a qual irmanaria, de uma forma acabada e individualista, André Lemos, por exemplo). Até mesmo as onomatopeias ou os fumos vão sofrendo alterações radicais, e de meros complementos informativos e de ambientes passam a ganhar uma cidadania de representação gráfica quase autónoma, quase se tornam corpos activos num mesmo plano que as personagens... O espaço plástico – nessa ideia de relação entre primeiro plano e fundo, ambiente social e herói, formas narrativas clássicas e experimentações expressivas – vai sendo paulatinamente invadido por figuras alheias à economia narrativa, tornando-o mais significativo para o exterior, criando-se uma rede de referências e desdobramentos culturais. Não é apenas a presença de nomes sonantes ou sugestivos em certas personagens (Grosz, Cagney, a negra Enfer, Aguirre, Parker, recordando ou, melhor, antecipando o jogo a que José Carlos Fernandes se entregaria igualmente de uma forma hiperbólica; nomes que também se repercutem nos reclames, nos posters, em dezenas de pormenores) mas também, numa primeira instância, a passagem de personagens de outras bandas desenhadas, estabelecendo-se assim uma espécie de eco colectivo (Corto Maltese, Dick Tracy, Batman, e Popeye?), mas seguindo-se a presença de figurações provindas das artes visuais (os episódios sobre Guernica abrem-se naturalmente às figuras do famoso quadro de Picasso). Outros ecos atravessam outros territórios, como cinema, claro... Numa cena passada num drive-in, apercebemo-nos da famosa cena do filme Chinatown de Polanski, em que realizador, no papel de fuinha, corta o nariz a Jack Nicholson. É curioso que se cite precisamente um filme que revisita o noir de um modo pós-moderno. Goffredo Fofi, no seu livro, aponta como Muñoz e Sampayo são contemporâneos de Polanski, mas também de Godard, de Tarkovsi, de Glauber Rocha, apontando para uma nova forma de entender a expressão artística, a maneira como a tradição se integra nas novas linguagens. Cinge-se ao cinema, por razões óbvias e circunstanciais, mas abre aí um território possível de interrogação (mais do que de investigação). Porém, acima de todas estas instâncias de sobreposições de referências, aquela que é a mais acabada, radical e pós-moderna é a presença dos próprios autores na sua história.
Os autores fazem-se presentes em Alack Sinner das mais variadas maneiras, executando estratégias de auto-representação muito díspares, reforçando, a um só tempo, a sua assinatura autoral, a paternidade e a protecção do protagonista, a amplificação dos retratos sócio-culturais a que estas narrativas se prestam, de um modo não-secundário, como vimos, mas intrinsecamente estrutural (ou ambiental) e a ainda a dimensão meta-referencial que cada novo passo e presença no seio da narrativa sassume. O primeiro grande momento dessa dimensão ocorre em “La vie n’est pas une bande dessinée, baby”, com o encontro dos autores eles-próprios com a personagem ela-mesma, em que dois autores de banda desenhada argentinos se encontram em Nova Iorque e seguem Alack Sinner para terem material para as suas histórias sobre um detective do mesmo nome. O jogo de espelhos diverte Alack, os autores argentinos não revelam em nenhum momento serem aqueles que controlam a história que lemos, mas a complicação pós-moderna está lá, tal como havia sido prevista já no Quixote de Cervantes e numa bateria de autores contemporâneos (não se trata tão-somente da auto-representação dos próprios autores nas suas próprias bandas desenhadas, como acontece até mesmo com Goscinny e Uderzo, mas de uma “destruição” das camadas que separam a ontologia ficcional e a realidade consensual a que pertencemos: Grant Morrison e companhia fá-lo-ia mais tarde, de um modo mais explícito, em Animal Man). Mas a presença dos autores multiplicar-se-á por cameos mais ou menos divertidos e subtis, como, por exemplo, em “Constancio et Manolo”, a passagem fugaz de ambos à entrada do peeping show (vol. 1, pg. 262), ou os sem-abrigo que oferecem a Alack de beber em “Au fond de l’Hudson” (vol. 2, pg. 35). Ou ainda os fantoches que encerram o espectáculo qe transita do primeiro para o segundo volume desta edição, ou ainda aquele momento em que um sucedâneo de Muñoz, um desenhador chamado Martinez, atravessa o caminho de Alack Sinner, e que a acção depois nos obriga a seguir, em detrimento do protagonista, que adormece na viagem de autocarro. Quando desperta, a história de Martinez chega ao fim, e ficamos na dúvida se foi “real” ou não. Essa história paralela, “Pour quelques dessins...”, é uma resposta de Muñoz ao famoso caso de plágio de que foi alvo por Keith Giffen, nos anos 1980. Martinez quer pedir explicações e satisfações ao autor norte-americano K. K. Kitten, de grande fama e sucesso, a razão da cópia das suas pranchas, terminando tudo num caso de polícia. O caso real deve-se a um trabalho de Giffen cujas vinhetas seguiam a par e passo o de Muñoz.
Não obstante esta intervenção directa dos próprios autores, ou seus avatares, no seio do universo ficcional que criaram, o peso dessa presença não é muito diverso daquele que é cumprido por toda uma série de outras personagens, secundárias se não até mesmo de planos inferiores em termos de exposição e centralidade, mas que, num dado momento, assumem o centro das atenções e estruturações da banda desenhada em curso. Esse grau de alteração de graus de atenção vai-se tornando cada vez mais complicado e estratificado, até chegarmos, nalgumas histórias, a momentos em que poderíamos falar de caos narrativo, em que as frases das personagens são interrompidas, em que não duas vinhetas seguidas compondo uma sequência linear, mas antes dispersando-se por vários locais, perspectivas, momentos, incorrendo numa polifonia absoluta cujo propósito não é a harmonia de um cânone ou de um moteto, mas antes de experiências contemporâneas dissonantes. Para dar a ver e relatar o mundo, onde está presente “a antropologia narrativa de investigação contemporânea politizada, com os seus matizes éticos e sentimentais necessários, com a cidade fascinante e impiedosa, as alianças entre políticos moralmente imbecis e criminosos variados, mas o coração não se rende...” (Muñoz, respondendo a Fofi, pg. 33).
Todavia, uma dissonância que serve para transmitir um outro tipo de harmonia, que tem a ver com o retrato da sociedade possível fazer nestas páginas e que acaba por se tornar a principal personagem das últimas passadas de Alack Sinner.
No fundo, é como se, na contínua estrutura de todo o Alack Sinner, observássemos o primeiro passo alquímico da dissolução (solve, putrefactio, nigredo) sem que fosse possível atingir os passos subsequentes que permitissem a nova união, a purificação, a coagulação numa imagem ou sentido único e límpido. O mundo não o permite. Essa dissolução é feita ao nível da estrutura usual da banda desenhada, como vimos, mas também ao nível da atenção unificada do leitor, obrigatoriamente estilhaçada pelos fragmentos em voo livre (a imagem alquímica ganha contornos exactos em “Nord-Américains”, mas refiro-me ao acto estratificado em toda a obra).
Há um momento (vol. 1, pg. 212) em que Alack diz que a sua profissão é escutar os outros. Como um psicólogo ou um padre. E todos eles servem em nome de uma justiça. Enquanto as histórias contadas aos primeiros se dirige ao próprio contador, à resolução das suas crises internas, fantasmas portáteis, e aquelas contadas aos segundos a Deus, as que se contam aos detectives servem para partilhar essa mesma história, pois pelas acções do detective passa a integrar essa narrativa (a qual depois nos é devolvida na ficção). Quando Sinner diz isto não é detective (a licença foi suspensa) e sobrevive como taxista, que é uma dessas outras profissões de escutadores (como se depreende destoutro livro), conjuntamente com os barmen, por exemplo. Histórias que não servem para “cair em saco roto”. São desculpas para criar ficções. E esse é o gesto central e absoluto de Muñoz e Sampayo (cuja união criativa também se espraiou noutros títulos, de Billie Holiday a Carlos Gardel, de Sudor Sudaca a Le Livre). Em “la fin d’un voyage”, vemos numa vinheta uma casa numa paisagem nocturna, a lua cheia por cima; dois balões saem da casa, Alack (penso que é Alack, mas poderia ser Sophie) dizendo “que lua!”, e Sophie (penso que é Sophie, mas poderia ser Alack) respondendo “uma vez por mês”. Que devemos pensar desta frase? Significará um remoque derisório que nos impede de aceitar o momento único (o amor, a beleza) sem que recorramos ao distanciamento irónico? Ou será antes uma uma nota esperançosa que permite descobrir a possibilidade do retorno mesmo dos momentos únicos, aceitando de bom grado a perenidade dessas felicidades?
Esse jogo de reequilíbrio permanente é aquele previsto nos sub-títulos destes volumes antológicos, um jogo entre “inocência” e “desilusão”. Estes sub-títulos, na verdade, não fazem grande sentido, ou devem ser vistos de um modo paradoxal. Apesar de no primeiro volume existirem instâncias de analepses à infância e juventude de Alack, em nenhuma dessas ocasiões nos e dada a ver qualquer “inocência”. Mais, se inocência existe, são apenas os últimos resquícios dela que testemunhamos a serem levados por uma qualquer acção de violência, as mais das vezes social, espiritual, interna à vida do protagonista. Se entendermos essa inocência uma inocência pessoal, ela é rapidamente apagada. Se a quiseremos entender como algo que abranja todas as histórias, as personagens, a cidade de Nova Iorque, então é antes o “desencantamento” que se encontra disseminado por todos os elementos. Não há uma total clareza quanto à substância dos acontecimentos e da hierarquia dos valores envolvidos, e talvez seja isso mesmo o que constrói o interesse humano de todo o Alack Sinner. Contudo, podemos ver o paradoxo de outra forma. As histórias partiram de “casos” isolados, concisos, unívocos, resolúveis, nítidos, externos à personagem mas através deles moldados numa narrativa, para chegar a polifonias ou relatos desregrados em termos das sensações de Sinner. O único momento de retorno à trama detectivesca, depois do início desse movimento, é quando se envolve uma narrativa policial em torno de Cheryl, a sua filha com Enfer, aprofundando a dimensão humana de Sinner, o qual, como as personagens de Frank King, vai envelhecendo à medida que o tempo real dos livros passa. E se num primeiro momento, em “Rencontres”, se fazem concentrar todas as personagens da vida de Sinner, ma espécie de balanço, é no grau máximo do paroxismo final, pontuado pelo 11 de Setembro de 2001, “L’Affaire USA”, que Sinner consegue um momento de paz verdadeira – bem diverso daquela paz que advém dos encontros sexuais ou amorosos, não necessariamente interligados nem por essa ordem –, brincando com a neta num jardim, livre do hábito tabagista, com força para o jogging, quase patética, enquanto por detrás dele ainda se urdem as conspirações, mas para as quais Sinner já não lança pontes, das quais se libertou. Talvez seja nesse momento então que resida a inocência prevista no sub-título, e não seja uma inocência “perdida” mas antes “conquistada”.
Então, talvez, talvez, a fase de coagula seja atingida no fim, pelo menos nesta magnum opus nigrum - indubitável neste caso - agora apresentada como uma unidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos três livros.
Não obstante, se se ganha um determinado nível de conforto, simplicidade e imagem de conjunto com esta edição integral, por outro não se procura aqui a reescrita de uma linha coesa destes livros. Cada um dos episódios, das partes, dos álbuns originais mantém a sua autonomia (foi sendo a série publicada em episódios curtos no suplemento alterlinus da revista italiana Linus e em traduções francesas na Charlie Mensuel e depois na (A Suivre), entre 1975 e 2006), e não estamos perante um crescendo unificado ao longo destas 700 páginas, mas antes de núcleos de intensidades, um pulsar e um ritmo próprios. A opção dos autores em não apresentar uma simples disposição cronológica poderia levar a pensar num gesto mínimo de reescrita dos episódios sobre o detective, mas terá antes a ver com a possibilidade de compor (como na música) uma progressão de canções interligadas, do que de uma sinfonia coesa. O facto de não serem aqui incluídas as histórias derivadas da série principal (em americano, spin-offs), como Le Bar à Joe (na qual se encontra a magistral curta “Ce sympathique Mister Wilcox”) e Sophie Comics/Sophie Going South, não invalida todo o projecto, torna-o antes concentrado nessa reescrita unificada, ainda que livre.
Este conjunto faz-nos aperceber também de uma espécie de evolução interna à obra da dupla argentina, as torções a que foi sendo submetida. Tal como sucede quando lemos um só volume reunindo um trabalho que se espraia por vários anos (penso, a título de exemplos, em Hicksville de Dylan Horrocks e Box Office Poison de Alex Robinson), temos num só objecto um estilo que se vai alterando, figurações que se vão contornando de modos diferentes, apuramentos narrativos e políticos. Não será de surpreender que numa obra que se estende por quase trinta anos se verifiquem transformações radicais, no pleno sentido desta palavra. Digo-o porque se trata de facto das raízes em que se inscreve Alack Sinner. Aquilo que começara como uma série classicizante – isto é, desejando integrar uma “classe” pré-existente – do policial transformar-se-ia numa obra magna de expressão individual dos autores, abandonado os clichés moralistas e do status quo do “policial” para se revestir até mesmo de uma voz contra a mundividência norte-americana (sobretudo nas ruas relações internacionais, expressas em guerras movidas por interesses financeiros). O desenho de Muñoz e a escrita de Sampayo estabelecem, nos primeiros episódios, uma estratégia em todo análoga à dos modelos que seguiam, de Milton Caniff (visto por Pratt, mas recuando até Steve Canyon) e dos hard boiled. Histórias policiais detalhadas, em que a composição das páginas e das vinhetas são cheias e “simbólicas”, em que todos os objectos e pequenas acções devem concorrer para a construção psicológica das personagens (até parecem terem lido Eco sobre Canyon para depois aplicar a lição), a trama se centra no caso central, que é desvendado e resolvido no fim e, como qualquer romance policial que se preze, é menos o papel activo do detective que para isso concorre do que a força quase fatalista dos acontecimentos em torno do crime, a inexorabilidade do nexo e da moral. O próprio nome da personagem – que os autores explicam ser uma espécie de corruptela sobre a expressão “Hélas!, pecador” – quer fazer-se passar por um significado totalmente previsto, e o detectiva possa vir a ser o bode expiatório, aquele que carrega os pecados no mundo para que este se purgue deles. Um inocente que vai apagando os crimes, portanto, mas que fica manchado por eles, sem se tornar num criminoso ele mesmo.
Todavia, há uma tensão que está logo presente nas primeiras histórias e que promete ser um sendeiro percorrido até ao fim (ou sê-lo-á e afirmamo-lo em retrospectiva). Existem algumas vinhetas em que o herói é relegado para segundo plano, e surgem-nos todos aqueles elementos secundários que servem para compor o ambiente, a paisagem social, com um direito à cidadania do protagonismo (curiosamente, o melhor autor brasileiro do Zé Carioca, Renato Canini, fazia precisamente o mesmo): os becos, os “vadios” e “deliquentes”, e pequenas pistas que servem para o tal retrato político e urbano, desde os Black Panthers a referências ao Watergate, aos verões quentes e tensos da Nova Iorque dos anos 1970, a crise do petróleo de 73 e suas consequências, e muitos outros detalhes daquilo que se vai desprendendo de “mero policial” para se tornar um retábulo, no qual se ergue um gesto mais expressivo e que ausculta mais profundamente o homem Sinner. É mesmo essa atenção para com o social, com o marginal que vai ganhando maior presença e subtileza (veja-se o modo demasiado óbvio do tricot no primeiro caso, “L’Affaire Webster”, contrastanto com a subtileza da mosca-sintoma em “Constancio et Manolo”, e noutras histórias também, uma espécie de assinatura desdobrada). que pauta a idêntica transformação do traço de Muñoz e a escrita de Sampayo, ou melhor, a refabricação de Alack Sinner.
Nesse sentido, penso que estão muito patentes algumas influências do movimento Neue Sachlichkeit, sobretudo pelas figuras de Otto Dix, Karl Hubbuch e, claro está, Georg Grosz. Este último não é apenas citado por Muñoz nas conversas com Fofi, como tem o nome aplicado a uma das personagens em Alack Sinner e, acima de tudo o mais, tem uma presença constante na transformação do estilo gráfico de Muñoz. De Caniff a Grosz, o traço de Muñoz vai-se inflectindo por valores mais densos, contrastados, plásticos, maleáveis, tal como ocorrera em Breccia, professor do primeiro. Ambos passam a explorar nas suas Buenos Aires (veja-se Buscavidas), Paris e Nova Iorque as grotesqueries que Grosz havia retratado da sua Berlim. Os traços vão-se engroszando, se assim se pode dizer. Os pretos são “sombra absoluta”, os brancos “luz absoluta”, nas palavras do artista. O chiaroscuro ganha, com Muñoz, não apenas um novo cultor (inserindo-se numa linha que na banda desenhada tem Caniff num dos princípios), mas uma nova presença (com a qual irmanaria, de uma forma acabada e individualista, André Lemos, por exemplo). Até mesmo as onomatopeias ou os fumos vão sofrendo alterações radicais, e de meros complementos informativos e de ambientes passam a ganhar uma cidadania de representação gráfica quase autónoma, quase se tornam corpos activos num mesmo plano que as personagens... O espaço plástico – nessa ideia de relação entre primeiro plano e fundo, ambiente social e herói, formas narrativas clássicas e experimentações expressivas – vai sendo paulatinamente invadido por figuras alheias à economia narrativa, tornando-o mais significativo para o exterior, criando-se uma rede de referências e desdobramentos culturais. Não é apenas a presença de nomes sonantes ou sugestivos em certas personagens (Grosz, Cagney, a negra Enfer, Aguirre, Parker, recordando ou, melhor, antecipando o jogo a que José Carlos Fernandes se entregaria igualmente de uma forma hiperbólica; nomes que também se repercutem nos reclames, nos posters, em dezenas de pormenores) mas também, numa primeira instância, a passagem de personagens de outras bandas desenhadas, estabelecendo-se assim uma espécie de eco colectivo (Corto Maltese, Dick Tracy, Batman, e Popeye?), mas seguindo-se a presença de figurações provindas das artes visuais (os episódios sobre Guernica abrem-se naturalmente às figuras do famoso quadro de Picasso). Outros ecos atravessam outros territórios, como cinema, claro... Numa cena passada num drive-in, apercebemo-nos da famosa cena do filme Chinatown de Polanski, em que realizador, no papel de fuinha, corta o nariz a Jack Nicholson. É curioso que se cite precisamente um filme que revisita o noir de um modo pós-moderno. Goffredo Fofi, no seu livro, aponta como Muñoz e Sampayo são contemporâneos de Polanski, mas também de Godard, de Tarkovsi, de Glauber Rocha, apontando para uma nova forma de entender a expressão artística, a maneira como a tradição se integra nas novas linguagens. Cinge-se ao cinema, por razões óbvias e circunstanciais, mas abre aí um território possível de interrogação (mais do que de investigação). Porém, acima de todas estas instâncias de sobreposições de referências, aquela que é a mais acabada, radical e pós-moderna é a presença dos próprios autores na sua história.
Os autores fazem-se presentes em Alack Sinner das mais variadas maneiras, executando estratégias de auto-representação muito díspares, reforçando, a um só tempo, a sua assinatura autoral, a paternidade e a protecção do protagonista, a amplificação dos retratos sócio-culturais a que estas narrativas se prestam, de um modo não-secundário, como vimos, mas intrinsecamente estrutural (ou ambiental) e a ainda a dimensão meta-referencial que cada novo passo e presença no seio da narrativa sassume. O primeiro grande momento dessa dimensão ocorre em “La vie n’est pas une bande dessinée, baby”, com o encontro dos autores eles-próprios com a personagem ela-mesma, em que dois autores de banda desenhada argentinos se encontram em Nova Iorque e seguem Alack Sinner para terem material para as suas histórias sobre um detective do mesmo nome. O jogo de espelhos diverte Alack, os autores argentinos não revelam em nenhum momento serem aqueles que controlam a história que lemos, mas a complicação pós-moderna está lá, tal como havia sido prevista já no Quixote de Cervantes e numa bateria de autores contemporâneos (não se trata tão-somente da auto-representação dos próprios autores nas suas próprias bandas desenhadas, como acontece até mesmo com Goscinny e Uderzo, mas de uma “destruição” das camadas que separam a ontologia ficcional e a realidade consensual a que pertencemos: Grant Morrison e companhia fá-lo-ia mais tarde, de um modo mais explícito, em Animal Man). Mas a presença dos autores multiplicar-se-á por cameos mais ou menos divertidos e subtis, como, por exemplo, em “Constancio et Manolo”, a passagem fugaz de ambos à entrada do peeping show (vol. 1, pg. 262), ou os sem-abrigo que oferecem a Alack de beber em “Au fond de l’Hudson” (vol. 2, pg. 35). Ou ainda os fantoches que encerram o espectáculo qe transita do primeiro para o segundo volume desta edição, ou ainda aquele momento em que um sucedâneo de Muñoz, um desenhador chamado Martinez, atravessa o caminho de Alack Sinner, e que a acção depois nos obriga a seguir, em detrimento do protagonista, que adormece na viagem de autocarro. Quando desperta, a história de Martinez chega ao fim, e ficamos na dúvida se foi “real” ou não. Essa história paralela, “Pour quelques dessins...”, é uma resposta de Muñoz ao famoso caso de plágio de que foi alvo por Keith Giffen, nos anos 1980. Martinez quer pedir explicações e satisfações ao autor norte-americano K. K. Kitten, de grande fama e sucesso, a razão da cópia das suas pranchas, terminando tudo num caso de polícia. O caso real deve-se a um trabalho de Giffen cujas vinhetas seguiam a par e passo o de Muñoz.
Não obstante esta intervenção directa dos próprios autores, ou seus avatares, no seio do universo ficcional que criaram, o peso dessa presença não é muito diverso daquele que é cumprido por toda uma série de outras personagens, secundárias se não até mesmo de planos inferiores em termos de exposição e centralidade, mas que, num dado momento, assumem o centro das atenções e estruturações da banda desenhada em curso. Esse grau de alteração de graus de atenção vai-se tornando cada vez mais complicado e estratificado, até chegarmos, nalgumas histórias, a momentos em que poderíamos falar de caos narrativo, em que as frases das personagens são interrompidas, em que não duas vinhetas seguidas compondo uma sequência linear, mas antes dispersando-se por vários locais, perspectivas, momentos, incorrendo numa polifonia absoluta cujo propósito não é a harmonia de um cânone ou de um moteto, mas antes de experiências contemporâneas dissonantes. Para dar a ver e relatar o mundo, onde está presente “a antropologia narrativa de investigação contemporânea politizada, com os seus matizes éticos e sentimentais necessários, com a cidade fascinante e impiedosa, as alianças entre políticos moralmente imbecis e criminosos variados, mas o coração não se rende...” (Muñoz, respondendo a Fofi, pg. 33).
Todavia, uma dissonância que serve para transmitir um outro tipo de harmonia, que tem a ver com o retrato da sociedade possível fazer nestas páginas e que acaba por se tornar a principal personagem das últimas passadas de Alack Sinner.
No fundo, é como se, na contínua estrutura de todo o Alack Sinner, observássemos o primeiro passo alquímico da dissolução (solve, putrefactio, nigredo) sem que fosse possível atingir os passos subsequentes que permitissem a nova união, a purificação, a coagulação numa imagem ou sentido único e límpido. O mundo não o permite. Essa dissolução é feita ao nível da estrutura usual da banda desenhada, como vimos, mas também ao nível da atenção unificada do leitor, obrigatoriamente estilhaçada pelos fragmentos em voo livre (a imagem alquímica ganha contornos exactos em “Nord-Américains”, mas refiro-me ao acto estratificado em toda a obra).
Há um momento (vol. 1, pg. 212) em que Alack diz que a sua profissão é escutar os outros. Como um psicólogo ou um padre. E todos eles servem em nome de uma justiça. Enquanto as histórias contadas aos primeiros se dirige ao próprio contador, à resolução das suas crises internas, fantasmas portáteis, e aquelas contadas aos segundos a Deus, as que se contam aos detectives servem para partilhar essa mesma história, pois pelas acções do detective passa a integrar essa narrativa (a qual depois nos é devolvida na ficção). Quando Sinner diz isto não é detective (a licença foi suspensa) e sobrevive como taxista, que é uma dessas outras profissões de escutadores (como se depreende destoutro livro), conjuntamente com os barmen, por exemplo. Histórias que não servem para “cair em saco roto”. São desculpas para criar ficções. E esse é o gesto central e absoluto de Muñoz e Sampayo (cuja união criativa também se espraiou noutros títulos, de Billie Holiday a Carlos Gardel, de Sudor Sudaca a Le Livre). Em “la fin d’un voyage”, vemos numa vinheta uma casa numa paisagem nocturna, a lua cheia por cima; dois balões saem da casa, Alack (penso que é Alack, mas poderia ser Sophie) dizendo “que lua!”, e Sophie (penso que é Sophie, mas poderia ser Alack) respondendo “uma vez por mês”. Que devemos pensar desta frase? Significará um remoque derisório que nos impede de aceitar o momento único (o amor, a beleza) sem que recorramos ao distanciamento irónico? Ou será antes uma uma nota esperançosa que permite descobrir a possibilidade do retorno mesmo dos momentos únicos, aceitando de bom grado a perenidade dessas felicidades?
Esse jogo de reequilíbrio permanente é aquele previsto nos sub-títulos destes volumes antológicos, um jogo entre “inocência” e “desilusão”. Estes sub-títulos, na verdade, não fazem grande sentido, ou devem ser vistos de um modo paradoxal. Apesar de no primeiro volume existirem instâncias de analepses à infância e juventude de Alack, em nenhuma dessas ocasiões nos e dada a ver qualquer “inocência”. Mais, se inocência existe, são apenas os últimos resquícios dela que testemunhamos a serem levados por uma qualquer acção de violência, as mais das vezes social, espiritual, interna à vida do protagonista. Se entendermos essa inocência uma inocência pessoal, ela é rapidamente apagada. Se a quiseremos entender como algo que abranja todas as histórias, as personagens, a cidade de Nova Iorque, então é antes o “desencantamento” que se encontra disseminado por todos os elementos. Não há uma total clareza quanto à substância dos acontecimentos e da hierarquia dos valores envolvidos, e talvez seja isso mesmo o que constrói o interesse humano de todo o Alack Sinner. Contudo, podemos ver o paradoxo de outra forma. As histórias partiram de “casos” isolados, concisos, unívocos, resolúveis, nítidos, externos à personagem mas através deles moldados numa narrativa, para chegar a polifonias ou relatos desregrados em termos das sensações de Sinner. O único momento de retorno à trama detectivesca, depois do início desse movimento, é quando se envolve uma narrativa policial em torno de Cheryl, a sua filha com Enfer, aprofundando a dimensão humana de Sinner, o qual, como as personagens de Frank King, vai envelhecendo à medida que o tempo real dos livros passa. E se num primeiro momento, em “Rencontres”, se fazem concentrar todas as personagens da vida de Sinner, ma espécie de balanço, é no grau máximo do paroxismo final, pontuado pelo 11 de Setembro de 2001, “L’Affaire USA”, que Sinner consegue um momento de paz verdadeira – bem diverso daquela paz que advém dos encontros sexuais ou amorosos, não necessariamente interligados nem por essa ordem –, brincando com a neta num jardim, livre do hábito tabagista, com força para o jogging, quase patética, enquanto por detrás dele ainda se urdem as conspirações, mas para as quais Sinner já não lança pontes, das quais se libertou. Talvez seja nesse momento então que resida a inocência prevista no sub-título, e não seja uma inocência “perdida” mas antes “conquistada”.
Então, talvez, talvez, a fase de coagula seja atingida no fim, pelo menos nesta magnum opus nigrum - indubitável neste caso - agora apresentada como uma unidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos três livros.