Ainda que este livro tenha sido publicado em 2009, ou seja, logo depois de L’Arleri, reporta-se a uma experiência cronologicamente anterior, a saber, uma viagem ao México, sobretudo à vila que dá o nome ao livro, entre Dezembro de 2007 e Fevereiro de 2008. Isto é importante na medida em que as experiências pessoais de Baudoin, e a sua leitura pessoal dessas experiências, a sua transformação em matéria de expressão, as tornam significativas e passíveis de (re)integrar a nossa própria interpretação. Mais, no caso particular de Baudoin, em que a ideia do “Poema Contínuo” é por demais programática e significativa, no momento em que nos tornamos leitores de Baudoin, mais do que somente leitores dos seus livros, cada um deles torna-se parte inextricável de um corpo a ler em conjunto, cada um deles ilumina o próximo e o anterior.
As ideias que se herdam de modo imediato da leitura de L’Arleri para Amatlan é a presença da morte. Se no anterior livro Baudoin se fazia representar, auto-fictivamente, pelo velho pintor centenário, aqui emprega uma ou duas estratégias já suas conhecidas: o homem de costas, o homem ausente, ou o sósia jovem (neste caso chamado Mathieu, “porque o autor amou esta personagem um dia”, referindo-se a livros anteriores, como Le Premier Voyage, Mat?,), o menino-de-dedo-na-boca... Mas há uma inflexão em direcção à morte.
O próprio Baudoin torna explícitos os problemas da(s) matéria(s) recorrente(s): “Outra vez, outro livro. Outra vez?... Um caderno de viagem?”; e, mais à frente: “Outra vez, outro livro... Para dizer o quê? O Caminho? O meu Caminho? Quantas vezes direi outra vez o meu caminho?”. O caminho remeterá os leitores assíduos de Baudoin para Le Chemin de Saint-Jean, que fora o caminho do seu pai e agora é o seu. Ou para todos os livros que remetem para um caminho que ele foi criando por entre as autobiografias em banda desenhada: em Nice, no Canadá... nas viagens mais curtas... O caderno de viagem remeterá não apenas para alguns dos seus livros mais propriamente “de viagem” (Alexandrie, Alexandra e Araucaria), como também para a dimensão material de alguns dos seus livros, quer aqueles dedicados ao desenho enquanto prática, quer aqueles que remetem a uma materialidade especial (a primeira edição de Le Chemin, de novo), quer ainda a este mesmo título, cujo objecto, oblongo, com um desenho a toda a volta da capa, recordará precisamente um caderno de esboços.
Os desenhos de Baudoin encontram-se num parco equilíbrio entre aquele desenho exacto e minucioso que pretende transmitir o mundo com a máxima correcção possível, mas informado pela emoção em tumulto do artista (os desenhos de Constable de Suffolk poderiam ser trazidos à colação), e um outro de uma expressão quase livre – a total liberdade expressiva é impossível, ou então seria ora intransmissível ora aterradora –, espontânea, que pretende ir além das regras do que se pode confessar. Mas Baudoin trabalha num território muito específico, a que se dá o nome de banda desenhada, e mesmo que estas sejam folhas soltas e desirmanadas de um original caderno de campo, elas foram reagrupadas, repaginadas e reapresentadas numa forma que se pretende legível, significativa. Uma banda desenhada. E há outros largos trechos acompanhados por textos verbais, escritos, histórias, diálogos. E há outros registos ainda segundo as regras mais clássicas da banda desenhada. Tudo isto compõe um só corpo, interpretável enquanto texto coeso e uno, que responde pelo título.
A viagem a este México está associada à visita de uma amiga, invariavelmente amante, mais jovem, de Baudoin. Baudoin explora em Amatlan profundamente aquilo que ele chama de “abismo”: não apenas o abismo que o separa enquanto francês do México real que visita, mas também aquele que o separa a ele, velho de 65 anos, da nova amante, Neige, de apenas 30. A diferença de idades entre ambos faz tornar esse abismo mais vincado, cuja imagem é devolvida sobre a forma de uma sombra, a sombra da morte. Estará Baudoin a sentir-se próximo de uma inevitabilidade, que lança a sua sombra na obra, que se verifica em L’Arleri através daquela auto-ficção do velho? O modo como pensa a morte é parte inextricável de Amatlan, e ela estará presente quer figurativamente, quer nas dobras dos diálogos estabelecidos com os leitores/narratários e com as outras personagens/interlocutores, quer ainda na presença de elementos que podem ser vistos como seus representantes (psicopompos, portais, espaços de passagem, jamais cruzada): o par de cães, o(s) homem(ns) de saco às costas, as tremendas e imensas raízes de árvores gigantescas, os caminhos por entre as montanhas exploradas somente até aos primeiros sinais da noite, os jardins de cruzes sem corpos sob a terra, o tiro imaginário que dá à amante como sinal de ciumeira idiota inconcretizável, as borboletas, o diálogo com o seu duplo mais jovem (ecoando um conto de Borges, cuja morte estava sempre também presente na escrita?).
Nada disto pode surpreender se tivermos em conta o papel que a figura e a ideia da morte assume na cultura mexicana, que tem raízes pré-colombianas e que exerceria o seu interesse em artistas populares como Posada ou eruditos como Rivera, em escritores com Lowry. Aliás, a deusa da morte azteca, Mictecacihuatl, aparece na forma em que aparece na pintura de Diego Rivera, Sueño de una tarde dominical en la Alameda central, como uma dama adomingada. Esta pintura é copiada parcialmente pelo autor desta banda desenhada, com Neige substituindo Frida e Baudoin, como uma criança com rosto de velho (e não o da de Piero), no lugar da criança anafada do original... Tendo em conta que, mais tarde, o protagonista sente vontade de chorar porque uma criança indígena o olhou como um estrangeiro, esta inscrição estranha num mural que tentava criar uma interpretação ou visão da história do México acaba por surgir com o processo falhado em Baudoin em ser tornar o “mesmo” no espaço do “outro”, isto é, em que Baudoin continua a ser um outro, apesar do seu desejo de não o ser. Uma confirmação desse falhanço.
Se falei de borboletas acima, é por estas constituirem um símbolo para as culturas autóctones das almas dos mortos, e a traça era o animal e nome da terrível deusa Itzpapalotl. As borboletas surgem num episódio no qual o protagonista masculino (encontramo-nos num momento em que a identificação com o próprio Baudoin, logo, em conjunto com a ideia de autobiografia que Neige ataca, são postas em causa) escorrega numa pergunta ridícula – “pergunto-me para que serão elas [as borboletas] úteis?”, ao que Neige responde “são úteis para mim”. E a imagem que se segue faz concatenar essas linhas soltas numa imagem sintética poderosa.
É hábito de Baudoin operar a reintegração de elementos separados da observação e experiência, e essa estratégia volta a surgir aqui. Numa só figura [a que se vê aqui ao lado] estão reunidas uma escultura de um autor mexicano contemporâneo, Sergio Hernandéz, La muerte sobre ruedas, que havia mostrado umas páginas atrás [imagem mostrada acima]. Mas a cabeça está “aberta” (como as personagens das Voyage), e dela brota uma imensa borboleta. Ao lado, merendando, as três amigas (as três Graças? As Parcas? Outras?; tendo em conta a insistência de Baudoin no “eterno feminino”, o trio das mulheres poderá assumir qualquer papel..). Que representará então essa figura à direita? O próprio Baudoin, transfigurado numa espécie de auto-ridiculização? A sombra que os assombra? Um símbolo qualquer que espera por uma interpretação esclarecedora? Toda a cena nos surge como uma espécie de Le déjeuner sur l’herbe invertido, em que as figuras femininas estão em maior número, vestidas, e o homem solitário está na sua mais descarnada natureza.
Um outro ponto desta estratégia de repetição e diferença é o retorno do menino-de-dedo-na-boca, como uma consciente revisitação da memória pessoal de Baudoin, quer enquanto pessoa quer enquanto autor de bandas desenhadas (a origem plenamente exposta dessa personagem-símbolo encontra-se em Passe le Temps). Uma espécie de leitmotiv ou de assinatura geral do autor para que se compreenda a continuidade do seu projecto, da sua obra em sentido próprio.
A presença da voz feminina, do “outro”, que esteve ausente em L’Arleri, está aqui presente, pela introdução dos escritos da amiga jovem, Neige Sinno, ao longo de oito páginas, que respondem a relação com Baudoin, e ao modo como ele entende que deve fazer representar as suas experiências – as quais, mesmo que partilhadas, não são idênticas àquelas sentidas por aqueles com quem as partilha. E é nessa fronteira, nesse abismo, que emerge a identidade de cada um, inalianável.
A morte, o sexo, as figurações, as questões de desenho, estão todas, novamente, em Amatlan. O próprio fecho, ou desfecho, deste livro, recapitula e reemprega frases anteriores, fazendo incluir nelas novos sentidos. Baudoin é muito próximo daqueles poetas que, como António Ramos Rosa, ainda que se limitem a um número circunscrito de palavras (e riscos e sombras e manchas), conseguem desenhar um bem contornado círculo no interior do qual se adensa tudo e todos.
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