Visito Israel (ou outro lugar qualquer) munido de um mapa, um guia, um jornal, e uma câmara fotográfica. Ou visito-a com um caderno de desenho. Aquilo que verei, experienciarei, degustarei, e depois devolverei serão duas realidades bem distintas.
Neste livro que nasce de um conjunto de cadernos de viagem de Ricardo Cabral, a chave encontra-se talvez na página 124, onde o autor apontou o seguinte: “... a Cúpula da Rocha – que não está realmente ali mas que eu forço para aparecer no desenho...”. A palavra-chave está em forçar, isto é, o exercício de um esforço transformador sobre a paisagem, a alteração desta, a qual está à partida totalmente fora do alcance da manipulação de um só homem (excepto os casos da landart, claro está), através de um instrumento que, bem pelo contrário, poderá estar sob o total domínio do seu criador, a saber, o desenho.
Em Cadernos de Viagem, editado por Eduardo Salavisa, recordar-se-ão da história de Mário Bismarck, em que este, quando desenhava num templo do Egipto, foi interpelado por um guarda que o proibiu de desenhar. Num diálogo “por gestos”, o pintor foi informado que poderia fotografar e até filmar, mas não desenhar. Ora esse guarda revela uma inteligência arguta (aliás, Bismarck afirma mesmo que “daria um excelente professor de Desenho!”, pois sabe que o desenho permite que se pense mais além da mera angariação dos dados.
A fotografia, sabemo-lo com Vilém Flusser, pode ser vista como um princípio de “automação estúpida”, reduzindo-se os aparelhos a uma “caixa negra” e o fotógrafo a um “funcionário”, isto é, quando quem fotografa apenas se pauta em relação ao parelho, trabalha (ou “brinca”, nas palavras de Flusser) no interior das suas limitações técnicas e políticas. Outro pensador da fotografia, Henri Van Lier, faz-nos encontrar o equilíbrio próprio dessa linguagem entre a imparcialidade (a captação automática de fotões em papel químico-óptico) e a indexação do gesto (todas as opções possíveis, a contextualização, a focalização). A fotografia não pretende devolver a realidade (“acontecimentos e objectos”) mas um real (“processos e continuidades”). O desenho é igualmente um processo, mas algo que parte de uma continuidade mais recuada, mais próxima do objecto (é preciso contorná-lo, como a jovem de Corinto ao seu amante) e, ao mesmo tempo, mais afastada (não há fotões reais sobre os objectos, mas a promessa de um afastamento posterior).
A opção, hoje, pelo retorno ao caderno de desenho em detrimento do aparelho fotográfico, revela então um processo de correcção dessa visão automática “pobre”, “repetente”, introduzindo-se um qualquer grau de individualidade e voz própria. O desenho, enquanto instrumento de conhecimento, é algo de muito antigo, algo que encontrou em Leonardo o ápice da sua completude e sofreguidão, e que tem tido ao longo dos séculos da criação humana os seus cultores. Ricardo Cabral não é turista em Israel (não o é apenas, pelo menos), e poderíamos mesmo argumentar que não vemos nestes cadernos a Israel passível de uma mediação supostamente objectiva – se é que isso é possível com algum lugar, mas temo que Israel o seja menos ainda – mas a Israel de Ricardo Cabral (tal como há um Fuji de Hokusai, uma Berlim de Grosz, uma Londres de Geoffrey Fletcher ou de Francis Marshall, uma Nova Iorque de Vasco Colombo). Através dos seus momentos calmos, Cabral desenhou esta Israel, as suas várias cidades, os seus cantos menos teatrais, os lugares mais confortáveis e reais do artista, para que a pudesse conhecer de um modo outro, e que depois nos pudesse devolver (um desenho, tal como uma fotografia, uma frase, é sempre feito para alguém, para o futuro, é sempre uma esperança de partilha, apesar da frase de Manuel San Payo destacada no post anterior).
Quanto aos desenhos em si, participam de um território misto. Ao acompanhar alguns dos desenhos que iam sendo expostos no blog do autor, e o processo de trabalho a que se entregava (vejam aqui), notar-se-á que a procura de Cabral não se cinge à disciplina do desenho, mas ao seu cruzamento com a fotografia onde esta permite uma aproximação mais naturalista das cores. O abdicar de uma maior expressividade através de outras técnicas de cor (como as aguarelas ou as ecolines), o facto de tomar decisões de alteração ora do desenho original ora da paisagem efectiva, a opção em representar algumas vistas em “olho de peixe”, a inclusão de pequenos pormenores de produção (o seu próprio reflexo em superfícies, as páginas sob aquela visível, um estranho equilíbrio entre pormenores quase hiperrealistas e outros moldados por aproximação, uma franca opção por abandonar a figuração humana “mangaizada” de Evereste por uma outra maneira que experimenta em desenhos, inclusive os enormes painéis que expôs na galeria Corrente d’Arte), fazem deste livro um caso de estudo das fronteiras da ilustração, do desenho, do gesto gráfico, e até mesmo da fotografia, muito profícuo.
Em termos de exemplo, vejam-se as páginas 148-149 e 150-151. É impossível crer que, mesmo não tomando em consideração a cor, estes desenhos tenham sido feitos nos momentos que retratam, tão curto intervalo; terá sido um apontamento estenográfico posteriormente esculpido?, duas fotografias desenhadas?, um só desenho desdobrado? Questões que apenas poderíamos perguntar directamente ao autor, mas que se torna mais interessante colocar ao próprio livro, e esperar que a sua leitura nos desvende as várias respostas. Um outro exemplo, páginas 156-157. Fala-se de “uma menina brinca junta ao abrigo”. Vemos três. Não, vemos uma, em três momentos e acções diferentes. De novo as questões surgem, e com o desenho, as respostas fluem também. Há apenas um momento em que a especificidade do espaço físico do caderno de desenho faz explodir a concentração representacional: nas páginas 208-209 o autor desenhava a paisagem urbana em frente a uma esplanada, “mas não acabo... já não é a rua que me interessa. São as pessoas que passam (...) a vida que aqui há”. É sempre essa vida “que aqui há” que está presente nos desenhos de Ricardo Cabral (e não uma reportagem, uma construção coesa de um qualquer discurso regrado), mas este é o único momento em que se instala a total liberdade da qualidade de palimpsesto do caderno (para empregar um termo previsto no catálogo referido atrás). Todavia, como vemos, as opções de Cabral pautam-se por um qualquer grau de naturalismo.
Há que nos remetermos aqui para as questões dos textos, dos pequenos e breves comentários do autor em relação ao que se vê representado, quase sempre num tempo presente, criando-se um equilíbrio entre distância e presença. Poder-se-ia ainda acrescentar que se trata de um discurso a-politizado, uma vez que não há quaisquer comentários em relação à situação política de Israel (apesar de se anotar um susto de uma bomba, a protecção nos abrigos, a presença dos militares, uma fronteira...), que mais suscitaria interesse à partida, de uma certa perspectiva. No entanto, poderemos ver aí mesmo um posicionamento, de resto inevitável, nesses mesmos palcos. As relações de Ricardo Cabral com os seus interlocutores locais parece ser o da amizade somente, não há diálogos transcritos, não adivinhamos tensões de qualquer espécie, tertemunhamos até uma aparente bonomia, uma serenidade, até mesmo uma banalidade das vistas.
São esses mesmos momentos, descomplexados, aqueles que mais nos conquistam em termos pessoas. As imagens dos interiores, aquelas “sem acção”, sem até personagens... são essas as que mais revelam não o mero aborrecimento pelo banal e comezinho, mas sim os momentos em que o desenho de Cabral leva mais tempo a contornar os objectos, a apalpá-los e moldá-los com linhas e sombras. A vista de um bule de chá eléctrico em primeiro plano, do que se esconde por entre um beco, os restos de uma refeição, são bem mais eficientes nessa transmissão do que os retratos das pessoas que passam, mais ou menos rapidamente, na “vida retratada” destes cadernos (recordando-nos, de um modo estranho, as “paisagens” de Shinji Kimura.
O livro de Ricardo Cabral não participa, a meu ver, daqueles interesses peculiares que podem ocorrer nos diários gráficos de pintores ou artistas visuais de outras disciplinas. Isto é, em que a aguarela, a trama do lápis, do carvão, da grafite ou da sanguínea exploram as suas próprias capacidades expressivas ou aquele grau de simbiose que se torna possível com o gesto do artista. É inevitável que, tal como outros artistas de banda desenhada que têm cadernos publicados (Baudoin, Loustal, Dupuy e Berbérian, Gallardo, Joaquin López Cruces, Crumb, Kuper), se procurem afinidades entre uma actividade e outra (contar histórias, procurar elos narrativos, dar a ver a expressão das “personagens”, treinar uma maneira de desenhar, etc.). O cruzamento com a fotografia de Cabral aumenta o grau do seu desejo em fixar. E mais do que o virtuosismo do desenho, ou a captação do momento afortunado, encontro aqui uma espécie de processo em descobrir coisas, acima de tudo a sua própria capacidade de concentração e desenho, de relacionamento humano com os outros, e a semi-timidez em encontrar uma forma de a tornar acessível a nós, leitores e espectadores.
Existem muitos cadernos de viagem e de campo e diários gráficos... Ricardo Cabral tem a felicidade de encontrar uma forma de os publicar com qualidade e visibilidade. Não há que fazer hierarquias internas aos trabalhos, mas sim dos esforços editoriais, que ainda pecam, entre nós, pela timidez. Fosse esta uma família que crescesse...
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
23 de novembro de 2009
Israel Sketchbook. Ricardo Cabral (Asa)
Publicada por Pedro Moura à(s) 6:50 da tarde
Etiquetas: Ilustração, Portugal
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4 comentários:
uma das raras obras-primas da ilustração portuguesa :)
João Miguel Figueiredo Silva
(com a vénia devida a Ricardo Cabral e à Asa pela iniciativa editorial)
Caro João Miguel,
Agradeço o comentários que deixou mas, não deixando de partilhar consigo o entusiasmo com este gesto da editora, e ainda com a existência do trabalho do Ricardo Cabral, não consigo, porém, concordar com considerá-la, sem mais nem menos, uma "rara obra-prima", não pelas suas qualidades intrínsecas, mas porque a companhia que tem é vasta. O panorama da banda desenhada, da ilustração e do desenho em Portugal é mal divulgado, tem um mercado fraco e poucos locais de encontro (e menos ainda de reflexão, mas lá vai havendo), mas não é, de modo algum, pobre: temos um panorama variado e de excelência.
Logo, o destaque a Cabral é merecido, mas não é, felizmente, um caso raro.
Até breve,
Pedro Moura
Caro Pedro Moura,
não sendo neófito na área da BD/ilustração, creia que me permito um parecer sustentado. Desditosamente não reconheço de facto outro título nacional - excepto Fullerton de Jorge Colombo - ready-made para ombrear com Ferrandez, Boucq ou Loustal em qualquer montra internacional de beaux-livres...
Adianto ainda que a vénia devida é extensiva à sua análise e esforço de divulgação
Até breve
João Miguel Figueiredo Silva
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