A propósito da leitura de Lupus, em que não encontrávamos instrumentos de desenvolvimento particular em Peeters, posição a qual, se bem que tenha sofrido inflexões mínimas, se mantém no seu curso, citámos um episódio de outro livro do autor, em que havia surgido um rinoceronte numa cena aparentemente banal, lógica e real, servindo de factor não-diegético da projecção das expectativas ou medos das personagens.
A palavra a que recorremos então, entre aspas, era a de “surrealismo”. Usualmente esta palavra, quando usada ao desbarato, é aplicada sobre algo que não compreendemos, quando elementos que surgem numa plataforma qualquer – uma obra literária, cinematográfica, de banda desenhada – não parece contribuir para um significado consensual, partilhável, verbalizável de um modo descomplicado. Mas o programa anti-racional, fortemente construído sobre as teorias de Freud e bebendo (demasiado) do Simbolismo oitocentista, tanto provocou a criação de acasos felizes, como de bizarrias endomingadas e de genuínas raízes do absurdo e do incómodo.
Apesar do seu aspecto ou superfície de concatenação de elementos díspares, Like a Velvet Glove Cast in Iron, de Daniel Clowes, acaba por obedecer a um programa de clareza, causalidade e programa narrativos. E se Pachyderme parece, numa ou outra curva da trama apresentada, querer construir-se através da acumulação de imagens ao acaso, de elementos díspares, de elos inassociáveis, ao longo da proximidade da sua resolução percebemos que tudo se subsume a uma história linear. Aliás, o movimento da protagonista, Carice Sorrel – caminhando de uma estrada onde houve um acidente automóvel, através do bosque que a separa do hospital e, depois, no interior deste último, a travessia dos seus corredores e quartos – aponta precisamente à causalidade mecanicista dos eventos representados. As imagens deslocadas para territórios inesperados que vão surgindo – as crianças “negras”, os animais empalhados regressando à vida, o estranho e líquido agente secreto, o modo complicado como se tecem as memórias de todas as personagens, as analepses, e as projecções fantasmáticas de Carice – não criam simples metáforas visuais, nem meros acidentes de expressão, mas sim uma constelação de significados simbólicos cuja chave nos é ofertada no seu fecho, tornando-os portanto nisso mesmo, símbolos. Mas mal o sabemos, eles desvanecem-se enquanto verdadeiramente significativos, isto é, fortes. Não se tornam traumas para o leitor, mas traumas explícitos e resolvidos da personagem.
Em termos literários, esta pequena obra também nos remete para uma outra, cinematográfica. Aliás, poderíamos mesmo dizer que esta é uma banda desenhada “cinematográfica”. Todavia, é preciso que expliquemos o que isso significa. As maias das vezes, quando um filme qualquer apresenta características de fraqueza em termos do desenvolvimento das personagens, ou em que a trama acaba por seguir meia-dúzia de princípos que de tão clássicos se tornam de papelão, alguns críticos dizem ser “de banda desenhada” ou “aos quadradinhos”, como se esse apodo fosse suficiente para compreender um decréscimo (substancial) da qualidade cinematográfico da obra em questão. Obviamente que esse uso denuncia mais uma maior ignorância, por vezes atroz, do crítico de cinema em relação à banda dedesenhada do que uma capacidade de ajuizar sobre a obra em si. Mas poderíamos inverter os factores e utilizar essa palavra para dar conta de autores que, em vez de utilizarem todos aqueles instrumentos específicos e inerentes apenas à banda desenhada que têm à disposição, tentam uma imitação “em papel” daquelas outras disposições do cinema que, claro está, jamais poderão imitar em todo o seu dispositivo e qualificações tecnológicas, cingindo-se somente a uma organização dos elementos narrativos (numa fundação de princípio-meio-fim), a uma distribuição equilibrada de papéis, a uma exploração de conteúdos que atravessarão uma fácil transposição, caso possa vir a ser “optado” para adaptação. Poderemos, então, dizer que Pachyderme é uma obra cinematográfica.
Mas há uma associação cinematográfica que poderá ser vista como um factor de fortalecimento deste livro. Pachyderme, dado o seu tema, que apenas aos poucos se desvenda e torna claros os desvios que entretanto testemunhamos, irmana-se com O Ano passado em Marienbad, de Resnais e Robbe-Grillet. Eleger um edifício grandioso (neste caso um hospital) como metáfora do limbo das almas, labirintizar os seus corredores e andares num espelho da confusão das personagens em busca de um qualquer sentido, e prever na rede de encontros proporcionada alguma hipótese de redenção são os sinais que os aproximam. Claro está, no caso do clássico da Nouvelle Vague/Nouveau Roman procura-se atingir um espaço de indeterminação quase absoluto através das figuras da compossibilidade e da metalepse. Estas figuras estão ausentes neste livro, pela sua mecanicidade. Pachyderme preocupa-se com uma maior clareza, e uma redenção, ou felicidade, recuperada verdadeiramente.
Ainda que possam emergir sub-temas de importância moderna, como a sexualidade livre, a expressão da feminilidade (ambos explorados aravés de mecanismos visuais que tornam visível o tal programa obviamente freudiano do surrealismo, com todos os seus getos banais do choque anti-Católico dos seus autores), todas as questões do pós-guerra, parecem mais condimentos para “arredondar” a história central, que é o de perseguir e alcançar um sonho de expressão pessoal da parte de Carice, do que encontrar neles um caminho que pudesse vir a ser explorado e que constituísse os seus contornos principais. Nesse sentido de cinema, então, este livro seria um “feel-good movie”. Não é um peso negativo, simplesmente arrasta-o para um território de uma normalidade, de um naturalismo que confirma o que afirmámos atrás, em relação ao juízo de valor sobre Peeters que se mantém no seu curso. Importa porém explicitar quais as inflexões a que nos referimos. Peeters mantém, ele mesmo, a esmagadora maioria dos seus instrumentos. As figuras humanas vogam entre o estilizado e o realista, a introdução da cor leva-o mais ainda para o centro do espectro franco-belga classicizante, a composição das páginas confirmam o seu propósito de narrativa absoluta. Um domínio de clareza, não de desvio. Associado a esta história, a clareza ganha ainda mais visíveis contornos. Mas a claridade e a visibilidade invalida outras visões...
2 de novembro de 2009
Pachyderme. Frederik Peeters (Gallimard)
Publicada por Pedro Moura à(s) 7:18 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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