Onde vivem os Monstros. 2. Filme. (Livro)
Esta não é a primeira adaptação de Onde vivem os Monstros para um meio de imagens em movimento. Em 1973 surgiu uma versão animada, por Gene Deitch (pai de Kim Deitch), que adaptaria ainda In the Night Kitchen, já havia realizado Munro, escrito por Jules Feiffer, e trabalharia sobre Krazy Kat. Excelente currículo e companhia, o que explica a boa versão. Todavia, este filme de Jonze não é, nem o poderia alguma vez ser, uma mera transposição, um verter, de um mesmo “conteúdo”, de uma “forma” para outra... É antes uma transubstanciação, uma transrealização, uma transformação, não total, mas através dos desdobramentos possíveis a partir dos elementos do livro para um meio como o do cinema.
Independentemente da maneira como as condições de produção do livro avançaram, antes de se tornar o texto que hoje conhecemos (as “Wild Things” referiam-se a toda uma série de animais mais normalizados, digamos assim, numa sua versão com cavalos, partes do texto foram sendo reescritas até mesmo com os editores), o que nos importa enquanto leitores é a sua forma final, o texto em si. É interessante que Jonze tenha optado pela exploração de uma hipotética backstory, da novela familiar por detrás do exercício de escapismo, tornando a viagem de Max numa forma de expressão com raízes (mais) dolorosas.
Sem querer reduzir todos os filmes de Jonze a uma espécie de estrutura apriorística e psicologizante, creio porém ser-se relativamente fácil apercebermo-nos de que os seus filmes e vídeos exploram toda a capacidade que a ficção, sobretudo aquela pejada de elementos consolidados que nos fazem chamar pelos “géneros” sem titubeações, tem para nos poder transportar a toda uma nova realidade ou capacidade de sensações. Seja a cabeça de John Malkovich, ou a do argumentista de Adaptation, o fabuloso (em toda a acepção da palavra) vídeo-clip “Da Funk” dos Daft Punk, ou o gato da Björk (“Triumph of a Heart”), servem todas essas pequenas narrativas para nos colocar num território de estranheza, de alteridade, até mesmo de alienação, para se poder retornar ao centro, o que não é mais do que o programa do livro de Sendak. O acompanhamento do autor do livro original e o dedo de Dave Eggers, Papa da McSweeney’s, o qual haveria de trabalhar o argumento até se tornar uma jóia bem polida, e, a par e passo do filme, uma outra versão em forma de romance, The Wild Things/O sítio das coisas selvagens (editado em Portugal pela Quetzal), traz ainda mais uma coroa de segurança e honestidade cultural que blindou o projecto de outras direcções pautadas por desejos de estúdio (o que explica em parte os problemas pelos quais atravessou durante a produção do filme). Nota-se uma grande distância de todos os filmes “para toda a família” com os seus espartilhos morais e estilísticos: a diferença nota-se a todos os níveis, dos diálogos credíveis e “banais” às cores naturalistas e selvagens, da pura parvoeira das acções propostas na ilha à falta de jeito em cumpri-las, das pequenas piscadelas de olho à cultura popular (quantas cenas dos monstros são um reflexo de Jackass?, e quando Alexander, o monstro-cabra, diz “that tickles!”, está a repetir a famosíssima frase de Elmo, personagem da série Rua Sésamo), e em toda a parafernália cool em torno (a música, acima de tudo, em canções facilmente assobiáveis).
Preenchendo todo o sentido da palavra, este é um filme maravilhoso, e que emprega a fantasia do modo pautado e sóbrio que se indicou para poder abrir espaço à exploração do “método” que Sendak havia preconizado no seu livro. Não um mero escape ou desvio de atenção por distrações fáceis, rodriguinhos de cor e efeitos (o projecto inacabado da Disney teria sido exemplo de um péssimo caminho; e o novo Alice de Burton faz temer o pior), mas sim um instrumento através do qual a criança pode aceder a significados que começa a sondar na sua existência completa e espiritual.
Max surge aqui, no corpo de um menino real, em todo o esplendor do mau comportamento que quer dizer “olha para mim e ama-me”. Não há qualquer histrionismo nem talento precoce Hollywoodesco, mas apenas a triste capacidade que todas as crianças têm em inventar histórias e ver o mundo acabar a todo o brinquedo partido. Quanto às criaturas, espelhos de Max, não têm nome no livro em si, mas numa primeira versão teatral foram baptizadas com os nomes judaicos dos familiares do autor (aliás, o autor baseou-se nos tios e primos para desenhar as “wild things”, sendo aqueles, nas palavras dele, bichos enormes de olhos esbugalhados, maus dentes e narizes peludos e que agarram nas bochechas com força para demonstrar carinho), o que seria aproveitado pelos bonecos da McFarlane; a versão cinematográfica apresenta outros nomes, numa distribuição equilibrada entre origens e distribuição sexual, tomando o pulso ao tempo e para sublinhar o desenho universal da história. O desdobramento das suas personalidades, tal como o desenvolvimento da backstory que justifica as fugas de Max (a real e a imaginária, se não as lermos às duas como reais, o que será provavelmente a melhor hipótese), é algo necessário num projecto fílmico narrativo. Já muito foi dito dos efeitos especiais das criaturas, que passam pela credibilidade táctil dos herdeiros de Jim Henson; The Dark Crystal chegou perto (em termos da naturalidade e movimento, não de qualidade literária e estética), mas este filme está no nosso ponto, de um modo que nenhum outro filme dependente em tecnologias CGI consegue atingir, preterindo-se a técnica em favor da proximidade.
O filme utiliza todos os instrumentos que tem disponíveis para poder explorar e abrir o universo narrativo contido nas páginas do livro de Sendak, mas lançando-o para outros campos da expriência infantil. A forma como som é muitas vezes tratado, com diálogos escutados subjectivamente a partir da posição de Max (à margem, ao largo, no interior de K.W.), ecoa a forma como muitas crianças escutam as discussões dos pais, em surdina, não os envolvendo directamente mas reduzindo-os a moeda de troca e chantagem, de ameaças e razões. Tudo concorrendo para a metáfora familiar, que este filme explora, mais que qualquer outra interpretação prevista no livro (precisamente porque, estendendo-se numa só direcção, vai fechando outros caminhos virtuais). Nesse sentido, e tendo em conta mais uma vez a ausência do pai ou de qualquer figura paterna quer no livro quer no filme (a mãe, que está fora de campo no livro, passa a estar presente no filme, mas impotente), a violência do monstro Carol, aquele que começara como o mais protector, o mais próximo, o mais amigo, é o que traz o medo à mais viva flor da pele. Não por ser um monstro que tem olhos e dentes e garras terríveis, como reza o texto de Sendak, mas porque precisamente é aquele que mais parecia estar longe dessa raiva destruidora real. Melhor retrato da violência parental ou do amor tornado ódio e agressão não haverá.
O espaço onde o filme se desenvolve é também cheio de vitalidades. A ilha onde vivem os monstros surge como todas as ilhas dos clássicos literários com os quais pode ser irmanado, e, não obstante a possibilidade da leitura colonialista, ela é um micro-cosmos social como os locais visitados por Gulliver, a ilha refundada por Robinson Crusoe, ou a de Próspero, “cheia de ruídos”. A sua diversidade de paisagens – deserto de areia, bosque, planície pedregosa, montanhas, cavernas húmidas – apenas aumenta o grau de amplitude e potencialidade dessa ilha. Mas ela é também uma gigantesca máquina de ficção. Em primeiro lugar, para os próprios monstros: a caverna e galeria de Carol é uma mise en abîme da ilha e dos seus habitantes, um pequeno modelo utópico e projecção do seu criador (e que tem o fim que todas as utopias, quando tentadas na realidade, atingem). É também um espaço de ficção para Max, no qual este, através das brincadeiras (o “rumpus” que, mais do que a “festa” na tradução do livro, é uma excitada doideira, macacada, palhaçada) e do grande projecto de reconstrução da ilha e da sua sociedade (que não é mais do que a sublimação mais controlada e benigna das acções violentas levadas a cabo por Carol, quando o conhecemos, e a realização dos seus modelos), aprende a situar-se na relação com os outros, a ler as emoções dos outros e, assim, crescer. Pelo desenvolvimento narratológico indispensável no filme, isso é bem mais claro ou explícito neste do que no mais conciso, subtil livro, aberto à interpretação. O filme de Jonze, com um intuito moral, prevê que se explorem as relações de amizade entre as criaturas, os laços que se vão desfazendo e o modo como o “reinado” de Max os reforça.
Seria interessante tentar perceber se Max reina de facto ou não, isto é, até que ponto as acções cumpridas por todos e as alterações das suas redes relacionais nascem da necessidade da força externa da criança, tal como esse “poder” se espelha no modo como ele é “reinado”. Mais importante, contudo, é o facto de que em português há a felicidade de encontrar o paradoxo explorado na ilha nesse mesmo verbo: “reinar”.
Ora, tudo isto é então um comentário sobre o poder da ficção e a sua importância enquanto instrumento de aprendizagem, desenvolvimento pessoal e crescimento humano. É uma ferramenta muito importante, pois simplificando as arestas da realidade ajuda-nos a concentrar melhor num qualquer assunto ou evento das nossas vidas. E a importância é acrescida ao se relacionar com a infância, onde tantas vezes o fingimento não o é, mas é antes uma outra forma de se ser realmente. Está-se a reinar. Há um momento em que Douglas, o monstro-ave (e que bem que são escolhidas as vozes; aqui o culto de personalidade do cinema comercial norte-americano funciona a favor do desenvolvimento destas personagens; Chris Cooper tem uma perfeita voz da asserção e sapiência impotente), revela que Max é “um rapazinho a fazer de lobo a fazer de rei”. Todavia, não é uma mentira o que Max fez, não é um fingimento: É uma forma ficcional de expressar uma verdade.
É essa, uma só, verdade, o que vemos explorado no filme. Há uma em cada um de nós.
1 de dezembro de 2009
Where the wild things are. Filme de Spike Jonze.
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:09 da manhã
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1 comentário:
a sociedade portuguesa de autores desclassificados, secção de cobrança, vem, por este meio, apreciar toda e qualquer verdade relativamente ao que lhe é prometido.
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