26 de setembro de 2010

Nietzsche. Se créer liberé. Michel Onfray e Maximilien Le Roy (Lombard)

A “carreira” da obra de Nietzsche é conturbada, tendo atravessado um bloco de incompreensão e más interpretações e abusos que o lançaram num limbo de ilegibilidade, e seriam necessários novos filósofos modernos (europeus, na sua maioria, de Foucault a Deleuze, Derrida a Lyotard) para recuperar a total força e liberdade do seu pensamento. Ainda estavam os germes da II Guerra Mundial a medrar, em 1936, e já a publicação surrealista Acéphale tinha no seu primeiro número um dossier intitulado “Nietzsche et les Fascistes. Une réparation”, assinado por Bataille, Klossowski e cúmplices. Mas esse artigo não impediria o limbo a vir. Nietzsche é muitas vezes citado, quase sempre reduzindo as suas frases a meras fórmulas descontextualizadas do que realmente significam, e das suas implicações, fazendo delas meros pés-de-cabra vazios em discussões inconsequentes.
Quase todo o pensamento ocidental sempre se desenvolveu ao longo de um eixo duplo, um binómio, que oporia o Ser à Substância, o que se reflectiria em muitas outras instâncias de separações, desde a linguística (sujeito e predicado), à dualidade do cartesianismo (corpo e mente), a partir das quais se instituiriam as noções – aparente e retrospectivamente “naturais” - de uma ordem e simplicidade originais. Isto é, essa Lei surgiria a explicar pelos seus próprios mecanissmos que era natural que essa Lei existisse (só tendo acesso a esse “natural” através dessa mesma Lei instituída). Michel Harr, num ensaio sobre o filósofo de língua alemã, demonstra como a crítica nietzschiana à metafísica, o seu escavar na genealogia (que é um método, de integração do olhar histórico, ao contrário dos processos críticos kantianos) da lógica, é também um contributo decisivo ao delir da substantividade do sujeito psicológico, que passa necessariamente pelo demolir das certezas da própria língua ou gramática (a qual aponta a aparentes verdades transcendentais, universais e unívocas, a tal Lei): “no fundo, a fé na gramática transmite simplesmente a ideia de que a vontade é a 'causa' do nosso pensamento. O sujeito, o si, o indivíduo, são apenas conceitos falsos adicionais, uma vez que transformam unidades fictícias em substâncias, as quais tinham na sua origem somente uma realidade linguística” (“Nietzsche and Metaphysical Language”). Deleuze, no seu livrinho dedicado a Nietzsche (mas também “adaptado” ao próprio programa de Deleuze em torno da diferença), explicita: “A genealogia significa ao mesmo tempo o valor da origem e a origem dos valores. A genealogia opõem-se tanto a valores absolutos como a valores relativos e utilitários. A genealogia significa o elemento diferencial dos valores de que deriva o seu próprio valor. A genealogia significa, portanto, origem ou nascimento, mas também diferença e distância na origem”.
Como reduzir o mundo que a ponta destas ideias pouco revela num só livro, de banda desenhada, em que a imagem tomará tanto espaço das páginas que ao desenvolvimento das ideias seria necessário? Provavelmente optando por uma drástica escolha. Essa escolha foi feita pelo autor das imagens, Maximilien Le Roy, que já encontráramos em Faire le Mur. Essa escolha havia-lhe sido ditada pela leitura de Nietzcshe, e o que procurava era uma forma de com ele dialogar, permitindo que esse diálogo levasse a um livro. Uma segunda parte dessa escolha seria o encontro com um argumento do (também) filósofo Michel Onfray, que desejava ser filme, mas encontra nestoutro território a sua vida de imagens (presumimos, porém, sem os elos da colaboração directa, sendo a adaptação feita por Le Roy de L'Innocence du Devenir).
Nietzsche. Se créer liberé é, de uma forma descomplexada, uma biografia do filósofo. Não é uma introdução ao seu pensamento, muito menos uma súmula à la Como Compreender x ou x para Principiantes, mas uma visita pelas etapas da sua vida que surgem também como etapas do percurso do seu pensamento. Para os possuidores da colecção da Relógio d'Água das suas obras, a procissão de rostos alterados das suas capas é uma visão já comum. Esses rostos correspondem, de certa forma, não apenas ao amadurecimento físico e cronológico, natural, do autor, mas a um progressivo moldar do seu pensamento, uma correcção cada vez mais exacta da sua pesquisa, mas também, mais importantemente, um afastamento da calma “natural” e sistemática da filosofia até à sua data, e um mergulho no tumulto, tumulto que se faria ressentir no próprio Nietzsche, na pele e na mente. Onfray combate um certo grau de “revisionismo estético”, isto é, os sacrifícios que se fazem à verdade biográfica ou mesmo a outras verdades em nome de efeitos de superfície do espectáculo (o cinema, a banda desenhada). Nessa senda, o livro de Maximilien Le Roy tenta explorar da forma menos melodramática possível (com algumas limitações, como veremos) essa vida, abrindo-se, em momentos-chave, quer na relação com outras personagens quer em momentos solitários de Nietzsche, e usando trechos da sua escrita, à filosofia. Alguns desses momentos diurnos são do mais comezinho possível – Nietzsche a comprar tomates e a preparar uma refeição, deitado na relva a olhar para o céu –, todavia, é exactamente essa construção diária que o permite tornar humano (mas não “demasiado humano”) e ancorar-lhe, se tal for possível, o intempestivo pensamento.
A vontade de poder, outros dos conceitos-chave de Nietzsche, procura derrubar a ideia monolítica, singular, e herdada do Antigo Testamento (“a mentalidade do escravo”), da Lei, a qual se reveste de um papel repressivo, pejado de proibições. De acordo com Judith Butler (Gender Trouble), der Wille zur Macht aponta para as possibilidades produtivas e múltiplas da lei, revelando a ficcionalidade da anterior. Se Deus morre através deste processo, mais não será por Ele ter sido criado, em primeira instância, como uma espécie auto-limitação da própria vontade, a qual, se abraçar toda a sua liberdade, se libertará dessa noção espartilhadora. Nada tem este conceito (estes conceitos, pois enrolam-se noutros, deste a ultrapassagem da moral, a criação de um novo homem, uma nova vontade férrea perante conceitos cansados) a ver com um seu aproveitamento tardio, graças às corruptelas intelectuais levadas a cabo pela sua irmã e os piores aproveitamentos propagandísticos da máquina nazi. Aliás, Nietzsche era extremamente crítico da Alemanha, e das ideias de “espírito nacional” (Geist).
Até certo ponto, houve uma corrupção da sua ideia através das divulgações populares e incompletas, um pouco como aconteceu com o repetido verso de Fernando Pessoa, “a minha pátria é a língua portuguesa”, o qual... nem é de Fernando Pessoa (é de Bernardo Soares), nem é um verso (é do Livro do Desassossego), nem cria a ideia bacoca que parece criar de orgulho nacional. Bem pelo contrário, é uma divertida diatribe contra o “sujeito” Portugal, fazendo-o dissolver na sua língua. Não nos caberá a nós, incompetência oblige, encontrar os elos entre Pessoa e Nietzsche, mas neste ponto unem-se: a crítica à noção monótona, invariável, eterna e natural de sujeito, o arrancar do véu de ficção dessa ideia, o procurar um sentido que se encontra na película maleável e construída da língua (mas depois notar-se-ão diferenças, claro está).
O que essa pesquisa sobre a língua reflecte na tessitura do livro de banda desenhada está presente nas suas estratégias visuais. Existem vários livros que trazem a coisa filosófica ao campo da banda desenhada, mas a esmagadora maioria são meras biografias ou aplicações de sebenta das lições principais dos filósofos, transformadas em pastilhas de consumo rápido (e, por isso mesmo, falhas, uma vez que a filosofia apenas com a aturada intimidade nos pode despertar; não funciona jamais como fórmula de acção rápida).
Se outra experiência há que se possa irmanar com esta, é a de Salut, Deleuze!, de Jens Balzer e Martin Tom Diek, mas onde esse livro era uma quase parábola e paródia conceptual, em que Deleuze se cruza com Foucault, Barthes e Lacan nas margens do rio Letes, a abordagem de Nietzsche. Se créer liberé é relativamente mais clássica, arrumada, mas, por isso mesmo, efectiva de um modo diferente. Trata-se de uma biografia descomplicada, trabalhando por secções e elipses, visitando curtos episódios da vida do filósofo, desde a sua infância à sua morte. A composição de páginas não procura explorações radicais, nem o texto que se imiscui procura criar momentos de tensão maior ou melodrama. Com um único senão... as terríveis dores de cabeça que o cindiam do mundo, e que levariam à demência final surgem como intervalos nas acções, são um ímpeto que o furtam ao plano de representação “normal” do resto do livro. O autor opta por isolar essas crises em vinhetas pintadas de vermelhos, de pretos, uma prancha que vai perdendo as cores, outra por onde irrompe a guerra, outra em que amarelos solares e cruéis invadem um espaço que aprisiona o filósofo, outras ainda que ele toca piano à sombra de um vulcão e sob o olhar de Zaratrusta, o desenho perdendo a qualidade realista para tombar no rápido e inacabado esboço... É precisamente por o resto da linguagem ser de uma aparentemente simplicidade, de uma abordagem clássica, que essas presenças cruéis e violentas ganham uma eficácia temível. Esse é também um escavar da linguagem da banda desenhada, atento às suas especificidades, e sem procurar mimar outras experiências nem procurar explorar afastamentos radicais dos instrumentos mais nítidos e consensuais da sua história. Se bem que o autor utilize em demasia algumas poses melodramáticas nos momentos de diálogo entre as personagens, a respiração é sempre mais calma do que excitada, deixando o tumulto para as tais crises ou para o efeito que as lições de Nietzsche devem criar nas nossas mentes. Sirva este livro como primeiro passo a esse conhecimento e relação, se o puder.

23 de setembro de 2010

Market Day. James Sturm (Drawn & Quarterly)

Será possível o discípulo ultrapassar o mestre? Ou o filho ultrapassar o pai? Se na segunda questão há sempre o desejo de responder “sim”, na primeira ela é apenas atendível caso a caso, mas é raro que seja aceite sem discussão. A questão da influência, no quadro da literatura, foi famosa e talvez mesmo magnificamente estudada por Harold Bloom, ainda que a sua oposição a todo um campo contemporâneo de estudos associados a atitudes políticas menos conservadoras e mais atreitas a “diferenciações” internas ou éticas para além dos cânones historicamente impostos (isto é, no interior de uma certa hegemonia cultural e social) o tenha marcado e quase encerrado no possível uso teórico. Na sua trilogia dedicada ao tema, Bloom estipularia os instrumentos que lhe permitiram chegar às seis naturezas da influência, ou como ele diz, as seis “razões do revisionismo”, que têm sempre a ver com crises de interpretação do novo autor (o influenciado) em relação ao autor anterior (a origem da influência). Isto é, o novo autor acabaria sempre por interpretar mal o autor que o influenciara, mas é esse mesmo desvio que levará à emergência de um novo autor, e não de um epígono. Dessas seis “razões”, uma há que dá pelo nome de tessera (a palavra, significando cada uma das pecinhas de um mosaico, é reempregada por Bloom a partir de Lacan, o qual Bloom considera um exemplo acabado de tessera em relação a Freud): “a qual é a completação e antítese (...) o poeta tardio completa o poema e poeta precursor , de resto 'truncado', com aquilo que a sua imaginação lhe dita.” De certo modo, é como se o autor tardio seguisse o mesmo caminho que o precursor, nos primeiros passos, mas a dado momento se desviasse e “completasse” o anterior, pois seria melhor, uma vez que o precursor não havia ido longe o suficiente. Penso que deverá ser claríssimo para qualquer leitor de James Sturm que a (sua) grande figura tutelar é Will Eisner. Em mais do que um aspecto, parece ser a obra de Will Eisner aquela à que Sturm responde, a distância (já que termos de contextualização actual, diálogo directo, o leque abre-se a muitos outros autores, em termos de companheirismo mas não de “hierarquia” - histórica, de campo, de criação de território, etc.). Ora, se bem que Sturm seja já criador de uma pequena mas bem contornada e forte obra – a sua trilogia America é já vista como obrigatória –, a sua criação parece ser a resposta “que vai mais longe” do que Eisner prometera na sua própria obra.
Vamos por outro lado. No diálogo Íon, de Platão, apresenta-se uma outra teoria sobre a ideia de influência, mas bem diversa, partindo de pressupostos diferentes. A palavra-chave nesse diálogo é “entusiasmo” (etimologicamente significando “estar possuído pelo deus”, ou melhor, “em deus”). Empregando-se a metáfora dos ímanes como passando a energia do deus para o poeta, e depois deste para o aedo, até que chega ao público, abre-se uma outra imagem curiosa. Há sempre algum grau de perda nessa transmissão, como quando se verte líquido de taça em taça. Claro está que a adaptabilidade desta teoria aqui é complicada, pois nem corresponde termo por termo à de Bloom, nem quereríamos implicar que algum desses elementos (Sturm e sobretudo Eisner) teria a natureza do divino... Trata-se tão-somente de compreender este possível movimento de uma energia, a energeia, “acção”... Aliás, uma outra parte do texto de Íon falará precisamente da diferença entre a “arte”, que teria a ver com um conhecimento de um conjunto de regras, saberes-fazer, etc., e a inspiração divina, algo que ultrapassaria Íon. Talvez disséssemos “génio”, hoje em dia. E quer no caso do grande nome da banda desenhada norte-americana quer no do mais jovem autor, estamos perante dois inteligentes, observadores e esforçados artistas que dominam esta linguagem, no que ela tem de mais clareza narrativa, de efectivo veículo emocional, e até de possível pesquisa de sentido através dos elos verbais-visuais. As obras de Eisner e a de Sturm são fruto não de uma inspiração que ultrapasse as suas consciências, mas de uma conscenciosa tarefa, de um trabalho: aturado, ponderado, esculpido, dedicado.
A própria personagem de Sturm neste livro, Mendleman é um artista, no fundo, que reflecte sobre o seu trabalho sob novas condições de produção. Mendelman tece tapetes (estamos algures numa Mitteleuropa dos anos 1910?). Não dizemos “artista” porque se trataria de um homem capaz de criar formas belas no seu campo, os tapetes (e fá-las, ainda que apenas as adivinhemos), mas porque tem os olhos e o coração de quem colhe à sua volta as imagens que poderá semear, por seu turno, nas suas obras. E essa visão é a que tinta todo o livro. Por exemplo, logo ao princípio da narrativa, depois de Mendleman observar as cores da madrugada, e as raias com que se pintam os céus, e promete vir a utilizá-las nos seus tapetes, é impossível para o leitor observar os fundos novamente de todo o livro sem pensar que, mesmo no impedimento de o fazer (os tapetes não são mais lucrativos e estão ultrapassados na era industrial em que Mendleman entra), são os seus olhos que tecem os céus que se passeim por Market Day. Há mesmo um momento de observação do protagonista, no mercado, que transmuta tudo o que vê na “visão de um tapete a vir”, mostrando-nos os mecanismos do seu olhar específico e do seu saber-fazer. É através dessas explorações subtis que Sturm nos abre, sem nunca o dizer abertamente, a alma de um artista e nos permite entender aquele mundo através dessa mesma alma.
A temática judia não é nova em Sturm, mas assume aqui um papel preponderante que tem menos a ver com um contraste étnico-político, ou recriação histórica ou investigação cultural, do que com a natureza humana em si. Ou seja, não é um tema, é a matéria. Mendleman é judeu, e isso não serve de nada mais. Existe um contraste, mas é a nível económico, opondo a paixão do fazer da manufacura e do artesanato às imposições do mercantilismo industrial e capitalista, e o que isso significa na vida de um homem. Um dia, Mendleman descobre que não poderá continuar a sua vida como fazedor de tapetes. Horas antes de nascer o seu filho. “Que fazer?”
Como o título indica com exactidão, toda a narrativa dura apenas um dia, o “dia de mercado “(na verdade ainda se entra na madrugada do dia seguinte). Assim, a estrutura do livro abre com a madrugada em que Mendeleman se prepara para partir para o mercado, e encerra com o seu retorno, um homem totalmente transformado pelas circunstâncias. Essa estrutura recorda-nos o filme de Carlos Reygadas, Stellet Licht, que abre e encerra com os extremos do dia e que mostra também um homem dividido entre duas decisões, ambas fortes e justas. Mas onde Reygadas explora os problemas que nascem das razões do coração, Sturm associa a crise existencial e familiar aos seus fundamentos económicos: nesse sentido, Market Day é um livro marxista. E questão central será: “como é que um homem recria o seu posicionamento ético quando a infra-estrutura se altera?”. O melhor, com Lenine, “Que fazer?”
Face a essa questão terrível, compreensivelmente, a fantasia, o desvio fantasmal de abandonar tudo, de recriar uma vida num outro algures, num outro tempo, é recorrente. Mas o peso da terra, dos locais que se calcaram antes, é por demais imperioso na sua chamada. É como se fosse necessário, em nome de uma saúde profunda e indizível, namorar essa fraqueza, olhar esse abismo olhos nos olhos, permitir que a fantasia se espraie como dendrites no cérebro, para os evitar totalmente e fincar os pés no chão. Por mais doloroso que isso seja.
Apesar deste tumulto interno todo, das suas projecções – as esperanças que havia lançado na juventude e a forma como se dissiparam, os medos que emergem no seu presente e a forma como vão enrolando-se num calhau à Sísifo, um peso tremendo –, Sturm acaba por nos ofertar um livro muito sereno. Algumas das páginas mais belas, são aquelas “silenciosas”, fragmentadas para dar a ver o caminhar lento do dia respirando e do passeio descorçoado do protagonista, que interrompem aqui e ali o ritmo mais narrativo dos encontros de Mendleman. Essas páginas tanto nos fazem recordar algumas das experiências de Frank Santoro, como, por extensão, da questão da stasis na banda desenhada como discutida por Blaise Larmee, aqui. É como se a respiração ofegante do medo cavalgante de Mendleman encontrasse nessas páginas um momento em que pudesse respirar fundo e não pensar em nada de mais...
São esses momentos de suspensão, de desafogo, que marcam o grande contraste com o trabalho de Eisner, em relação aos quais se desenvolve o tal trabalho de tessera. Reparemos num exemplo: Eisner empregava onomatopeias de um modo que, tendo marcado a sua época (e sobre as quais ele próprio teorizaria nos seus livros teóricos/manuais/testamentos), abrindo-se àquele seu tipo de experimentalismo, e provocando grandes aberturas, é agora visto, pelo menos por nós, e para trás, como um vício, uma mania de estilização. Aliado ao dramatismo exacerbado das suas figuras, as suas histórias acabam por estar revestidas de uma certa energia excessiva, análoga ao que se chama de “over-acting” nas actuações. Uma excitação a mais. Sturm, e neste aspecto é impossível não o irmanar a Seth, com quem tem mais do que uma afinidade electiva em termos estruturais, figurativos, e até de voz, opta por um uso muito mais esparso dos mecanismos clássicos da banda desenhada (uma linha cinética aqui, um picotado de movimento ali, o moldar dos balões e letras para indicar inflexões de volume) e por uma gestão de silêncios muito mais condutora das impressões internas das suas personagens. Ainda assim, esta comparação é possível porque é como se Sturm se vestisse com o modelo e as ferramentas de Eisner, e as tivesse trazido para o contexto contemporâneo da banda desenhada, em que é possível criar esta nova atitude. Correcção (tessera), portanto. Eisner foi um artesão magnífico, e que inventou, em parte, muitos dos mecanismos dos nossos dias. Mas Sturm teve a oportunidade de abrir esta linguagem a um encontro feliz entre a atitude documental e recriadora e a poeticidade, no seu sentido de poiesis, de fazer. De acção. Que é tanto “por dentro” de Mendleman como “por fora”.
A qualidade do “meditativo” a que Larmee se refere é justamente aquilo que se desenrola em Market Day, mimando a vida interna de Mendleman. Essa qualidade transmite-se menos através da repetição ou de um ritmo agravado, neste livro, do que pelas formas como se procuram estabelecer ilhas de silêncio, de pausa, entre os momentos ora de acção ora de pensamento, como se aquilo que havia sido lançado, verbalmente, por Mendleman, encontrasse continuidade, e eloquente, na matéria visual que o rodeia e da qual ele próprio emerge. São esses momentos de meditação que, depois de Mendleman fechar a porta atrás de si e ir tomar as suas decisões, nós, enquanto leitores, herdamos.

The Art of Pho. Julian Hanshaw (Jonathan Cape)

Como em qualquer círculo artístico, para mais determinado ou por uma tecnologia ou por um meio de difusão – e se bem que a banda desenhada não seja determinada tecnologicamente como o meio do cinema, por exemplo, ou a sua difusão não obedeça aos mesmos princípios rígidos da rádio ou televisão – é inevitável que a sua transmutação em “canal” ou “linguagem” lhe permita tornar-se veículo de obras que comecem a integrar instrumentos relativamente avessos àqueles que a sua história nos havia habituado, digamos a sua “constelação central”. Esse desvio pode revestir-se de contornos que estejam relacionados com o experimentalismo formal, passando mesmo por uma aparente desestruturação (o cerne da nossa atenção em Divide & Impera), ou por a sua redução a instrumento comunicativo básico (quando é empregue numa publicidade, num anúncio institucional, numa propaganda médica ou política), ou pela sua instrumentalização a conteúdos, digamos, “artisticamente neutros”, ainda que claramente narrativos (o que foi discutido a propósito de Oishinbo). Ou seja, nem sempre tudo o que é banda desenhada tem de ser banda desenhada... ou arte, se preferirem. Ainda que soe presunçoso, é o mesmo que distinguir um “filme” (ou uma “fita”) de “cinema”. As mais das vezes, é possível que leve a discussões insustentáveis e inargumentáveis, mas serve um propósito de esclarecimento no tipo de abordagem, na natureza do objecto, na mais certeira estratégia da sua discussão. O que nos importa, porém, para a presente discussão, é o facto de ao alargar-se o círculo social e estético do seu uso, a banda desenhada dá origem a objectos de conturbada natureza. Sem entrar em juízos de valor (apesar desse ser um dos papéis da crítica), o desafio da leitura de The Art of Pho lançou-nos precisamente na aporia da sua interpretação.
Este livro não se reveste de uma força estética significativa, como, por exemplo, os livros de Warren Craghead, dos autores da Frémok, ou de toda a tentativa de tecer bandas desenhadas abstractas. Também não se trata ora de um virtuosismo absoluto na sua linguagem clássica (à la Matt Madden) ora de uma sua desconstrução (à la Niklaus Rüegg). Não é dessas frentes que ele parte.
Intentemos uma sua descrição. Este livro parece nascer de uma premissa que é a do diário de viagem. Mas em vez de tornar as impressões da passagem por um país – neste caso, o Vietname – num bloco de desenhos, apontamentos, e um plano narrativo na primeira pessoa, o autor procura uma sublimação de todas essas impressões na criação de um objecto heterogéneo, que por um lado se reveste claramente pela dimensão da ficção e por outro de retrato específico de um aspecto da cultural local: a culinária (mais especificamente, as iguarias disponibilizadas nos stands ou quiosques-motocicletas, algo muito típico nas ruas dos centros urbanos do sudoeste asiático).
A parte da ficção desenvolve-se em torno de uma criatura, misto de roedor, Rato Mickey, e gnomo, que dá pelo nome de Little Blue, o qual, abandonado no meio de uma cidade, vê-se impelido a procurar uma nova vida, para mais na esteira de uma aparente amnésia da “vida anterior”. O que se segue é, portanto, um movimento imediato – afinal, ele tem de viver, de se alimentar, de se abrigar – e, mais tarde, a exploração do seu ego começa a desdobrar-se em várias facetas até redescobrir as suas origens, optando por fim por uma espécie de resolução.
A outra parte, da culinária, está presente em várias formas: receitas, tipologias de certos pratos, tipologias dos stands. Podemos mesmo segui-las e utilizá-las para fazermos os pratos indicados (rolos de vegetais em papel de arroz, molhos vietnamitas, etc.). A razão desse cruzamento, no interior do livro, prende-se com o facto da personagem encontrar na culinária não só uma forma de subsistência, como também como fonte de aprendizagem da cultura (a criatura voga num intervalo entre o forasteiro e o nacional), e ainda como ponte de comunicação entre as pessoas que vai conhecendo. Se quisermos até, a culinária surge como inspiração amorosa ou resgate espiritual e emocional.
Apesar do autor nos providenciar com algumas pistas visuais para imaginarmos a partir do quê ele moldou esta sua personagem, no momento em que esta ganha todas as características antropomórficas de um ser humano, e tendo em conta os vários elementos narrativos, as formas de relações encontradas entre as várias personagens, as falas, por vezes nada subtis, não será de modo algum complexo chegarem os leitores à conclusão de que se tratará de uma projecção semi-autobiográfica. O tema recorrente é dado pelo lema “everyone goes away in the end”. E as leituras que se conseguem depreender, e repetimos, de modo pouco subtil, deste livro são precisamente os temas sempre revisitados pelos backpackers de todo o mundo.
De facto, a experiência da viagem à backpacker, estes munidos ou não de um Lonely Planet, com a necessidade quase doentia de ter de consultar o weblog e postar fotografias, e fazer todos os esforços por conhecer a “cultural real” do local (ainda que com o conforto da rede de regresso, por mais protelada que seja), essa experiência, dizíamos, molda-se numa camada de clichés revisitados. As conversas repetem-se: há quem viaje para “se encontrar a a si mesmo” (o que pode levar a uma piada recorrente também: “o que dirás a ti próprio quando o encontrares?” ou “pagas-lhe o bilhete quando voltarem?”), há quem viaje para “crescer espiritualmente” (sendo usualmente cego ao facto de que as religiões dos outros são tão falsas, mesquinhas ou profundamente espirituais como as nossas, há quem queira aventurar-se (sempre naquela rede de segurança do homem/mulher branco/do mundo ocidental)... etc. “Porque viajas?”, “Que procuras?”, são perguntas constantes. Romances de viajantes, idem. E um grau de cegueira perante o facto de que a experiência de um país percepcionado sob viagem não é de forma alguma o mesmo que sob outras condições menos móveis (trabalho, estudo, vida): o síndrome de “a galinha da vizinha é melhor que a minha”. Ora, é partir destes elementos apresentados sucinta e desorganizadamente que se compõe a matéria narrativa, relacional e dialogal de The Art of Pho.
A própria forma do livro ser construído, quer em termos de estrutura narrativa – capítulos, oscilando entre sequências narrativas claras e episódios menores e interrupções temáticas – quer em termos de grafismo – colagens ou imitação de colagens, fotografias, esquemas e grelhas, ilustrações de página inteira, letra manuscrita sem grande desenvolvimento estilístico, páginas de banda desenhada mais clássica e abordagens mais livres (algumas recordando Marc Bell, mas sem a mesma desenvoltura) –, concorre para essa ideia de apontamentos à medida que as ideias surgem, dando a este livro não propriamente uma natureza de projecto medrado e orgânico, mas de uma ficção leve que nasce do acto de mostrar as fotografias de uma viagem a alguém que a não fez. Uma espécie de partilha, que seguimos com alguma distracção mas que de quando em vez revela um elemento que guardamos com mais atenção, talvez porque se associe a algo que nos faz lembrar.
Nesse sentido, The Art of Pho, não sendo de modo algum um marco de alguma espécie no território da banda desenhada enquanto modo de expressão, é não obstante uma experiência, em si mesma, pessoal, específica, e livre. Talvez resida aí o seu interesse.

17 de setembro de 2010

Young Lions. Blaise Larmee (auto-edição)

É nossa crença que a banda desenhada consegue auscultar a contemporaneidade, mas os seus instrumentos são bem diversos dos de outras áreas mais dadas a abordagens críticas intelectuais institucionalizadas, como as ditas “artes visuais”, o cinema ou a literatura. As crises e arranques desta nossa área em especial não foram partilhadas noutros campos, e, para todos os efeitos, a banda desenhada é uma linguagem “velha”, cuja sobrevivência no mundo de hoje passa não tanto por uma sua reinvenção dramática e explosiva, mas antes por múltiplas pesquisas, as mais das vezes calmas e até quase pouco notadas, de pequenos desdobramentos possíveis. Extravasamentos (ora narrativos, ora gráficos, ora estruturais, ora em todas as suas possíveis frentes) daquela comunicabilidade simples que lhe pautou a vida durante tanto tempo. Aquela falta de atenção a essas experiências, reais, consultáveis, e com a sua própria história sustentada e autónoma, é mesmo, as mais das vezes, sobretudo sentida naqueles que mais “adoram” a banda desenhada, isto é, que a consideram um veículo privilegiado da sobrevivência de certas (as suas) fantasias ou projecções. Não é que ela não possa ser veículo de desejos (enquanto modo de expressão e arte é-o necessariamente), mas estes desejos é que podem ser mais específicos e pessoais do que formulaicos. A ressonância desses desejos, paradoxalmente, é maior quanto mais particular for a sua matéria e expressão.
Estes próximos dois livros são irmanáveis numa superfície comum. Ambos são livros que vivem na possibilidade contemporânea, não apenas técnica, mas estética (atitude, escolha gráfica, expressão, comunicativa, afectiva) de apresentarem desenhos no seu estado de inacabamento aparente. As técnicas não existem isoladamente, mas entrosadas numa sua expressão. É apenas analítica e abstractamente que as poderemos cindir e encontrar, como se de uma película se tratasse. Se nos fosse possível reduzir a história desta abordagem expressiva, ou técnica, numa só frase, poderíamos apontar para uma sua suposta origem na técnica dita “autográfica” de Töpffer, que aliou técnicas corriqueiras de impressão de documentos para a factura dos seus livros, mantendo a sua qualidade manuscrita. Uma importante inflexão é a carga de “pressa” e, logo, de “autenticidade” que viria a marcar certo registo jornalístico de uma fase da imprensa gráfica (cf. este ensaio de Alexander Roob). Depois da história constrangida da banda desenhada enquanto veículo especializado do escapismo claríssimo de aventuras infanto-juvenis de cariz masculino (desde a década de 1920, quer na Europa quer nos Estados Unidos), seria preciso chegar aos anos 1970 para ver o despontar simultâneo de vários experimentalismos gráficos, sustentados no tempo e na produção, que permitissem verdadeiras alternativas e linguagens outras no interior deste território (isto é, excluindo experimentações que se foram dando ao longo dos tempos, mas que estavam alheadas dos pólos centrais da sua produção). Finalmente, uma dessas linguagens, técnicas alternativas, possibilidades estéticas seria alcançada há relativamente pouco tempo, com a possibilidade de digitalizar e imprimir, com clareza e nitidez, arte que havia sido desenhada apenas a lápis, grafite ou carvão. Estamos sempre a falar da sua aplicação na banda desenhada, na qual o “lápis” era visto como uma mera fase de arquitectura primária, votada à ocultação de gestos técnicos posteriores. No momento em que ele se torna igualmente passível de se tornar veículo de transmissão de pleno direito do sentido (seja este mais ou menos narrativo, mais ou menos experimental), o que se dá a ver é uma certa camada de incompletude, de visibilidade dos processos estocásticos de procura, de pensamento no seu próprio desenvolvimento activo, uma espécie de sismografia do processo enquanto tal.
Essa técnica é visível nos trabalhos de Amanda Vähämäki ou de Marco Mendes, que tendem a incorporar as correcções e as rasuras, ou as primeiras decisões posteriormente abandonadas, no mesmo plano visível de composição do texto final. Quer o caso de Blaise Larmee quer o de Chihoi apresentam uma mesma abordagem material, tecnicista, mas não processual: se ambos os casos são livros desenhados somente a lápis, abrem-se menos à ideia de “rasura” dos autores citados.
Young Lions, do autor americano-japonês (mas isso não é importante) Blaise Larmee/Rarmee, é uma pequena novela muito afecta a um certo círculo das artes contemporâneas, no qual se encontram as novas gerações gerindo um certo sentimento de mal-estar que tem menos a ver com a insatisfação ou a angústia do fin de siècle, do dada ou do punk, do que com o entendimento de que se chegou tarde demais. Instala-se o desencanto e ausenta-se a ingenuidade e frescura de uma expressão genuína. Toda a gente é blasé. E o trio de performers/artistas Wilson, Alice e Cody, e mais um quarto membro, a “mascote” Holly (todos eles com ar quase impúbere, o que aumenta a carga sensual em certos passos do livro e lhes agrava a auto-consciência, para não dizer presunção, que revelam em muitos outros), é muito provavelmente um espelho, signo ou mesmo retrato directo de pessoas reais dos meios da arte: fala-se de projectos artísticos, performances, museus e galerias, vernissages e discussões estéticas. Uma road trip transforma-se numa procura interior e lançamento de redes de novas relações (ou pelo menos elos de maior profundidade), mas há sempre uma devolução qualquer de ideias e reflexões sobre o mundo artístico. O nome de Yoko Ono, apesar de ser dado como morta, surge várias vezes, e talvez seja ela uma musa distante – daí a sua “morte” – das buscas de novos processos artísticos (para a esmagadora maioria das pessoas que a conhece como “a mulher de John Lennon que destruiu os The Beatles”, aconselha-se a descoberta da excelente artista visual, por exemplo, pelo vídeos da Fluxus disponíveis na Ubuweb; será o facto de Ono ser japonesa uma associação étnica, tão importante e claro em autores como as irmãs Tamaki, Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim?).
A narrativa é, em mais do que um aspecto, frágil. Não é que é isso seja um problema em si, mas parece-nos que Larmee não se lança de um modo totalitário a uma possível liberdade, nem seguindo modelos anteriores, de Gary Panter a C.F. (com quem é bastas vezes comparado), nem se furtando totalmente à narratividade. É como se quisesse, a um só tempo, não ser narrativo mas ainda contando uma história. Um ataque bem-vindo ao realismo, seja de que classe for, mas que demonstra ainda alguns “pesos” que deixa o gesto original de Young Lions por se desenvolver completamente. Ainda que haja uma estratégia fragmentária, impressionista, quase onírica na sua lógica, e que exige do seu leitor a ligação das várias linhas que se lançam, e a imposição de uma estrutura maior sempre elusiva em relação ao tempo, espaço, e até mesmo finalidade e resolução da diegese, o livro revela alguns desequilíbrios.
Ao mesmo tempo, talvez esses desequilíbrios sejam a forma mais aguda de Larmee tomar o pulso da (sua própria?) geração retratada. É como se estivessem descentrados, perdidos, soubessem que existe uma direcção geral para a qual caminhar mas não houvesse qualquer certeza quanto ao caminho, à natureza do ponto de chegada ou até mesmo à pertinência dessa ida e chegada. Cria-se uma certa densidade – presente nos temas, nos objectos, na exactidão da figuração – mas para se dissipar com rapidez – as manchas e sujidade de carvão, os balões de fala vazios, os diálogos interrompidos, as acções inacabadas, a atmosfera vaga. Há uma busca de repouso, de respostas, de construções conceptuais, de certezas até, mas o movimento (da viagem, da inquietude, dos elos feitos, desfeitos, refeitos) anula-o. Há um certo grau de rebeldia prêt a porter mas que esbarra contra uma certa natureza inanimada.
É bem provável que Young Lions seja o exercício do próprio Larmee em, através de uma constante fuga, criar o seu próprio espaço de ausência no tecido social do mundo que habita. A leitura deste pequeno livro independente não criará qualquer imagem, qualquer certeza. Mas é esse mesmo vazio o sinal que marca o seu lugar.

Il treno. Hung Hung e Chihoi (Canicola)

O desenho do autor de Honk Kong Chihoi distingue-se do de Larmee não em termos técnicos mas de acabamento. Chihoi desenha apenas a lápis, criando impressões de sombra, volume e texturas através da grafite, inclusive (imaginamos) manchando de carvão algumas partes do desenho, mas subsume tudo a uma maior clareza figurativa e estrutural. A própria escolha em ter sempre duas vinhetas oblongas por página (com raras excepções, marcando extremidades narrativas) força esta ideia rítmica e organizada – imitando, talvez, o movimento sempre constante do comboio do título?
O volume indica que a história é uma adaptação - “encomendada”, se assim se pode dizer – de uma novela do poeta, escritor e realizador de Taiwan Hung Hung, que é traduzida por Carrossel no livro em si (tradução italiana) e Cavalos de madeira numa separata (tradução em inglês; a razão é simples: a palavra composta em chinês associa o ideograma “árvore/madeira” ao de “cavalo”), pensamos que na íntegra, composta por dezassete fragmentos, todos tecidos em torno de uma enigmática viagem num comboio de longa distância. Parece inscrever-se, esta novela, numa tradição da literatura do absurdo, mas há um grau de diferença entre o tom de absurdo da prosa de Hung Hung (em que se instala sempre a dúvida, a perspectiva fechada e somente verbal do narrador) e as decisões de mostração dos desenhos de Choihoi (eliminando a indistinção, ancorando os objectos e os eventos numa realidade material).
O leitor é convidado, depois de ler os textos de Hung Hung e a adaptação de Choihoi, a considerar o grau de distância e proximidade entre um e outro. Apenas diremos aqui que se a prosa estabelece um círculo referencial maior do que o do próprio comboio, a banda desenhada se encerra nele com apenas uma brevíssima – na abertura e no fecho – perspectiva para além dele; e onde a prosa parte de uma perspectiva relativamente impessoal, e voga por atenções a várias das frentes sociais criadas no microcosmo deste comboio, a banda desenhada segue um circuito mais clássico de organização centrada em personagens, diálogos, e psicologizações.
Até certo ponto, Il treno faz-nos recordar Voyages, de Yokoyama (leia-se o posfácio de Chihoi para as associações e influências e crises), não apenas pela óbvia associação da viagem de comboio (mas se fosse apenas isso também se falaria do Transperceneige), mas por que ambos remetem a universos diegéticos que se iniciam sem grandes prólogos ou explicações, e nos lançam a meio de um movimento, sem quaisquer hipóteses de recorrer a construções certas da sua lógica, razões ou contextualização. Yokoyama, porém, dispensava a matéria verbal e transformava todo o seu acto numa construção formal de design em prol desse mesmo cinetismo. Choihoi pretende recriar uma outra ilusão, moldando personagens, tecendo uma rede de relações, fazendo adivinhar crises e desenvolvimentos e resoluções dessas mesmas relações, abrindo mesmo espaço a preenchimentos psicológicos da parte dos leitores. Mesmo que para depois os negar, deixa que se forme essa vontade e primeiros passos.
O comboio parece vogar ao acaso, ou num circuito fechado ou num circuito permanentemente aberto. Não estamos num mundo límpido. Os comboios agregam carruagens perdidas, aparentemente ao acaso, levando a migrações entre hostes de passageiros, cruzamentos, confusões e desencontros. Cada mudança faz revelar novos jogos de carruagens diferentes (restaurante, sala de jogos, biblioteca, sala de cinema, karaoke, lojas, sauna, supermercado...). Em dois momentos distintos, pós-mudança, a personagem principal dirige-se à carruagem-bar para reencontrar, depreendemos, uma mulher. De ambas as vezes, apresenta-se, mas a mulher, que chora, não o reconhece, e outro homem senta-se ao seu lado. E ele pede qualquer coisa para comer e retorna ao seu lugar. No entanto, leia-se: da primeira vez apresenta-se como “Cheng Yik, amigo de Tze Wah”, da segunda, como “Tsang Lik, amigo de Lok Shan”. Jamais o perdemos de vista, apenas vimos uma nova turba a penetrar no comboio. Haverá alguma duplicidade? Perdemos alguma transição? Falta-nos a compreensão sobre as transfusões? Tratar-se-á de uma realidade paralela? Poderá, ainda, tratar-se tão-simplesmente de uma distracção do autor?
Esta última explicação é a mais tola, claro. Todavia, as outras falham. Quem sabe, nenhuma delas faz sentido... o aparente sem-sentido poderá não ter uma causa lógica.
Mais do que um jogo de enganos, ou uma deliberada mentira ou disfarce, talvez seja esta uma exploração daquele grau de fantasia que pode ocorrer em plataformas de mobilidade extrema, como estações de comboios ou aeroportos. Quando esperamos pela nossa entrada num desses meios de transporte, o grau de fantasia – muitas vezes englobando aquelas de cariz amoroso, se não mesmo sexual – é proporcional em relação ao grau de diferença da viagem para o viajante (das banais, quotidianas ou habituais às inéditas e drásticas). A observação dos outros e, nos casos em que acontece, as trocas de olhares (ou mesmo de palavras, de um fumo, um endereço, um telefone), reveste-se de uma carga eléctrica “do que poderia ser”, cuja verve apenas se torna mais forte quanto menos “pode mesmo vir a ser”. Movimentos naturais nos nossos ambientes sociais modernos, claro está, e matéria para reflexão filosófica (os “não-lugares” de Marc Augé, em certo aspecto pontos nodais de auto-ficcionalização da experiência, recriação da identidade, ainda que a negatividade dessa noção e a incompletude das considerações de Augé face à modernidade devam qualificar com cautela o uso desse conceito) e criativa (os trabalho de Filipa César, hoje esbatido pelas experiências videográficas amadoras da geração youtube). Seja como for, são as máscaras dessas fantasias que parecem ser moldadas, vincadas e que ganham contornos de narratividade na adaptação de Chihoi.
O final do autor da banda desenhada enfraquece a presença da prosa, de certa forma, uma vez que opta por um tom, para mais verbalizado, de “explicação”. Ele próprio explicita no posfácio as transformações necessárias, a resposta que o grafismo concreto impõe na metáfora aberta do conto. A suspensão dessa nota final tornaria mais efectiva a natureza de toda a narrativa, mas a beleza e delicadeza dos desenhos de Chihoi tornam este Il treno numa leitura necessária.
Nota final: agradecimentos a Marta Monteiro, pelo empréstimo do livro.

16 de setembro de 2010

Alec. The Years Have Pants. Eddie Campbell (Top Shelf)

Seguir a obra de Eddie Campbell ao longo dos anos não foi jamais uma tarefa fácil. Fazê-lo obrigaria a um vigor biblioarqueológico raro (e provavelmente dispendioso), e digno de um leitor verdadeiramente entregue à descoberta e fruição de trabalhos fortes de banda desenhada. Um desses leitores é Chris Staros, o qual havia dedicado um dos seus The Staros Report a Campbell em 1996, na qual publicara uma exaustiva (até então) lista bibliográfica, uma entrevista de 13 páginas, e alguns pequenos excertos ou histórias curtas do autor escocês. Passados 13 anos, Staros, enquanto um dos editores da Top Shelf, aposta na publicação de dois grossíssimos volumes antológicos: em primeiro lugar este Alec, que diz respeito ao trabalho entre a autobiografia e a auto-ficção de Campbell, e, ainda a sair este ano, o seu Bacchus, uma espécie de saga super-heróica e mitológica em torno do deus do vinho, reminiscente de The Sandman (sendo a série de Gaiman influenciada pela de Campbell).
Por um lado, é algo estranho falar de “obra-prima” em relação a Alec, tendo em consideração que se trata de uma colecção de muitas, muitas histórias curtas (algumas de apenas uma página), publicadas ao longo de quase 30 anos (de 1980 a 2002, para ser mais preciso, excluindo-se por um lado o The Fate of an Artist, de 2006, por ser a cores, mas incluindo-se depois aqui 35 páginas inéditas), em diferentes condições, formatos, circunstâncias e até mesmo contextos no que diz respeito à realidade social da banda desenhada, enquanto meio, e em termos mundiais. Há ainda diferenças visíveis no estilo, no humor e nas abordagens à matéria, e até quem sabe da “qualidade”; já no compromisso do autor, não. Por outro, que outra palavra singular empregar quando a leitura de um só fôlego nos permite uma experiência que não corresponde àquela da sua leitura compartimentada, por mais separáveis e autónomos que sejam esses livros? É essa experiência que nos faz considerar Alec, The Years Have Pants, talvez em conjunto com From Hell, a colaboração de Campbell e Alan Moore, a sua obras-prima.
Um tema recorrente nas discussões sobre a banda desenhada, quer no interior dos territórios dos fãs quer, sobretudo, noutros círculos, e que infelizmente ainda não se dissipou, e que é explorada num momento deste livro (pelos lábios de Moore) é o facto da banda desenhada ainda não ter criado a sua “Mona Lisa” ou “Em Busca do Tempo Perdido”. Ora, já noutra ocasião havíamos discutido o grave problema de misturar géneros, modos e linguagens, e a necessidade de criar instrumentos e focalizações que tomem em consideração as obras que se produzem no interior de um campo artístico (não que as comparações entre meios seja impertinente, mas terá de procurar um equilíbrio correcto). Campbell, sobretudo no livro/capítulo How to be an artist (um dos mais belos tratados de criação que conheço escritos por um artista, e que nada tem a ver com fórmulas, fama ou sucesso financeiro, mas sim com os mais profundos imperativos da criação, tanto raros como intransmissíveis), tem a oportunidade de mostrar o que pensa sobre o próprio meio, sobre quais pensa serem os autores e obras maiores deste campo, mas poderá passar a considerar – impedindo-o a humildade que apenas se espera do artista – a sua própria obra como parte desse panteão em contínua reformulação e movimento.
Alec é, a um só tempo, um dos títulos percursores da banda desenhada autobiográfica (os autores do livrinho Egoístas, Egocéntricos y Exhibicionistas. La autobiografía el el cómic. Una aproximación, s.d. [2008] irmanam-no a, com correcção, Edmond Baudoin; o próprio Campbell distancia-se de Harvey Pekar, talvez o ur-percursor, mas as razões desse distanciamento escapam ao foco deste texto presente) que viria a marcar a produção em língua inglesa dos anos 1990, como é também uma sua inflexão muito especial, quer dado o seu escopo amplo no tempo e na rede em torno da vida de Campbell quer ainda pela sua própria natureza. Na verdade, nem todos os livros são propriamente do ciclo “Alec”. Se alguns dos livros, sobretudo os primeiros, se podem considerar antes como uma pequena incursão pela auto-ficção (em que um autor se reinventa enquanto personagem de um universo narrativo fictício) ou pela biografia velada (alterando nomes e circunstâncias, à la Fabrice Neaud no seu Journal), tendo Alec Macgarry como o seu alter-ego, outros, os últimos, assumem abertamente “o pacto autobiográfico” (Lejeune) que embrulha numa só entidade autor, narrador e protagonista. Isso poderá levar ao perigo de nos julgarmos íntimos do autor empírico, mas esse é um dos riscos da auto-biografia íntima (Joe Matt, Marco Mendes, Fabrice Neaud, Matt Konture, etc.) e é uma responsabilidade crítica não nos deixarmos tentar por isso.
No que diz respeito ao escopo, é relativamente fácil detectarmos os seus contornos. Ler Alec na sua íntegra (esta até à data) significa testemunhar a vida de Campbell desde a sua meninice (em analepses esparsas ao longo da obra), até à sua vida de estudante de artes, de jovem adulto vivendo os anos áureos do punk e do novo inconformismo face ao crescimento económico do novo mundo ocidental [mas um punk ternurento à The Boys Next Door], a primeira maturidade, o casamento, a paternidade, a gestão familiar, a fundação de uma auto-editora, a mudança para a Austrália, o crescente gosto, cultivado, exigente, medrado, pelos vinhos, o flutuante reconhecimento artístico, as relações criativas, e o lento mas inexorável caminhar para uma maturidade que começa já a ser tintada pelo receio das certeiras decrepitude e morte (em After the Snooter e The Dance of Lifey Death, este último, confessemos, tendo sido o primeiro livro lido com atenção por nós de Campbell, e a impressão que então causou não se dissipou e é até mesmo a fonte de influência de algum trabalho contínuo e outros futuros)... sempre pontilhado pelos pequenos episódios ditos “slice-of-life”, como o vocabulário da filha, a espera pela abertura de uma garrafa que se adivinha superna, o fabrico de uma nova cadeira, a salvação de um crucifixo de ser varrido, ou o ressonar de um colega.
Já a natureza obriga-nos a um escavar mais cauteloso. Campbell faz parte daqueles autores a que temos vindo a chamar de “desenhadores calígrafos”. Em rigor, deveria ser colocado na lista dos seus percursores na banda desenhada, e estipulando ainda que tal aproximação deve tomar em conta o trabalho gráfico de ilustradores tão diversos como Joseph Pennell, Edward Ardizzone e Paul Hogarth (este último foi autor de um livrinho muito interessante, intitulado The Artist as Reporter, que se associa a uma das reflexões sobre os artistas-jornalistas por Campbell em “The Court Sketcher”, parte de After the Snooter, e que é o garante de ancoramento dessa pesquisa e inscrição). De novo, recordemos a condição para essa classificação: o perfeito equilíbrio entre a linha da escrita e a do desenho, onde o pulso, os gestos, a memória física, a respiração é precisamente a mesma, respeitando-se o invisível contínuo entre a figura e a letra desenhada, ambas da mesma mão (nada tem isto a ver com o ter sido a mesma pessoa, nem pertencer ao mesmo texto a ler, mas sim com um plano de afectos apenas existente nas dobras estéticas do trabalho).
A estratégia, digamos, comunicacional (temos algum receio desta palavra, mas não tem apenas a ver com o seu programa de expressão, estético, gráfico, estrutural, e cai mesmo na categoria do discurso transmitido) de Campbell é relativamente homogénea: as páginas apresentam-se em grelhas de 3 x 3, com vinhetas ora do mesmo tamanho ora de dimensões negociáveis (a primeira é por vezes ocupada totalmente pelo título), com legendas narrativas por cima, num tom externo, explicativo, omnisciente e retrospectivo, e na vinheta desenrola-se como que uma punchline ou ancoragem gráfica do que havia sido descrito. Pode ou não conter uma fala directa, e às vezes essa situação desenhada é um contraponto, irónico, humorístico, ao que havia sido dito pelo narrador. Como se existissem duas faixas a decorrer ao mesmo tempo e criando uma textura mais densa. Esse movimento contrapontístico, até no seu sentido musical, que implica duas harmonias independentes, é corroborado pela estrutura narrativa global, ou melhor, por aquilo a que se dá o nome de “escrita”, a escrita de Campbell. O autor, trabalhe nos seus próprios projectos pessoais e intransmissíveis (Alec, Bacchus), em adaptações ou abordagens mais ou menos conseguidas (The Black Diamond Detective Agency, The Amazing Remarkable Monsieur Leotard), sobre personagens/marcas registadas de companhias comerciais (Batman, John Constantine/Hellblazer), consegue arrastá-los todos para o fantástico lodo campbelliano, pejado de um humor muito próprio. Nesse sentido em particular, ele está muito próximo do seu companheiro, o “magus” Alan Moore, menos no que concerne às estruturas perfeitas, simétricas e intricadas do escritor de From Hell, mas antes no que diz respeito à sua capacidade da integração de todo e qualquer trabalho num longo e unificado poema onde reencontramos referências comuns, imagens e temas recorrentes, fraseados duplicados. Música.
Ao contrário da maioria dos autores norte-americanos (ou de língua inglesa) das autobiografias em banda desenhada, Eddie Campbell não opta pela exploração, centralizada e dramatizada, de um qualquer evento traumático (aqui entendido no sentido de algo que não faz parte da experiência comum de um cidadão das nossas sociedades seguras do ocidente), que se exploraria como o cerne de uma vida, o fundamento de um sentido, nem que este se confunda com o do âmago de um livro. É isso o que ocorre em autores como Pekar e Spiegelman, Miriam Katin, Bernice Eisenstein, Debbie Dreschler, Alison Bechdel, Al Davison, Craig Thompson, e tantos outros, e até mesmo Chester Brown, Jeffrey Brown, Joe Matt ou Julie Doucet, menos angulosos nesses “eventos”. Um cancro, a morte dos pais, o Holocausto, sobrevivido ou experienciado, primeiros amores impossíveis, abusos sexuais, droga, outras doenças, etc. Não quer dizer que parte das angústias dessas experiências extremas, ou outras do mesmo calibre, ou outras da mesma condição, não surjam em determinados momentos na longa vida de Alec/Eddie, mas não são elas quem ocupa a zona central do palco nos seus livros. Campbell parece partilhar antes de uma sensibilidade mais europeia (Baudoin, Trondheim, Goblet), em que a narrativa voga de facto por acontecimentos mais microscópicos, quotidianos, partilháveis, com outros seres humanos, na sua mais mediana existência (a verdade é que parece estarmos a atirar Pekar para esse campo “melodramático” por atacado, quando as suas histórias curtas não mergulham nesse território tanto como os livros. Incorremos nas generalizações).
A abordagem de Eddie Campbell aos seus amigos, parentes, conhecidos, não é ligeira ou instrumental, nem elogiosa nem acusatória. A velocidade com que entram, ocupam os seus lugares, saem, não corresponderá com exactidão à experiência, referencial, empiricista, do autor, mas corresponde sem dúvida à experiência humana da forma como as relações pessoais respiram, sem quaisquer ritmos ou melodias exactas e programadas. No entanto, há toda uma ternura pelas pessoas que por estas páginas passam, sejam elas necessariamente recorrentes (desde o amigo de longa data Danny Grey – a primeiríssima palavra do livro – à mulher e aos filhos – objecto, talvez, do tijolo de amor que o fecha) ou sejam absolutamente passageiras – um veterinário que salva uma cria de um cão, a vizinha sobrevivente do Holocausto da sua infância, um bêbado com quem se cruza num festival de banda desenhada... Essa ternura nota-se pela forma como ele estende o seu braço e os inclui nos episódios que resolve resgatar da sua experiência pessoal e transformar em matéria partilhável. Sejam esses episódios compreensivelmente importantes ou marcantes, ou até mesmo impertinentes e mesquinhos, farão parte da parte da vida que Eddie Campbell resolve dar-nos a ver, e, portanto, à presença dessas pessoas ele torna especial, há uma responsabilidade e autoridade que as molda para sempre.
Daí decorre o grande perigo da intimidade do leitor sobre a vida que o autor resolve partilhar na obra com a vida do autor enquanto pessoa real. É o que leva as pessoas a perguntar “isto foi mesmo assim?”. É claro que essa exposição e o acto de ultrapassar a linha (ficcional?) entre a obra/ texto de ficção e a vida propriamente dita pode levar a gestos curiosos e belos... um momento há em que Campbell fala de um vinho de Colares que recebeu de um seu leitor português (não seremos indiscretos aqui), tão apreciador de vinhos como da sua obra. A coincidência e depois descoberta que esse acto desperta leva o autor a tornar esse acontecimento num brevíssimo episódio nesta obra, cuja existência de tinta sobre papel é agora indelével.
Se bem que possamos falar de algumas experiências na banda desenhada idênticas ao género epistolar (penso sobretudo em La Diagonale des Jours, entre Baudoin e Tanguy Dohollau, ou noutro patamar em Leben? Oder Theater? de Charlotte Salomon), é compreensível que as comparações não possam ser feitas de modo directo e sem qualificações. No entanto, em alguns aspectos, a “escrita” de Campbell faz-nos recordar precisamente a experiência que se tem na leitura das cartas de certos escritores, cujas reflexões dirigidas a amigos ou familiares se desdobram a partir de acontecimentos diários para revelar pensamentos e posicionamentos e colocações profundas perante a vida, e até mesmo a arte. Pensamos aqui em Kafka, Flaubert, Virgílio Ferreira. A citação de colegas, a procura de uma construção da sua própria tradição de banda desenhada na qual se vai integrar, ora na continuidade ora na diferença, as pausas que faz em relação aos momentos que a posteriori se apercebe terem sido de charneira na sua vida, as interrupções ao fluxo narrativo através de imagens simbólicas, metáforas visuais mais ou menos complexas, aqui e ali um trecho em que as fronteiras entre a suposta realidade (sempre, claro está, filtrada) e a ficção ruem, a estruturação de um episódio em torno de uma canção, de uma anedota que lhe contaram, de notícias que vagueiam... são as matérias várias que compõem a vivência.
A autobiografia (e todos os outros sub-géneros ou inflexões que lhe estão associados) faz parte também do processo testemunhal. O autor é uma testemunha cujo discurso constrói a verdade a que nos dá acesso. Ou melhor, mais importante do que o facto de ser construído e dito, é o facto de ser endereçado a alguém, como na correspondência. Há duas dimensões que importam salientar aqui. Em primeiro lugar, é evidente que estamos afastados de um processo testemunhal afecto à reportagem ou ao ensaio (Sacco, Squarzoni, Sue Coe), mas toda e qualquer autobiografia transmite uma experiência, uma vivência e, por vezes, uma vida mesmo (nos seus casos maiores, como Campbell, como Baudoin), que se constrói de dentro para fora, formando um texto, e que apenas aquela pessoa poderia testemunhar (e isto não é da ordem da obviedade, mas do justo, do exacto). É aí que encontramos a razão, etimológica mesmo, da palavra “testemunha”, uma prova, uma vontade. Em segundo lugar, tem a ver com a dimensão discursiva do acto testemunhal. Segundo uma lição de Shoshana Felman, este acto é uma “prática discursiva”, um verdadeiro “acto”, ou processo, e não uma “teoria”, algo formulado e fechado, que se transmite independentemente do discurso, do veículo ou das condições (de resto, impossível). É sob essas condições que compreendemos a inscrição necessária de um autor/protagonista no centro dos eventos que tece à sua volta, não por uma razão solipsista ou narcisista – por isso, aquele título espanhol citado acima, mesmo que irónico, é falho de razão em relação a Campbell (e outros autores fortes da autobiografia) –, e o estilo muito próprio deste autor – os “rabiscos” – se torna de uma justeza absoluta, apontando não para um discurso que se deseja (talvez/por vezes ilusoriamente) fechado (próprio desde a ficção juvenil à Tintin e filhos ao modo problematizado de C. Ware), mas para um contínuo processo.
O autor faz acompanhar cada um dos livros com pequenas introduções, e o volume em si tem notas sobre a proveniência e alterações feitas sobre os trabalhos. É curiosa a comparação das edições originais, as primeiras edições em livro e este mesmo volume, para perceber quais essas alterações, as mais das vezes apenas retoques num rosto, numa expressão. Se há casos em que a expressão das personagens muda drasticamente, apenas no seu contexto particular poderíamos entender a amplitude dessa alteração, mas estamos em crer que o autor, havendo-a alterado, considerará o último gesto o mais exacto e justo. Como dissemos, o desenho de Campbell é caligráfico, e também afirmámos como ele se altera em termos de estilo, inscrição e forma de livro para livro, sendo mais acabado – na sua qualidade de devaneio, de assinatura rápida, de incompleto, de trabalhado enquanto esboço – nas histórias que se pretendem organizadas de um modo mais discursivo (How to be an artist), mais rápidos e quase de apontamento nas histórias curtas, adaptações, citações de Shorts e Little Italy. Porém, poderíamos dizer também o contrário, na verdade, já que Grafitti Kitchen se apresenta nesse estilo mais esboçado e veloz, só que nesse caso talvez se prenda com a ligeireza (no sentido de vivência, trabalhos curtos, relações curtas, viagens de trás para diante, mas também no de Calvino, de concentração narrativa). E, ainda corrigindo a primeira generalização, After the Snooter é composto por fragmentos de uma, duas páginas e apresenta o traço mais acabado de Campbell. Talvez porque, nesse caso, o “Snooter”, uma espécie de símbolo pessoal daquela maturidade chata que se instala nas vidas e que prenuncia a morte, se não física e real, pelo menos moral, de curiosidade para com a vida, de hausto, faz com que o autor/protagonista seja confrontado com esse medo da morte. Há uma gravidade que se instala, mas sem jamais, isso nunca acontece em Campbell, descambar no melodrama. As taças de vinho erguidas com prazer tornam isso impossível.
Só nos resta erguer a nossa, à saúde de Alec.
Nota final: a mancha vermelha da capa é apenas um acidente, feliz, na nossa cópia.