“Il n’y a pas de détails dans l’exécution” é uma frase atribuída a Paul Valéry (desconhecemos se com razão ou qual a sua proveniência). Mas é um excelente ponto de partida para a leitura das imagens criadas por André da Loba para estes três projectos diferentes. As suas qualidades constantes fazem-nos encontrar no seu trabalho um estranho mas feliz equilíbrio entre duas propostas imagéticas aparentemente contrárias: se por um lado vemos composições planas, bidimensionais, nítidas, e que preferem uma composição arranjada, por vezes quase simétrica, uma estilização da representação e das figuras mais simplificada do que realista, quase podendo falar de minimalismo, por outro há uma intervenção subtil de texturização das manchas de cor, o que lhes instila uma certa ilusão de volume, e, por isso, de dinamismo, aliado a certos efeitos visuais que recordam técnicas de impressão não-industriais, como a serigrafia ou o stencil, com breves mas decisivos apontamentos de decorativismo pertinente.
Tratamos aqui das imagens para três livros: o poema O Arenque Fumado, de Charles Cros (pela Bruaá), a poesia de Bocage, em Antologia Poética (Kalandraka), e a de Eucanaã Ferraz em Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos (Pi). Em rigor, poderíamos separar os trabalhos que ilustram este último livro dos outros dois, já que a sua matéria original são pequenas esculturas, mas as regras da sua construção e a composição que se elabora das suas fotografias torna-a alvo de continuidade com as demais imagens, sem que essa alteração material implique uma diferenciação de efeitos, de relações com o texto ou de coesão de uma linguagem reconhecível.
André da Loba parece, de certa forma, ter um trabalho que se encaixa em certas tendências contemporâneas, muito informadas por um certo posicionamento, digamos, nostálgico, em relação a certos estilos anteriores da história da ilustração - pensamos em nomes afectos à ilustração colorida e estilizada dos anos 1950, sobretudo nos Estados Unidos, talvez Dahlov Ipcar, Bemelmans, Jim Flora, a animação de Bobe Cannon, alguns trabalhos de Rojankovsky? - mas dedicados a uma busca pessoal pela excelência, por novos campos de relacionamento entre texto e imagem, pela transformação do objecto total, pontos importantes numa contemporaneidade que não pretende, de forma alguma, estar presa a fórmulas. Bastará abrir as páginas da Blab! ou procurar catálogos de alguns dos autores usualmente afectos ao pseudo-movimento Pop Surrealism para encontrar outros artistas que utilizam os mesmos elementos, as mesmas tendências ainda que para os empregar de modos diferentes e, mais importante, com efeitos diversos. E a diferença é substancial.
Estes três livros, como a isso obriga a forma de um livro ilustrado no qual há claramente a precedência, até mesmo histórica, do texto (o texto de Cros é de 1872, e Bocage deveria dispensar explicações; apenas a poesia de Ferraz é nova, mas não o seu trabalho, nem sequer a sua presença em Portugal, como saberão os leitores do assombroso Desassombro, Quasi: 2001), colocam André da Loba no papel de um primeiro leitor, de um leitor-filtro, de um guia visual dos textos. Ele deve encaixar a sua vontade imagética com a dos textos, o que o afasta de meras tendências estilísticas superficiais, e o mergulha na responsabilidade de um tradutor. A sua ilustração, a um só tempo, condiciona e liberta o texto. Mas essas acções são como que duas faces do mesmo gesto: se condiciona, é porque sublinha e enfatiza uma qualquer dimensão do texto, como que “apagando” ou subalternando outras, para dessa forma a libertar, a essa primeira dimensão, de um modo mais visível.
Ana Margarida Ramos fala num seu artigo do trabalho do ilustrador sobre o texto como uma “reactualização do texto e a uma sua apropriação por parte do ilustrador”. O dizer de novo pela primeira vez de Tsvetaeva encontra aí dois pontos importantes: a relação com o tempo (o anterior/passado do texto, o actual do desenho) e a sua transformação na “língua” do ilustrador. André da Loba emprega as cores de um modo reconhecível, cores vivas-baças, vivas no seu tom, baças na sua expressão, trazendo desde logo uma patina de velhice, de tempo, de uso às suas imagens. Uma espécie de longa rodagem, que quererão talvez criar elos de nostalgia com experiências históricas da ilustração, como vimos. De novo: esta ligação do hoje com o ontem é mesmo uma tendência contemporânea, na qual este autor se inscreve na perfeição. Há uma curiosa e extrema tensão entre a abordagem minimalista - figuras reduzidas a contornos e formas simples, grandes áreas de cor, linhas suaves, composições centralizadas, uma ideia de volumetria esbatida - e decorativa - a textura das superfícies, o uso judicioso de pequenas marcas estilizadas para a representação de pormenores que desenham as figuras (um olho, uma boca, etc.).
A assinatura desde artista é muito vincada, espraia-se por toda sua matéria visual. Está no seu estilo, aquela “linguagem auto-suficiente” de que nos fala Barthes, e que “nasce das profundezas da mitologia pessoal e secreta do autor”, mostrando-se (quase) fora das transacções sígnicas habituais… é daí que partem os modos inusitados, pouco nítidos, directos ou literais, como André da Loba faz casar as suas imagens com os textos. Em relação ao bestiário de Ferraz há uma procura por uma clareza maior, com cada monstro descrito no texto encontrando um “corpo” físico, com gravitas (daí a utilização de pequenas esculturas de materiais recicláveis). Mas mesmo a composição faz complicar as relações. Veja-se o poema “Monstro”… ou devemos escrever apenas “onstro”, sendo o “M” da ilustração apenas uma ilustração? [ver imagem ao lado] Veja-se como as duas faces das várias fénixes [ver parágrafo anterior], no seu móbil, abre a leitura à sua eterna reencarnação. Como o lobisomem se esconde no homem como uma gaveta que se abre subitamente [última imagem]…
Em termos de composição, o autor tira quase sempre partido de grandes margens inocupadas pela imagem, submetendo a sua figura a um espaço maior do que parece. Ou então emprega as várias técnicas que colocam as figuras como que entre o espaço da página e um outro para além dela, tornando-o aberto, infinito, fluido. No caso do Arenque, estando a falar de uma imagem que é o próprio suporte, o efeito mantém-se, pela utilização da caixa-capa, ou das duas primeiras (?) páginas [ver imagem ao lado] que servem de ideia de um livro que depois se afasta deixando todo o peixe-escada vagar no seu próprio espaço livre…
E no caso de Bocage, que línguas se cruzam na união entre texto e imagem? Como, de “Apenas vi do dia a luz brilhante”, surge uma bojuda garrafa branca encerrando um pequeno barquinho (de papel!) vermelho? Será esse barco aquele que “Vagando a curva Terra” perdera o “doce agrado” da mãe e nessa imagem mostre o seu desejo de regresso e protecção? [ver imagem ao lado] Porque é que em “Marília, nos teus olhos buliçosos”, a página ilustrada se abre de um retrato da amada do soneto para dar lugar a dois pavões cruzando-se heraldicamernte? Serão eles (ele e ela) a Virtude e Formosura “dando as mãos”, nas cores, sob a pátina do semblante que víramos de Marília, também ela coroada? [ver imagens em baixo]Ou tratar-se-á de buscas ainda mais profundas e secretas entre a leitura do artista e sua forma de tradução?
Dos três livros, é natural que O Arenque Fumado, parente dos livros mecânicos, seja aquele que mais suscite acções específicas de leitura e performance nos leitores/contadores (aliás, ele é acompanhado de umas notas de performatividade de Coquelin Cadet), mas a verdade é que a dinâmica de transfiguração dos textos de Bocage, Cros e Ferraz, pelos instrumentos subtis e desviantes de André da Loba, torna qualquer uma destas experiências de leitura já de si um exercício de feliz desequilíbrio, tal como as escolhas estranhas do próprio bicho de sete cabeças do poeta brasileiro: “Se uma escolhe o seu caminho,\as outras vão por ali?”.
Notas: agradecimentos à Bruaá e à Kalandraka, pela oferta dos respectivos livros.
31 de março de 2011
21 de março de 2011
Três trabalhos (criados, produzidos ou coordenados) de Eduardo Salavisa.
No seu livro mais conhecido, L’invention du quotidien (vol. 1, Arts de faire), Michel de Certau elabora uma oposição entre o olhar panorâmico - um olhar de cima que abarca uma certa expansão e o transforma numa unidade determinada, associada à ideia de propriedade industrial burguesa e a novos modos de controle e poder, relativo ao que se chama, por sua vez, de olhar panóptico (aliás, como se sabe, de Certau responde nessa parte do seu livro a Foucault) - e um outro olhar, mais atento às tensões móveis existentes ao rés-da-rua, ao quotidiano, e que emerge daquilo que ele chama de práticas do espaço. Essa oposição é, portanto, entre “o modo colectivo da gestão” e “o modo individual de uma reapropriação”, o qual leva a processos “multiformes, resistentes, astuciosos e obstinados”. Temos, portanto, de um lado os discursos que pretendem “ideologizar”, e do outro, “combinações de poder sem identidade visível, sem perspectivas perceptíveis, sem transparência racional - impossíveis de gerir”. Se bem que estas palavras e as suas explanações adicionais façam compreender que essas mesmas práticas do quotidiano não permitam a criação de marcas gráficas, isto é, de marcas legíveis ou sequer visíveis, e mesmo que isto represente uma certa violência para com o seu pensamento, procuremos formas de entender como fazer representar essas mesmas práticas. Ou por outras palavras, como transformar o passeio e a observação em desenhos. (Mais)
14 de março de 2011
Les Noceurs. Brecht Evens (Actes Sud).
O título original, em flamengo, desta obra, é Ergens waar je niet wil zijn, que significa “Onde não queres estar”, e é esse o sentido que tem sido mantido na maioria das traduções, excepto esta, a francesa, que o nega totalmente e escolhe uma descrição mais objectiva (no sentido do objecto retratado) da trama e das personagens, os “foliões“ ou “pândegos”.
A ideia não deixa de ser justa, pois as três linhas narrativas que se unem em torno de um só nódulo vogam em torno de pessoas em festas, e as sensações e humores que com elas estão associadas. No entanto, essa opção perde acesso a uma condição poética que o autor procurou tecer nas palavras escolhidas como título, e nas malhas de cor que cobrem estas páginas.
A história em si, fosse ela resumida e transformada num pequeno texto, tornar-se-ia algo banal: o primeiro capítulo mostra um grupo de amigos a reunirem-se numa festa, no apartamento de uma personagem, Gert, festa essa que parece ser morna demais por não estar presente um tal de Robbie, que todos parecem admirar; o segundo segue o périplo de uma das convivas anteriores, Naomi, que de patinho feio se transforma em ninfeta da noite, se dirige à discoteca Disco Harem, e lá é conquistada pelo mítico Robbie (conquista essa que nasce de um outro engano); o terceiro ainda se desenrola na mesma discoteca, sob o signo da festa, mas já aponta um seu possível fim, com Gert a encontrar-se com Robbie, e a conversarem - ou melhor, com cada uma das personagens a emitir um discurso totalmente incompatível - para se aperceberem-se que não já há ponto de encontro entre os dois, apesar de ambos o pensarem. Finalmente, o livro ainda tem uma mão-cheia de páginas que mostra um diálogo entre Naomi e a sua amiga cabeleireira, com quem fora à discoteca, a discutirem por telefone os acontecimentos dessa noite (que nós testemunhámos e agora não escutamos). Será algo de desequilibrado dizer que o livro é sobre Robbie, ou sobre a relação de Robbie e Gert, ou Robbie e Naomi, ou outras combinações desta espécie. Robbie é a quintessência do folião - a maneira de se vestir, o seu espírito, a sua disponibilidade para as festas, tudo parece transformá-lo num modelo a imitar pelos outros, a admirar, a tornar-se objecto de desejo, ele é o hedonista total… Gert é um homem mais apagado, com responsabilidades diárias, que tenta seguir ainda um qualquer espírito de festa mas que sempre falha, pois a sua coragem e entrega (como na desistência do salto final para cima das pessoas na discoteca) não é jamais verdadeiro. Ou seja, cria-se aqui uma dicotomia algo simplista, e até pateta, entre “aqueles que crescem e se tornam cinzentos” - Gert é desenhado a cinzento - e os outros que “resistem na festa”, mais coloridos. Há, portanto, uma redução do espírito humano, uma perspectiva algo adolescente da vida, entre os que ficam e os que partem.
No entanto, Les Noceurs tem uma força magnífica que reside não nessa camada, cujo exercício de (nossa) redução textual poderá enfraquecer, mas antes no seu como, na sua matéria visual e transportadora. Este livro é literalmente uma orgia de cor. Evens utiliza ecolines, aguarelas, aguadas, tinta-da-china para construir malhas apertadas das mais variadas cores, estas sombrias, aquelas vivíssimas, aqui espalhando-se numa composição livre e abarcando as duas páginas visíveis, ali estruturando-se em várias vinhetas regulares… Numa entrevista (citada na crítica de Ng Suat Tong no Hooded Utilitarian), Evens explica como a origem desta abordagem de transparências se encontra em George Grosz, numa das aguarelas de Ecce Homo. No entanto, se no caso de Grosz essas transparências vivem a sua força na sua dimensão formal, o facto de estarem sob a alçada de um programa narrativo nas mãos de Evens transformam o propósito dessas mesmas transparências, ou pelo menos daquela função que poderá ser alvo de interpretação.
Apesar daquela introdução pela sinopse, essa interpretação não é totalmente linear (como nenhuma obra de arte, enfim) nem simplista. Há mesmo escolhas estruturais, moleculares, que levam a vacilações curiosas. Por exemplo, nem sempre é claro como deveremos atribuir as falas às personagens visíveis (apesar das cores ajudarem), e torna-se frágil uma associação directa e descomplicada entre as histórias individuais delas, mas parte dessa confusão (mimada pelo uso das linhas-cores) é propositada, e aproxima-se do cerne de Les Noceurs. Há um momento em que uma história é contada, sendo atribuída ao quase-mítico Robbie mas que afinal pertence a uma outra (assim colocada numa posição subalterna em relação a Robbie). São essas distracções, erros de atribuição, trânsitos e transparências que parecem constituir a matéria que Evens pretende explorar. A leitura de Tong, aliás, é intrigante e estimulante, e os instrumentos provenientes da mitologia e da religião (a tal história mal-atribuída pode, de facto, ser lida como o comportamento dos mitos), empregues em torno da personagem Robbie, são um excelente ponto de partida. No entanto, perguntamo-nos se o peso dessa leitura não se escapa da malha deste livro, já que se explora antes uma certa leveza, sublinhada pela sua dimensão visual. Devido às sobreposições (é possível ver os contornos de um móvel através dos corpos de uma personagem, ou os pormenores de uma personagem através de outras, etc.), “as pessoas são transparentes”, apetece dizer. E isto seria não só um rápido descritivo formal mas já estaria a apontar a parte do assunto que se desdobra nestas páginas...
Poderemos partir ainda de um outro prisma. Há um momento em que as personagens, ao atravessarem os labirínticos recessos da estranha discoteca (Disco Harem), atravessam uma sala – agora de recreação – que foi um “delfinário”, depois um bar de strip-tease e finalmente um restaurante indiano. A imagem que vemos na vinheta representará um mural, e nele vemos sobrepostos elementos gráficos facilmente reconhecíveis, mas que se mesclam e entrosam, cada parte pertencente a um dos períodos mas encaixando-se perfeitamente uns nos outros como se tivessem sido feitos ao mesmo tempo (e, na camada do fabrico do livro, foram-no, claro): uma pata do tigre parece uma barbatana, os seios da mulher coberto pelo bikini parecem ser os chapéus dos dois homens de trajes indianos... A própria discoteca é paulatina e sequencialmente revelada como um espaço quase infinito, havendo várias pistas de dança, pisos para restaurantes atarefados, salas de concerto mais íntimos, salões de bacanal, uma floresta atravessada por bandas, uma galeria dos “anciãos foliões”, uma sala de esgrima (o espaço que se descreveu com as três vidas anteriores). Quererá a revelação deste espaço, aliada à técnica das coberturas de aguarelas e ecolines, servir de figura e chave a todo o livro? Serão as pessoas personagens, então, ou bem pelo contrário, densas apenas na medida em que se constroem através de várias camadas, visíveis sempre de modos diferenciados de acordo com a posição do observador? Robbie é admirado, mas é também imitado - existem imagens que mostram chusmas de sósias de Robbie, quase como num livro de Onde está o Wally? - o que nos leva a pensar que ele não é, de forma alguma, um indivíduo, mas apenas um modelo. Se ele parece sedutor e divertido, e consegue convencer Naomi a ir com ele para a cama (a cena de sexo, explícita, e variando as técnicas do desenho, é nela mesmo um momento inteligentíssimo de representação), depois disso revela ser vazio, o que é corroborado pela sua conversa com Gert, o qual, se antes parecera patético, nos surge então como uma personagem com algo para contar, mas que acaba por não ter direito à palavra no livro, e acaba por ser visto como um simples desistente.
Quem é o alvo que diz não querer estar onde está? Este Gert? Naomi, que termina a sua noite de sonho com uma dúvida terrível? O próprio Robbie, o qual, apesar de nada verbalizar nesse sentido, poderá ser visto como esse corpo “esvaziado”, por corresponder mais à imagem dos outros do que à dele mesmo? Outras personagens, algumas sendo mais identificáveis por surgirem várias vezes ou terem algumas características facilmente visíveis? Se há uma insistência, por razões óbvias, de citar Grosz como uma referência, algumas cenas - de rua, nas escadas do prédio de Gert, em filas de músicos ou de pessoas a dançar - recordarão procissões de foliões tais como ocorrerão em variadíssimas situações espalhadas no mundo (Carnaval, Anos Novos, natais de seres divinos, etc.) mas mais particularmente, e até pelas circunstâncias artísticas-geográficas do autor, os quadros das turbamultas de Ensor. Nesta imagem, vemos o que parece ser um grupo de alunos com cabeças de cogumelos, no canto uma espécie de membros de uma banda militar, acima duas raparigas quase gémeas, e personagens avulsas que se parecem gnomos, caricaturas estilizadas (Tomi Ungerer tabém parece estar por ali). E muitas outras cenas de Les Noceurs mostram personagens irmanáveis a estas, mereçam ou não nomes próprios e funções específicas, importando apenas que eles surgem para adensar o número e a massa visual do livro.
Quem dirá então, “Onde não queres estar”? Não sabemos se haverá uma resposta mais certeira, ou pelo menos nós não a saberemos. Mas como uma canção - “Estou bem…./aonde não estou/ porque eu só quero ir/aonde eu não vou” -, talvez seja o saborear do livro, à medida que se o saboreia, mais importante do que esperar pelo fim dela, ou da festa.
A ideia não deixa de ser justa, pois as três linhas narrativas que se unem em torno de um só nódulo vogam em torno de pessoas em festas, e as sensações e humores que com elas estão associadas. No entanto, essa opção perde acesso a uma condição poética que o autor procurou tecer nas palavras escolhidas como título, e nas malhas de cor que cobrem estas páginas.
A história em si, fosse ela resumida e transformada num pequeno texto, tornar-se-ia algo banal: o primeiro capítulo mostra um grupo de amigos a reunirem-se numa festa, no apartamento de uma personagem, Gert, festa essa que parece ser morna demais por não estar presente um tal de Robbie, que todos parecem admirar; o segundo segue o périplo de uma das convivas anteriores, Naomi, que de patinho feio se transforma em ninfeta da noite, se dirige à discoteca Disco Harem, e lá é conquistada pelo mítico Robbie (conquista essa que nasce de um outro engano); o terceiro ainda se desenrola na mesma discoteca, sob o signo da festa, mas já aponta um seu possível fim, com Gert a encontrar-se com Robbie, e a conversarem - ou melhor, com cada uma das personagens a emitir um discurso totalmente incompatível - para se aperceberem-se que não já há ponto de encontro entre os dois, apesar de ambos o pensarem. Finalmente, o livro ainda tem uma mão-cheia de páginas que mostra um diálogo entre Naomi e a sua amiga cabeleireira, com quem fora à discoteca, a discutirem por telefone os acontecimentos dessa noite (que nós testemunhámos e agora não escutamos). Será algo de desequilibrado dizer que o livro é sobre Robbie, ou sobre a relação de Robbie e Gert, ou Robbie e Naomi, ou outras combinações desta espécie. Robbie é a quintessência do folião - a maneira de se vestir, o seu espírito, a sua disponibilidade para as festas, tudo parece transformá-lo num modelo a imitar pelos outros, a admirar, a tornar-se objecto de desejo, ele é o hedonista total… Gert é um homem mais apagado, com responsabilidades diárias, que tenta seguir ainda um qualquer espírito de festa mas que sempre falha, pois a sua coragem e entrega (como na desistência do salto final para cima das pessoas na discoteca) não é jamais verdadeiro. Ou seja, cria-se aqui uma dicotomia algo simplista, e até pateta, entre “aqueles que crescem e se tornam cinzentos” - Gert é desenhado a cinzento - e os outros que “resistem na festa”, mais coloridos. Há, portanto, uma redução do espírito humano, uma perspectiva algo adolescente da vida, entre os que ficam e os que partem.
No entanto, Les Noceurs tem uma força magnífica que reside não nessa camada, cujo exercício de (nossa) redução textual poderá enfraquecer, mas antes no seu como, na sua matéria visual e transportadora. Este livro é literalmente uma orgia de cor. Evens utiliza ecolines, aguarelas, aguadas, tinta-da-china para construir malhas apertadas das mais variadas cores, estas sombrias, aquelas vivíssimas, aqui espalhando-se numa composição livre e abarcando as duas páginas visíveis, ali estruturando-se em várias vinhetas regulares… Numa entrevista (citada na crítica de Ng Suat Tong no Hooded Utilitarian), Evens explica como a origem desta abordagem de transparências se encontra em George Grosz, numa das aguarelas de Ecce Homo. No entanto, se no caso de Grosz essas transparências vivem a sua força na sua dimensão formal, o facto de estarem sob a alçada de um programa narrativo nas mãos de Evens transformam o propósito dessas mesmas transparências, ou pelo menos daquela função que poderá ser alvo de interpretação.
Apesar daquela introdução pela sinopse, essa interpretação não é totalmente linear (como nenhuma obra de arte, enfim) nem simplista. Há mesmo escolhas estruturais, moleculares, que levam a vacilações curiosas. Por exemplo, nem sempre é claro como deveremos atribuir as falas às personagens visíveis (apesar das cores ajudarem), e torna-se frágil uma associação directa e descomplicada entre as histórias individuais delas, mas parte dessa confusão (mimada pelo uso das linhas-cores) é propositada, e aproxima-se do cerne de Les Noceurs. Há um momento em que uma história é contada, sendo atribuída ao quase-mítico Robbie mas que afinal pertence a uma outra (assim colocada numa posição subalterna em relação a Robbie). São essas distracções, erros de atribuição, trânsitos e transparências que parecem constituir a matéria que Evens pretende explorar. A leitura de Tong, aliás, é intrigante e estimulante, e os instrumentos provenientes da mitologia e da religião (a tal história mal-atribuída pode, de facto, ser lida como o comportamento dos mitos), empregues em torno da personagem Robbie, são um excelente ponto de partida. No entanto, perguntamo-nos se o peso dessa leitura não se escapa da malha deste livro, já que se explora antes uma certa leveza, sublinhada pela sua dimensão visual. Devido às sobreposições (é possível ver os contornos de um móvel através dos corpos de uma personagem, ou os pormenores de uma personagem através de outras, etc.), “as pessoas são transparentes”, apetece dizer. E isto seria não só um rápido descritivo formal mas já estaria a apontar a parte do assunto que se desdobra nestas páginas...
Poderemos partir ainda de um outro prisma. Há um momento em que as personagens, ao atravessarem os labirínticos recessos da estranha discoteca (Disco Harem), atravessam uma sala – agora de recreação – que foi um “delfinário”, depois um bar de strip-tease e finalmente um restaurante indiano. A imagem que vemos na vinheta representará um mural, e nele vemos sobrepostos elementos gráficos facilmente reconhecíveis, mas que se mesclam e entrosam, cada parte pertencente a um dos períodos mas encaixando-se perfeitamente uns nos outros como se tivessem sido feitos ao mesmo tempo (e, na camada do fabrico do livro, foram-no, claro): uma pata do tigre parece uma barbatana, os seios da mulher coberto pelo bikini parecem ser os chapéus dos dois homens de trajes indianos... A própria discoteca é paulatina e sequencialmente revelada como um espaço quase infinito, havendo várias pistas de dança, pisos para restaurantes atarefados, salas de concerto mais íntimos, salões de bacanal, uma floresta atravessada por bandas, uma galeria dos “anciãos foliões”, uma sala de esgrima (o espaço que se descreveu com as três vidas anteriores). Quererá a revelação deste espaço, aliada à técnica das coberturas de aguarelas e ecolines, servir de figura e chave a todo o livro? Serão as pessoas personagens, então, ou bem pelo contrário, densas apenas na medida em que se constroem através de várias camadas, visíveis sempre de modos diferenciados de acordo com a posição do observador? Robbie é admirado, mas é também imitado - existem imagens que mostram chusmas de sósias de Robbie, quase como num livro de Onde está o Wally? - o que nos leva a pensar que ele não é, de forma alguma, um indivíduo, mas apenas um modelo. Se ele parece sedutor e divertido, e consegue convencer Naomi a ir com ele para a cama (a cena de sexo, explícita, e variando as técnicas do desenho, é nela mesmo um momento inteligentíssimo de representação), depois disso revela ser vazio, o que é corroborado pela sua conversa com Gert, o qual, se antes parecera patético, nos surge então como uma personagem com algo para contar, mas que acaba por não ter direito à palavra no livro, e acaba por ser visto como um simples desistente.
Quem é o alvo que diz não querer estar onde está? Este Gert? Naomi, que termina a sua noite de sonho com uma dúvida terrível? O próprio Robbie, o qual, apesar de nada verbalizar nesse sentido, poderá ser visto como esse corpo “esvaziado”, por corresponder mais à imagem dos outros do que à dele mesmo? Outras personagens, algumas sendo mais identificáveis por surgirem várias vezes ou terem algumas características facilmente visíveis? Se há uma insistência, por razões óbvias, de citar Grosz como uma referência, algumas cenas - de rua, nas escadas do prédio de Gert, em filas de músicos ou de pessoas a dançar - recordarão procissões de foliões tais como ocorrerão em variadíssimas situações espalhadas no mundo (Carnaval, Anos Novos, natais de seres divinos, etc.) mas mais particularmente, e até pelas circunstâncias artísticas-geográficas do autor, os quadros das turbamultas de Ensor. Nesta imagem, vemos o que parece ser um grupo de alunos com cabeças de cogumelos, no canto uma espécie de membros de uma banda militar, acima duas raparigas quase gémeas, e personagens avulsas que se parecem gnomos, caricaturas estilizadas (Tomi Ungerer tabém parece estar por ali). E muitas outras cenas de Les Noceurs mostram personagens irmanáveis a estas, mereçam ou não nomes próprios e funções específicas, importando apenas que eles surgem para adensar o número e a massa visual do livro.
Quem dirá então, “Onde não queres estar”? Não sabemos se haverá uma resposta mais certeira, ou pelo menos nós não a saberemos. Mas como uma canção - “Estou bem…./aonde não estou/ porque eu só quero ir/aonde eu não vou” -, talvez seja o saborear do livro, à medida que se o saboreia, mais importante do que esperar pelo fim dela, ou da festa.
13 de março de 2011
A Single Match. Oji Suzuki (Drawn & Quarterly)
Aqueles leitores que tiveram oportunidade de ler as edições francesas do trabalho de Suzuki, sobretudo Le Kimono Rouge, não serão particularmente surpreendidos pela natureza deste trabalho, mas para os leitores anglófonos, este é uma forma de conhecer o mundo fantástico e onírico deste autor japonês. Em relação a essa outra antologia, este volume da D&Q tem apenas 2 histórias em comum, logo, 9 “novas”. Tal como o volume francês, também este não contém qualquer informação específica e complementar que nos ajude a ler essas histórias de um modo mais contextualizado: não sabemos quando foram publicadas originalmente, se se tratam de peças da Garo ou de outras publicações, quais as suas datas exactas, etc. Se a ideia de se tratar de uma colheita que atravessa a produção do autor ao longo das décadas vem à tona, isso dever-se-á mais às diferenças do desenho do que de uma informação mais certeira. Mas fica-nos a felicidade de acrescentarmos mais conhecimento em relação a um importante autor de uma tipologia da banda desenhada japonesa ainda a merecer um destaque especial e uma atenção cada vez mais aprofundada, até para contrabalançar uma ideia feita que se teme venha a moldar indelevelmente a imagem da mangá em geral.
Uma das histórias incluídas neste pequeno volume, e que dá nome à colecção, “Um único fósforo”, poderá recordar-nos o famoso conto de Andresen. Um miúdo encontra-se às portas da sua vila e encontra-se com um vendedor ambulante, que lhe dá lume para um cigarro. No intervalo dessa brevíssima luz, desdobram-se imagens soltas, fiapos de memórias ou de sonhos ou de desejos. Não percebemos com exactidão quais, ou se de facto há alguma diferença, ou a quem pertencem... Essa natureza fragmentária atravessa todos os contos de Suzuki, e não conseguimos imaginar outro modo melhor que o da banda desenhada em que o autor conseguisse moldar as mesmas emoções, ritmos e toques, pois esse carácter fragmentário está presente à escala de cada vinheta: há histórias em que parece que cada vinheta não segue qualquer tipo de encadeamento lógico subsumido à vontade narrativa ou de clareza referencial, mas antes como se se apresentassem como peças soltas, as quais perfarão um tecido coeso apenas nas mãos do leitor, na sua própria interpretação (mas não de todos os leitores, talvez…).
O desenho de Suzuki não é sólido nem virtuoso como se poderá esperar num estreito prisma de referências, ou estará abaixo do desejo de beleza consensual que muitas vezes se busca nesta arte, mas é de uma personalidade equilibradíssima para electrificar a fragilidade destas personagens e destas histórias. É essa uma boa forma de as descrever: frágeis mas electrificadas. Há uma energia fortíssima, uma tensão que de tão forte acaba por tornar a sua matéria inerte, uma sequência de rochas inamovíveis. E, se realmente estamos perante um leque alargado no que diz respeito à sua cronologia de trabalho, veremos aqui histórias de várias naturezas, umas com composições de página mais clássicas, com muitas vinhetas estruturando acções quotidianas e naturalistas, e outras mais suaves, digamos assim, com um número reduzido de imagens, mais inclinadas à emergência de uma sensação do que de um evento.
Como dissemos, atrás, aquela noção de vagueza informativa, ainda que plasmando-se na perfeição à obra de Suzuki, deixa-nos todavia perplexos em relação a alguns aspectos. Perguntamo-nos se alguns dos aspectos, elementos ou acontecimentos das histórias não poderiam, dado um maior contexto ou informações culturais específicas, tornarem-se mais claras. Isto é, até que ponto será a vagueza, a indefinição, o texto “aberto”, não fruto da própria intencionalidade (e intensidade) onírica e poética da obra, mas de um mais básica incompreensão cultural? É aí que tememos poder haver o perigo de uma sobreinterpretação cuja contextualização histórica resolveria e tornaria mais ancorada. Não há dúvida de que existem escolhas do autor em construir com mais solidez os ambientes, um espaço envolto numa bruma de sensações, do que uma decidida diegese. “Fruit of the Sea” parece ser aquela que mais avança uma história concreta, passível de ser tratada por uma sinopse clara, mas mesmo assim prefere seguir uma dimensão acrónica. Eventualmente, “Mountain Town” e “Crystal Thoughts”, mas também “Town of Song”, serão aquelas com traços mais autobiográficos - sobre uma infância pobre, revelando uma relação de uma criança com desejos como as outras crianças mas incompatibilizadas com a miséria do pai, e mesmo abertamente em conflito com as escolhas e personalidade do pai (nesse aspecto, o retrato social que faz do Japão do pós-guerra inscreve-se numa veia mais realista, o que é inédito ou menos comum na banda desenhada japonesa da sua geração, sempre favorecendo géneros escapistas, mais ou menos adultos) - mas não sabemos até que ponto é que a ficção também se joga nesse campo. Essas histórias contrastam com um par de outras de contornos literalmente surrealistas… Em “Evening Primrose”, uma jovem mulher encontra-se com o seu namorado, que nada mais é do que uma cabeça flutuante; em “Tale of Remembrance”, duas personagens, uma menina e um menino, parecem encontrar-se, ou talvez recordarem-se um do outro, para se dissiparem no céu nocturno, mas sob uma narração que não sabemos a quem entregar. “Color of Rain” começa por mostrar uma criança a sofrer uma febre, e a encontrar-se com o seu irmão mais velho… que nunca teve, negligenciando assim os cuidados que a velha avó lhe presta: as duas perdas misturam-se, a distracção por uma pessoa pauta-se pela obsessão por outra.
Oji Suzuki, através de todas e cada uma destas histórias, faz um retrato dos traços mais profundos das dúvidas ou temores morais que nos atravessam enquanto seres humanos, nas relações ou nas pequenas lutas quotidianas, mas sem nunca construir retratos directos dessas mesmas realidades. O autor prefere percorrer caminhos desviantes, de elementos mais rarefeitos, mas que possivelmente chegam de um modo mais penetrante e que atingem efeitos mais duradouros. Sentimentos mais próximos da angústia, da depressão, da tristeza, e da resignação, do que de qualquer outras emoções marcam o tom destas histórias. Se alguma alegria houver, será sempre mascarrada por uma dor qualquer, uma ausência, uma perda… A matéria é a dos sonhos, da poesia. A condição humana é transfigurada pelos caminhos da poesia, tal como esta é possível transmitir pela banda desenhada.
São obras como esta que dividem os leitores entre aqueles que vêem um só fósforo, e os que vêem o brilho nele liberto.
Uma das histórias incluídas neste pequeno volume, e que dá nome à colecção, “Um único fósforo”, poderá recordar-nos o famoso conto de Andresen. Um miúdo encontra-se às portas da sua vila e encontra-se com um vendedor ambulante, que lhe dá lume para um cigarro. No intervalo dessa brevíssima luz, desdobram-se imagens soltas, fiapos de memórias ou de sonhos ou de desejos. Não percebemos com exactidão quais, ou se de facto há alguma diferença, ou a quem pertencem... Essa natureza fragmentária atravessa todos os contos de Suzuki, e não conseguimos imaginar outro modo melhor que o da banda desenhada em que o autor conseguisse moldar as mesmas emoções, ritmos e toques, pois esse carácter fragmentário está presente à escala de cada vinheta: há histórias em que parece que cada vinheta não segue qualquer tipo de encadeamento lógico subsumido à vontade narrativa ou de clareza referencial, mas antes como se se apresentassem como peças soltas, as quais perfarão um tecido coeso apenas nas mãos do leitor, na sua própria interpretação (mas não de todos os leitores, talvez…).
O desenho de Suzuki não é sólido nem virtuoso como se poderá esperar num estreito prisma de referências, ou estará abaixo do desejo de beleza consensual que muitas vezes se busca nesta arte, mas é de uma personalidade equilibradíssima para electrificar a fragilidade destas personagens e destas histórias. É essa uma boa forma de as descrever: frágeis mas electrificadas. Há uma energia fortíssima, uma tensão que de tão forte acaba por tornar a sua matéria inerte, uma sequência de rochas inamovíveis. E, se realmente estamos perante um leque alargado no que diz respeito à sua cronologia de trabalho, veremos aqui histórias de várias naturezas, umas com composições de página mais clássicas, com muitas vinhetas estruturando acções quotidianas e naturalistas, e outras mais suaves, digamos assim, com um número reduzido de imagens, mais inclinadas à emergência de uma sensação do que de um evento.
Como dissemos, atrás, aquela noção de vagueza informativa, ainda que plasmando-se na perfeição à obra de Suzuki, deixa-nos todavia perplexos em relação a alguns aspectos. Perguntamo-nos se alguns dos aspectos, elementos ou acontecimentos das histórias não poderiam, dado um maior contexto ou informações culturais específicas, tornarem-se mais claras. Isto é, até que ponto será a vagueza, a indefinição, o texto “aberto”, não fruto da própria intencionalidade (e intensidade) onírica e poética da obra, mas de um mais básica incompreensão cultural? É aí que tememos poder haver o perigo de uma sobreinterpretação cuja contextualização histórica resolveria e tornaria mais ancorada. Não há dúvida de que existem escolhas do autor em construir com mais solidez os ambientes, um espaço envolto numa bruma de sensações, do que uma decidida diegese. “Fruit of the Sea” parece ser aquela que mais avança uma história concreta, passível de ser tratada por uma sinopse clara, mas mesmo assim prefere seguir uma dimensão acrónica. Eventualmente, “Mountain Town” e “Crystal Thoughts”, mas também “Town of Song”, serão aquelas com traços mais autobiográficos - sobre uma infância pobre, revelando uma relação de uma criança com desejos como as outras crianças mas incompatibilizadas com a miséria do pai, e mesmo abertamente em conflito com as escolhas e personalidade do pai (nesse aspecto, o retrato social que faz do Japão do pós-guerra inscreve-se numa veia mais realista, o que é inédito ou menos comum na banda desenhada japonesa da sua geração, sempre favorecendo géneros escapistas, mais ou menos adultos) - mas não sabemos até que ponto é que a ficção também se joga nesse campo. Essas histórias contrastam com um par de outras de contornos literalmente surrealistas… Em “Evening Primrose”, uma jovem mulher encontra-se com o seu namorado, que nada mais é do que uma cabeça flutuante; em “Tale of Remembrance”, duas personagens, uma menina e um menino, parecem encontrar-se, ou talvez recordarem-se um do outro, para se dissiparem no céu nocturno, mas sob uma narração que não sabemos a quem entregar. “Color of Rain” começa por mostrar uma criança a sofrer uma febre, e a encontrar-se com o seu irmão mais velho… que nunca teve, negligenciando assim os cuidados que a velha avó lhe presta: as duas perdas misturam-se, a distracção por uma pessoa pauta-se pela obsessão por outra.
Oji Suzuki, através de todas e cada uma destas histórias, faz um retrato dos traços mais profundos das dúvidas ou temores morais que nos atravessam enquanto seres humanos, nas relações ou nas pequenas lutas quotidianas, mas sem nunca construir retratos directos dessas mesmas realidades. O autor prefere percorrer caminhos desviantes, de elementos mais rarefeitos, mas que possivelmente chegam de um modo mais penetrante e que atingem efeitos mais duradouros. Sentimentos mais próximos da angústia, da depressão, da tristeza, e da resignação, do que de qualquer outras emoções marcam o tom destas histórias. Se alguma alegria houver, será sempre mascarrada por uma dor qualquer, uma ausência, uma perda… A matéria é a dos sonhos, da poesia. A condição humana é transfigurada pelos caminhos da poesia, tal como esta é possível transmitir pela banda desenhada.
São obras como esta que dividem os leitores entre aqueles que vêem um só fósforo, e os que vêem o brilho nele liberto.
8 de março de 2011
Sophie Crumb: Evolution of a Crazy Artist (Norton)
Este livro tem dois prefácios. Um pela mãe, Aline Kominsky-Crumb, o outro pelo pai, Robert Crumb. A mãe garante que este projecto não se trata de mais um gesto de “crumbsploitation”, e acreditamos nela. O pai explicita que o fito não é simplesmente “gabar o talento” da filha, mas dar a conhecer a evolução progressiva “de uma pessoa, através do meio do desenho”. E é verdade. Se bem que como todos os pais, forçosamente babados por quaisquer mínimos talentos que os seus filhos tenham, os Crumb o demonstrem também em relação à sua Sophie, não há qualquer dúvida, porém, que este é um projecto incrível e inédito.
Muitas vozes surgirão salientando o facto de que os desenhos de Sophie Crumb, ou que a sua arte enquanto autora de banda desenhada (Bellybutton Comix), não são matéria de grandes méritos ou elogios, e, em parte, não deixarão de ter razão. Parte daquilo que tem levado à sua produção e publicação poderá dever-se a uma “magia” emprestada pelo glamour dos pais, é bem possível... Se bem que algumas desss vozes também negariam os encantos da abordagem tosca e flutuante de Aline Kominsky, e até se atreveriam a confundir o percurso dessa artista pela relação que teria mais tarde co Crumb.
Todavia, a chave deste projecto não se prende somente ao facto desta artista em particular ter como apelido um dos nomes mais sonantes da banda desenhada moderna norte-americana, e de impacto a nível global e trans-geracional. Existem muitos livros sobre o desenho infantil (usualmente acompanhados de abordagens pedopsicológicas ou terapêuticas), tal como existirão muitos livros que reunem pelo menos parte do acervo da criação de um artista, englobando os importantes anos de desenvolvimento, se calhar até mesmo do período infantil (recordemo-nos do projecto de Balthus, Mitsou, mas estamos aí num território bem diverso). E os elementos reais aqui implicados – o livro pertencente a uma pessoa que de facto trabaha o desenho, pais extremosos que guardaram e preservaram os desenhos da sua filha, e sempre a incentivaram a fazê-los, nem que fosse por força das circunstâncias de imitar o trabalho dos pais, autores famosos que têm acesso a platafomas editoriais condignas – levam a que se tornasse possível a edição de um livro que reune mais de 250 desenhos de uma mesma pessoa, desde os seus 26 meses de idade até 2010 (Sophie Crumb nasceu em 1981, pelo menos segundo o pai). É aí que reside a magnitude deste projecto: um só local mostrando 20 anos de desenvolvimento de uma personalidade visto pelo prisma dos seus desenhos. Pouco importa se se trata de uma artista de facto magnífica e inultrapassável, ou se de uma produtora relativamente medíocre de desenhos, banda desenhada, etc. É de facto um projecto inédito (pelo menos, nos limites dos nossos conhecimentos) e é até pela quase “banalidade” desta produção que se torna um livro importante. Quantas vezes teremos nós oportunidade de ter nas mãos uma ferramenta – pois é assim que o olhamos – desta natureza?
Alguns desenhos parecem de facto incríveis – mas afirmamo-lo não sendo especialistas no desenho infantil (e até acreditando que os especialistas encontrarão, com os seus instrumentos específicos, projectivos, analíticos, cognitivos, interpessoais, etc., muita matéria de estudo e espanto). Apenas sabemos que muita da inteligência e capacidade de observação que as crianças têm apenas são surpreendentes porque nós, os adultos, nos esquecemos de olhar o mundo com a mesma maravilha. Mais, é provável até que algumas das características que apontamos nestes desenhos sejam mais “normalizadas” do que esperamos, e o indiquemos por estarmos informados pela nossa própria perspectiva formatada de adultos (com todos os perigos e limites que isso acarreta). Mas se acreditarmos que haverá uma associação profunda e real entre a arte – entendida como uma produção especial humana que pretende expressar algo de íntimo, espiritual e existencial para além da banalidade quotidiana – e a personalidade – o que contorna uma pessoa, então este livro terá certamente muito sumo a fruir...
Um desenho aos dois anos e meio mostra um porco com poucas linhas e riscos sobrepostos, usando três lápis de cor diferentes, mas a forma como as faz cruzar e sobrepor-se oferecem-lhe uma tridimensionalidade curiosa. Outro desenho a mesma época, a esferográfica, mostra a mãe a apanhar brinquedos do chão, e é a curva das costas da mãe dobrada que se torna o centro de atenção. Aos três anos parece usar um pincel, começa a representar genitais nas figuras e consegue fazer um retrato simples mas perfeito do pai. Aos quatro começam a ser introduzidos elementos cinéticos e sígnicos da banda desenhada: pequenos riscos de expressão, gotas de líquidos, linhas cinéticas, de som, corações icónicos e balões de fala (com ajuda, provavelmente para algumas das letras, se bem que já escrevesse). Aos cinco anos começamos a ver desenhos narrativos (se bem que o da cobra já o seja) ou conceptuais, com composições complexas, e um em particular (pg. 43) mostrando a mesma personagem repetida sete vezes, ou sete personagens idênticas mas de tamanhos diversos (o acto de repetição figuratico sendo um dos elements basilares da criação da banda desenhada). Antes dos seis, começa a fazer desenos à vista, sobretudo de pessoas, ou procura repetir personagens de televisão. Aos sete mostra paisagens e interiores com secções (cortes) ou verdadeiras sequências narrativas (uma menina transformando-se numa fatia de pizza). Entre os 9 e os 10 anos está a criar verdadeiras bandas desenhadas, com algumas noções e composição, e capas de comic books fictícios (nisto não há que nos admirarmos de ser filha de quem é, já que o pai criava pequenas revistas de banda desenhada com os irmãos), imitando bastas vezes estilos ou figuras de trabalhos clássicos, desde os Fleischer a Pat Sullivan/Otto Messmer e John Irving, passando pelas típicas bonecas infantis femininas. A partir daí vemos a adolescência, com muitas das típicas fantasias gráficas associadas, a exploração da cultura “contra” seja de que espécie for, as primeiras experiências com alguma aspiração estética, os primeiros passos na autobiografia, e páginas e páginas dos mais livres sketchbooks e diários gráficos (encerrando-se com o nascimento do filho). Mas também, centralmente, a angústia que todas essas escolhas lhe trazem por saber que a primeira forma como a lerão será a de ser filha da “lenda” (palavras dela), mostrando assim estar plenamente consciente de que para trilhar um caminho próprio, terá algures de quebrar amarras ou corta o fio... No entanto, algum egocentrismo (necessário num artista) roça momentos de incompreensão e opacidade. Por exemplo, o adjectivo “crazy” foi acrescentado pela própria Sophie, mas em que será ela mais “louca” que os demais criadores? O que será essa palavra senão uma relativa ilusória auto-mitificação (como todas, enfim)?
Não sendo um livro que em si encerra uma beleza substancial – não é esse o seu propósito -, ainda que encontremos momentos de vislumbre de beleza, e todo ele componha também uma espécie de novela aos sacões (é, nesse aspecto, um Bildungsroman real, sem a fluidez da narrativa literária, mas com peças verdadeiras), e que termina num momento de felicidade pessoal (o nascimento do filho e a conquista de um momento finalmente calmo), é no próprio gesto e estrutura, e eventuais efeitos e leituras que poderá desencadear, que este livro nos parece ser um contributo, senão decisivo, pelo menos considerável.
Muitas vozes surgirão salientando o facto de que os desenhos de Sophie Crumb, ou que a sua arte enquanto autora de banda desenhada (Bellybutton Comix), não são matéria de grandes méritos ou elogios, e, em parte, não deixarão de ter razão. Parte daquilo que tem levado à sua produção e publicação poderá dever-se a uma “magia” emprestada pelo glamour dos pais, é bem possível... Se bem que algumas desss vozes também negariam os encantos da abordagem tosca e flutuante de Aline Kominsky, e até se atreveriam a confundir o percurso dessa artista pela relação que teria mais tarde co Crumb.
Todavia, a chave deste projecto não se prende somente ao facto desta artista em particular ter como apelido um dos nomes mais sonantes da banda desenhada moderna norte-americana, e de impacto a nível global e trans-geracional. Existem muitos livros sobre o desenho infantil (usualmente acompanhados de abordagens pedopsicológicas ou terapêuticas), tal como existirão muitos livros que reunem pelo menos parte do acervo da criação de um artista, englobando os importantes anos de desenvolvimento, se calhar até mesmo do período infantil (recordemo-nos do projecto de Balthus, Mitsou, mas estamos aí num território bem diverso). E os elementos reais aqui implicados – o livro pertencente a uma pessoa que de facto trabaha o desenho, pais extremosos que guardaram e preservaram os desenhos da sua filha, e sempre a incentivaram a fazê-los, nem que fosse por força das circunstâncias de imitar o trabalho dos pais, autores famosos que têm acesso a platafomas editoriais condignas – levam a que se tornasse possível a edição de um livro que reune mais de 250 desenhos de uma mesma pessoa, desde os seus 26 meses de idade até 2010 (Sophie Crumb nasceu em 1981, pelo menos segundo o pai). É aí que reside a magnitude deste projecto: um só local mostrando 20 anos de desenvolvimento de uma personalidade visto pelo prisma dos seus desenhos. Pouco importa se se trata de uma artista de facto magnífica e inultrapassável, ou se de uma produtora relativamente medíocre de desenhos, banda desenhada, etc. É de facto um projecto inédito (pelo menos, nos limites dos nossos conhecimentos) e é até pela quase “banalidade” desta produção que se torna um livro importante. Quantas vezes teremos nós oportunidade de ter nas mãos uma ferramenta – pois é assim que o olhamos – desta natureza?
Alguns desenhos parecem de facto incríveis – mas afirmamo-lo não sendo especialistas no desenho infantil (e até acreditando que os especialistas encontrarão, com os seus instrumentos específicos, projectivos, analíticos, cognitivos, interpessoais, etc., muita matéria de estudo e espanto). Apenas sabemos que muita da inteligência e capacidade de observação que as crianças têm apenas são surpreendentes porque nós, os adultos, nos esquecemos de olhar o mundo com a mesma maravilha. Mais, é provável até que algumas das características que apontamos nestes desenhos sejam mais “normalizadas” do que esperamos, e o indiquemos por estarmos informados pela nossa própria perspectiva formatada de adultos (com todos os perigos e limites que isso acarreta). Mas se acreditarmos que haverá uma associação profunda e real entre a arte – entendida como uma produção especial humana que pretende expressar algo de íntimo, espiritual e existencial para além da banalidade quotidiana – e a personalidade – o que contorna uma pessoa, então este livro terá certamente muito sumo a fruir...
Um desenho aos dois anos e meio mostra um porco com poucas linhas e riscos sobrepostos, usando três lápis de cor diferentes, mas a forma como as faz cruzar e sobrepor-se oferecem-lhe uma tridimensionalidade curiosa. Outro desenho a mesma época, a esferográfica, mostra a mãe a apanhar brinquedos do chão, e é a curva das costas da mãe dobrada que se torna o centro de atenção. Aos três anos parece usar um pincel, começa a representar genitais nas figuras e consegue fazer um retrato simples mas perfeito do pai. Aos quatro começam a ser introduzidos elementos cinéticos e sígnicos da banda desenhada: pequenos riscos de expressão, gotas de líquidos, linhas cinéticas, de som, corações icónicos e balões de fala (com ajuda, provavelmente para algumas das letras, se bem que já escrevesse). Aos cinco anos começamos a ver desenhos narrativos (se bem que o da cobra já o seja) ou conceptuais, com composições complexas, e um em particular (pg. 43) mostrando a mesma personagem repetida sete vezes, ou sete personagens idênticas mas de tamanhos diversos (o acto de repetição figuratico sendo um dos elements basilares da criação da banda desenhada). Antes dos seis, começa a fazer desenos à vista, sobretudo de pessoas, ou procura repetir personagens de televisão. Aos sete mostra paisagens e interiores com secções (cortes) ou verdadeiras sequências narrativas (uma menina transformando-se numa fatia de pizza). Entre os 9 e os 10 anos está a criar verdadeiras bandas desenhadas, com algumas noções e composição, e capas de comic books fictícios (nisto não há que nos admirarmos de ser filha de quem é, já que o pai criava pequenas revistas de banda desenhada com os irmãos), imitando bastas vezes estilos ou figuras de trabalhos clássicos, desde os Fleischer a Pat Sullivan/Otto Messmer e John Irving, passando pelas típicas bonecas infantis femininas. A partir daí vemos a adolescência, com muitas das típicas fantasias gráficas associadas, a exploração da cultura “contra” seja de que espécie for, as primeiras experiências com alguma aspiração estética, os primeiros passos na autobiografia, e páginas e páginas dos mais livres sketchbooks e diários gráficos (encerrando-se com o nascimento do filho). Mas também, centralmente, a angústia que todas essas escolhas lhe trazem por saber que a primeira forma como a lerão será a de ser filha da “lenda” (palavras dela), mostrando assim estar plenamente consciente de que para trilhar um caminho próprio, terá algures de quebrar amarras ou corta o fio... No entanto, algum egocentrismo (necessário num artista) roça momentos de incompreensão e opacidade. Por exemplo, o adjectivo “crazy” foi acrescentado pela própria Sophie, mas em que será ela mais “louca” que os demais criadores? O que será essa palavra senão uma relativa ilusória auto-mitificação (como todas, enfim)?
Não sendo um livro que em si encerra uma beleza substancial – não é esse o seu propósito -, ainda que encontremos momentos de vislumbre de beleza, e todo ele componha também uma espécie de novela aos sacões (é, nesse aspecto, um Bildungsroman real, sem a fluidez da narrativa literária, mas com peças verdadeiras), e que termina num momento de felicidade pessoal (o nascimento do filho e a conquista de um momento finalmente calmo), é no próprio gesto e estrutura, e eventuais efeitos e leituras que poderá desencadear, que este livro nos parece ser um contributo, senão decisivo, pelo menos considerável.
6 de março de 2011
A Graphic Cosmogony (NoBrow)
O sufixo “-gonia”, grego, vem do verbo gignesthai, o qual poderia ser traduzido, para além do óbvio “nascer”, por “devir”, isto é, não fechado na sua forma substantiva e estática, mas sublinhando ao máximo o seu permanente movimento, a sua própria natureza em movimento. Não será de surpreender, portanto, que esta antologia da NoBrow apresente trabalhos que procuram o máximo dos possíveis efeitos de dinamismo e movimento permitidos pela arte da banda desenhada. Através de modos de composição regulares que tiram partido da rápida leitura sequencial e estruturas geométricas enquanto princípio de figuração, efeitos de paralelismo entre sequências que mostram observadores e o que observam, contínuas e potencialmente infinitas mise en abîme, planos de composição que tiram partido de alguns resultados visuais aparentados com certas artes gráficas (como víramos a propósito da revista NoBrow), por construções tabulares que mesclam vários tipos de imagem, inclusive a colagem de fotografias, papéis texturados, caligrafia ou tipografia mecânica, etc., apresenta-se aqui uma grande diversa de resultados, mas, mais uma vez, todos unidos na vincada personalidade gráfica e cromática do projecto em geral.
A ideia é relativamente simples: ofereceram-se 7 páginas a 24 artistas com as quais deveriam contar a “origem do universo”. Pela própria natureza estrutural do projecto, a sua ideia-base conceptual, com uma página por cada dia da Criação de acordo com o Génesis/Bereshit, não admirará que desses 24 artistas, uma meia-dúzia tenha optado por se referenciar à cosmogonia que herdámos do judaísmo, se bem que procurem versões irónicas, cómicas ou desviantes, querendo talvez com isso derrubar as fronteiras que poderão existir entre os conceitos de “religião” (os mitos em que de facto acreditamos pia e organizadamente) e os “mitos” (as religiões dos outros, selvagens), e sobretudo parodiar a seriedade com que essas vetustas narrativas ainda hoje são trazidas à consideração, sobretudo pelos ditos fundamentalistas ou literalistas. Três artistas optam por, em vez de partirem dessa tradição que nos é mais familiar (é o cadinho da nossa cultura), beberem de outras proveniências culturais, nomeadamente as culturas nórdica, ainu e mongol, para elaborarem as suas narrativas, mas neste caso são bem mais simples, adaptando esses mitos às suas páginas. Todavia, a esmagadora maioria deles inventam de raiz, apresentam scherzi, servem mesclas de várias ideias e matérias, tecem novas mitografias, algumas das quais, como disse, tirando partido das possibilidades gráficas garantidas pela banda desenhada e pelo uso da tecnologias de impressão contemporâneas (com um certo ar retro: cores planas, figurações de contornos claros e definidos, composições de página legíveis). Mas no interior dessas narrativas há também pequenas variações que recordam em muito aquelas pequenas histórias surpreendentes da EC dos anos 50 (“twist ending”), em que a ficção científica é utilizada para revelar algo sobre a nossa origem de espectacularmente inesperado.
Todas elas, porém, levantam sempre algumas questões relativamente idênticas, senão mesmo consensuais, e que apontam para algumas das questões mais profundas implicadas nestas re-imaginações das origens do universo, do mundo e do homem: como é que o erro é introduzido, porque existe a diferenciação entre os homens e as mulheres e os outros homens e as outras mulheres, onde reside o germe da nossa auto-destruição, onde está o livre arbítrio e o abandono de deus… Tal como aqueles livros de que falámos há uns tempos unidos sobre esta ideia de busca de deus, também este utiliza variadíssimos instrumentos para perscrutar questões que, por natureza, estarão sempre fora do alcance das respostas definitivas humanas.
Alguns dos autores são nomes que encontráramos nos projectos da NoBrow (quer da revista quer de outras publicações dessa casa), como Brecht Vendenbroucke, Jack Teagle, Liesbeth De Stercke, Ben Newman ou Brecht Vandenbroucke. Mas há outros que se estreiam nesse convite, como a ilustradora sul-coreana Yeji Yun, o artista de banda desenhada dinamarquês Mikkel Sommers e o português Rui Tenreiro. O design (de Alex Spiro, também editor da NB) transforma este num objecto lindo, com guardas coladas, a capa dura, com a espinha brilhantemente feita com corte italiano, em pano com impressão, e embrulhada com o papel com as imagens que fazem a capa.
Das histórias literalmente “originais” encontradas em A Graphic Cosmogony, encontramos relatos sobre como os primeiros humanos eram animais de estimação de raças alienígenas, o que a origem do universo deveu-se à união de um astronauta e um robô que mergulharam no vazio da “energia fantasma”, ou como ele é um projecto escolar falhado de um deus que não se dedica muito na escola, ou que tudo nasceu de uma onda de sangue derramado por um cervo que afoga o seu caçador, ou que tudo é uma energia vital de excrementos de minúsculas ou pelo contrário cosmicamente imensas criaturas, ou que é uma sucessão de actividades tecnicamente complexas de vários indivíduos, ou um novo mas desinteressante jogo de computador, ou ainda uma aposta feita entre dois filhos de uma divindade que acaba mal… Como escreve Paul Gravett na introdução, “talvez se leitores suficientes deste livro começarem a acreditar nestas histórias iniciem uma série de novas religiões que sejam nelas baseadas”. Amen.
A ideia é relativamente simples: ofereceram-se 7 páginas a 24 artistas com as quais deveriam contar a “origem do universo”. Pela própria natureza estrutural do projecto, a sua ideia-base conceptual, com uma página por cada dia da Criação de acordo com o Génesis/Bereshit, não admirará que desses 24 artistas, uma meia-dúzia tenha optado por se referenciar à cosmogonia que herdámos do judaísmo, se bem que procurem versões irónicas, cómicas ou desviantes, querendo talvez com isso derrubar as fronteiras que poderão existir entre os conceitos de “religião” (os mitos em que de facto acreditamos pia e organizadamente) e os “mitos” (as religiões dos outros, selvagens), e sobretudo parodiar a seriedade com que essas vetustas narrativas ainda hoje são trazidas à consideração, sobretudo pelos ditos fundamentalistas ou literalistas. Três artistas optam por, em vez de partirem dessa tradição que nos é mais familiar (é o cadinho da nossa cultura), beberem de outras proveniências culturais, nomeadamente as culturas nórdica, ainu e mongol, para elaborarem as suas narrativas, mas neste caso são bem mais simples, adaptando esses mitos às suas páginas. Todavia, a esmagadora maioria deles inventam de raiz, apresentam scherzi, servem mesclas de várias ideias e matérias, tecem novas mitografias, algumas das quais, como disse, tirando partido das possibilidades gráficas garantidas pela banda desenhada e pelo uso da tecnologias de impressão contemporâneas (com um certo ar retro: cores planas, figurações de contornos claros e definidos, composições de página legíveis). Mas no interior dessas narrativas há também pequenas variações que recordam em muito aquelas pequenas histórias surpreendentes da EC dos anos 50 (“twist ending”), em que a ficção científica é utilizada para revelar algo sobre a nossa origem de espectacularmente inesperado.
Todas elas, porém, levantam sempre algumas questões relativamente idênticas, senão mesmo consensuais, e que apontam para algumas das questões mais profundas implicadas nestas re-imaginações das origens do universo, do mundo e do homem: como é que o erro é introduzido, porque existe a diferenciação entre os homens e as mulheres e os outros homens e as outras mulheres, onde reside o germe da nossa auto-destruição, onde está o livre arbítrio e o abandono de deus… Tal como aqueles livros de que falámos há uns tempos unidos sobre esta ideia de busca de deus, também este utiliza variadíssimos instrumentos para perscrutar questões que, por natureza, estarão sempre fora do alcance das respostas definitivas humanas.
Alguns dos autores são nomes que encontráramos nos projectos da NoBrow (quer da revista quer de outras publicações dessa casa), como Brecht Vendenbroucke, Jack Teagle, Liesbeth De Stercke, Ben Newman ou Brecht Vandenbroucke. Mas há outros que se estreiam nesse convite, como a ilustradora sul-coreana Yeji Yun, o artista de banda desenhada dinamarquês Mikkel Sommers e o português Rui Tenreiro. O design (de Alex Spiro, também editor da NB) transforma este num objecto lindo, com guardas coladas, a capa dura, com a espinha brilhantemente feita com corte italiano, em pano com impressão, e embrulhada com o papel com as imagens que fazem a capa.
Das histórias literalmente “originais” encontradas em A Graphic Cosmogony, encontramos relatos sobre como os primeiros humanos eram animais de estimação de raças alienígenas, o que a origem do universo deveu-se à união de um astronauta e um robô que mergulharam no vazio da “energia fantasma”, ou como ele é um projecto escolar falhado de um deus que não se dedica muito na escola, ou que tudo nasceu de uma onda de sangue derramado por um cervo que afoga o seu caçador, ou que tudo é uma energia vital de excrementos de minúsculas ou pelo contrário cosmicamente imensas criaturas, ou que é uma sucessão de actividades tecnicamente complexas de vários indivíduos, ou um novo mas desinteressante jogo de computador, ou ainda uma aposta feita entre dois filhos de uma divindade que acaba mal… Como escreve Paul Gravett na introdução, “talvez se leitores suficientes deste livro começarem a acreditar nestas histórias iniciem uma série de novas religiões que sejam nelas baseadas”. Amen.
NoBrow. AAVV (NoBrow Press)
A NoBrow é, como se apresenta, uma plataforma dedicada à publicação de objectos gráficos com uma atenção particular para com um mundo livre da ilustração contemporânea, com projectos que tanto tocam os livros para crianças, com actividades clássicas como a de colorir desenhos, como banda desenhada ou livros de artista ou projectos de desenho, buscando as formas mais belas de trabalhar quer o offset (em edições mais alargadas) quer a serigrafia (bem mais limitadas), passando por posters, livros-concertina, etc. Isto é, um projecto multifacetado que toca muito dos interesses presentes no nosso tempo e num círculo alargado de interesses comuns que atravessam fronteiras, artistas e géneros de trabalho. Todavia, no caso da NoBrow, tocando um grau de qualidade de produção muito alto, de excelentes acabamentos e com uma preocupação particular por uma noção de “beleza” muito limpa, contemporânea, urbana e cool. Nesse sentido, é relativamente expectável que conquistem um público mais alargado, em comparação a colectivos como Le Dernier Cri, por exemplo (sem querer, ainda assim, criar dicotomias ou oposições simplistas). É um projecto que se encaixa perfeitamente a nível global no que diz respeito a novas tendências gráficas, e
às quais Portugal não é alheio.
Em conjunto, optando por raríssimas repetições de artistas, acabamos por ter quatro revistas nas quais participam perto de uma centena de artistas, das mais variadas origens geográficas (João Fazenda participa no 3º número), gerações, estilos, circuitos de trabalho, etc. Elas são a primeira forma da editora colocar regularmente a circular uma espécie de showcase de alguns dos talentos que entendem ser interessantes partilhar. Os próprios editores apelidam-na de “zine”, se bem que os milhares de exemplares (3000, se não estamos em erro) que imprimem e a qualidade da publicação a retirem do círculo de possibilidades da esmagadora maioria das publicações que utilizam essa denominação, aproximando-a quase de uma espécie de directório (e não poderemos dizer “alternativo” pois muitos destes autores têm contractos efectivos com clientes comercialmente significativos).
Cada número tem uma espécie de tema, ou desculpa organizativa, que torna o resultado curioso. O primeiro número (a azuis) é dedicado a “Gods & Monsters”, e se bem que a maior parte das imagens apresentem duas criaturas em oposição, outras das participações tornam essa diferenciação complexa, difusa ou apagando-a; o segundo (a cores, mas a impressão de passagem única) está sob a égide da “The Jungle”, e são raros os autores que saem de uma gravitação literal em torno das selvagens paragens do nosso planeta; o terceiro (já em quadricromia, mas com uma paleta baça), intitulado “Topsy Turvy”, explora toda a espécie de possibilidades do assunto do mundo ao contrário, desde cenas clássicas - animais a caçar pessoas, pássaros a nadar e peixes a voar - até composições surrealistas; e o quarto número tem como tema “Night and Day”, e tira partido da impressão, apresentando cada duas páginas alternadamente a quatro cores e a preto-e-branco, ou seja, havendo impressão a cores apenas de um lado das folhas, e além disso a maioria dos artistas utiliza as duas páginas para criarem uma oposição que segue as mesmas linhas, que tanto pode ser literalmente entre a noite e o dia, ou outras dicotomias, entre homem e mulher, entre criaturas ou seres moral, cultural ou existencialmente diferentes, ou buscando formas mais subtis de criar a relação complementar entre os opostos que apresentam.
As características são bem diversas, como não se pode deixar de esperar, mas há um resultado de “ler” as revistas em conjunto, de sermos confrontados com estes artistas num só fôlego que os amalgamam numa família coerente. Não comum, nem unida numa só massa, mas sob uma mesma sensação de contemporaneidade gráfica. A paleta cromática é usualmente limitada, procurando-se a utilização de cores planas e não de gradientes na maior parte das vezes, tirando-se partido de sobreimpressões (ou de efeitos composicionais que as imitam), impressões de passagem única, o que dá uma vivacidade a cada cor quase tridimensional, criando formas encaixadas umas nas outras, e tirando partido da própria materialidade e texturas do papel, garantindo uma espécie de carácter táctil extremamente forte a toda a publicação (sobretudo a segunda e a quarta). Como vimos, as várias técnicas de cada número leva a efeitos diversos, ora com escolhas limitadas de cor ora com uma mais alargada opção, mas ainda assim explorando especificidades planeadas.
No que diz respeito à figuração, a às composições de página, encontrar-se-ão autores que optam por traços realistas, outros por vários graus de simplicidade, senão mesmo de minimalismo, uns têm abordagens expressivas permitidas por toda a manualidade do desenho a lápis, e outros constroem as imagens com ferramentas digitais, com contornos simplificados, estes fazendo composições cheias, detalhadas, texturadas, aqueles apresentando esquemas que recordam puzzles simples de papéis de lustro recortados. Essa família tão diversa faz entender que não será apenas uma razão de estarmos demasiado perto destes autores em termos de produção e tempo, mas que as próprias condições de produção, edição e divulgação contemporâneas não permitem encontrar uniões estanques de estilos, e cada autor - como em todas as áreas artísticas dos nossos tempos - bebem de vários momentos da história da arte (e da ilustração, permitindo-nos aqui a uma diferença que deverá soar insustentável), sublinhando aquele sentido positivo de pós-modernidade que torna qualquer momento anterior numa possível fonte de inspiração e apropriação, e os cruzamentos, por mais inusitados que pareçam à primeira vista, perfeitamente passíveis de existirem. Teríamos de falar de cada autor em particular para encontrar as referências mais certas, mas na leitura de todas estas páginas saltam ideias avulsas que recordam as várias inflexões da Art Deco e a revista satírica alemã Simplicissimus, a animação dos irmãos Fleischer, autores de ilustração infantil como Jean de Brunhoff, Ludwig Bemelmans, Ray Goossens e Richard Scarry, e toda a espécie de escolas da dita escola “lowbrow art” norte-americana (hot rod, tattoo art, Surrealismo Pop, designer toys, e outras referências quejandas). Aliás, é essa mesma referência que explicita a escolha do título do colectivo editorial, negando a existência de uma “high brow art” e uma “low brow art”…
Se houver algum denominador comum, será o da legibilidade. Não se procuram aqui efeitos barrocos ou de excesso (como, retomando uma questão do início, as produções da Dernier Cri ou de outras plataformas), cujo fito é bem diverso (e não necessariamente de uma valorização inferior ou superior). Bem pelo contrário, todos estes gestos, vindo de pontos diferentes, navegando mares diferentes, e embarcados em naves diferentes, aportam todos nas mesmas acalmias gráficas, o que torna todo este projecto numa suave e facilmente aprazível antologia de ilustradores.
Leitores de banda desenhada - de géneros bem diversos - reconhecerão alguns nomes, de Jens Harder (autor de Leviathan), Blex Bolex, Jordan Crane, a Dave Taylor (artista de alguns títulos com o Batman e da série Tongue * Lash, escrita pelos Lofficier), ou Atak; há também os autores que têm banda desenhada publicada pela própria NoBrow Press, como Luke Pearson, Jon Mcnaught ou Ben Newman. Há ilustradores reconhecidos pelo seu trabalho no círculo infanto-juvenil, como Marc Boutavant (do Ariol) e Isabelle Vandenabeele (premiada no Ilustrarte 2009) e muitos profissionais de ilustração editorial, de imprensa, comercial, character design, etc. Pessoas que tenham acompanhado a programação da galeria Dama Aflita reconhecerão o nome de Jack Teagle. Como já foi indicado, temos o nome reconhecível de João Fazenda, o qual, vivendo em Londres, introduz-se possivelmente por essa razão no grupo de autores aqui reunidos (muitos deles ingleses ou internacionais mas vivendo em Londres). E, claro, encontrar-se-ão muitos outros nomes que possivelmente poderão ser desconhecidos de alguns dos leitores (eram para nós), já que a NoBrow também dá espaço a artistas muito jovens, alguns deles fresquinhos das escolas de artes, mas que passámos a considerar por uma razão ou outra. Dos jovens aos veteranos, procurem-se Ping Zhu, Nomoco, Ward Zwart, Tom Rowe, Sarah A. King, Joseph Crocker…
Utilizados como directórios, ou guardados como objectos magníficos, as NoBrow são uma feira de descobertas.
4 de março de 2011
Polina. Bastien Vivès (Casterman)
Há uma anedota relativa a Sergei Diaghliev, o pai dos Ballets Russes, que é algo instrutiva na leitura deste belíssimo livro. Apesar de existirem inúmeros textos, livros, e documentos fotográficos históricos dos bailarinos dessa companhia, dessa referência máxima do ballet do século vinte, inclusive do grande Nijinsky, não se encontrará um metro de filme. Diaghliev não o permitia. Tendo em conta que se trata de um período que vai desde o início do século vinte aos anos 20, a tecnologia cinematográfica apenas permitia uma captação e devolução do corpo em movimento relativamente limitada. A câmara ainda não dançava (é preciso esperar por Chaplin e, depois, Astaire). Todavia, talvez as razões fossem ainda outras, menos técnicas, e mais espirituais, quem sabe mesmo naquela crença (algo mistificada, falsa, mas ben trovata) de um certo receio em que a captação das imagens roubasse a alma original. Faria sentido.
Uma eventual oposição - nem que apenas sirva o propósito da argumentação presente - entre formas artísticas é aquela entre, por um lado, as artes da performatividade, do gesto ou da projecção gráfica, e, por outro, as das marcas, da inscrição, da encarnação gráfica. As primeiras são aquelas que se executam através do corpo, sendo os seus próprios movimentos aquilo que compõem os elementos a ler, mas os quais não deixam marcas duradouras, não deixam marcas gráficas propriamente ditas - apesar das didascálicas, das notações musicais e das tentativas em construir notações de dança. As segundas são aquelas que se executam nos resultados dos movimentos do corpo empregando instrumentos de marcação, desde materiais riscadores, pictóricos, escultóricos, moldadores, de escrita, etc. Historicamente verificaram-se muitos momentos de encontro (há quem queira mesmo ver na origem do gesto artístico actividades humanas nas quais ainda não havia qualquer diferenciação), a evolução levou inevitavelmente a uma contínua categorização e compartimentação de cada disciplina. É nesse sentido que não encontramos grandes linhas em comum que unam a dança e o desenho, seja este entendido de uma forma restrita (disciplinar) ou mais ampla (aplicado, interdisciplinar, a banda desenhada, etc.).
Se bem que possamos encontrar nas origens da banda desenhada moderna vários momentos em que o seu desenho tentava captar a dinâmica e a beleza da dança (mormente daquela elegância somente atingida pelo ballet clássico), foram raros os momentos porém em que encontrámos um diálogo mais poético e sensível (e mais os de sátira ou humor visual). Discutivelmente, um dos momentos altos desse encontro é aquele que é conseguido por Edmond Baudoin, um artista o qual tem tentado sempre transformar o (seu) desenho num instrumento de captura de modos e momentos de beleza usualmente efémeros.
Bastien Vivès parece ser um autor com um contínuo interesse pelo corpo humano, sobretudo na forma como ele se transforma num meio de comunicação nele mesmo, sem a necessidade de se associar à comunicação verbal. Apesar de Polina ter uma estrutura narrativa mais clássica do que os dois últimos livros, não deixa de empregar toda uma série de desvios criativos que sublinham essa sua visão do corpo. Este não é um livro somente sobre a dança, ou sobre uma bailarina, mas que dança ele mesmo com a sua matéria. Muitas das cenas são mostradas num fundo preto e com as mínimas linhas e manchas a branco, de forma a contrastar com o restante livro, mas como maneira também de destacar uma impressão diáfana e breve que se opera nos palcos, um relâmpago que o autor tenta assim representar.
O ballet clássico é, como dissemos atrás, uma arte de elegância, quase maximal, conforme a nossa formação, conhecimento e sensibilidade para ela (confessemos aqui que não pertencemos a esse número de cognescenti). O que vemos é a beleza, mas de perto, de muito perto, essa beleza só é atingida através de um domínio doloroso dos corpos, moldados senão torturados por anos de esforçada dedicação (qualquer documentário sobre as academias russas mostra isso). Alguma da dança contemporânea explora de forma directa e central precisamente esse esforço e essa dor, senão parte dessa “falsidade”, o que se explica por muitos dos seus conceitos de “impossibilidade de comunicar”, “impossibilidade de dançar” muito presentes em alguns coreógrafos contemporâneos portugueses (com excepções). Se bem que agora um novo fôlego tenha sido trazido pelo recente filme Black Swan, a possível aliança entre a magnificência do resultado artístico e a maldição que a sua entrega representa teve um seu tratamento anterior na ficção incomparável em The Red Shoes, de Michael Powell (por seu lado, baseado parcialmente no conto de Andersen). E Polina tem uma ligação mais forte com essa obra-prima cinematográfica - pelo lado da divisão da vontade da protagonista, das decisões necessárias mas que se anulam mutuamente, das relações que se constroem e desfazem em nome dessas mesmas decisões - do que com o filme de Aronofsky - mais inclinado a explorar as armadilhas que o ser humano lança no interior de si mesmo.
O livro de Vivès conta a história de Polina Oulinov, uma jovem bailarina russa que acompanhamos desde os 6 anos, na sua primeira audição séria, junto a um mítico professor, o exigente Bojinski, os seus anos de aprendizagem numa academia, as primeiras peças, o primeiro desafio criativo, a primeira fuga “em frente” e posicionamento face ao trabalho do ballet clássico, o confronto com a dança contemporânea e as outras vias de expressão que permite, o seu crescimento enquanto indivíduo, e, como dita o equilíbrio da narrativa, o retorno, desenlace e anagnórise. Mas a beleza de Polina está no percurso, não na mera sinopse, na trama; está no modo como Vivès mistura a matéria da dança representada e a do seu desenho. As mais das vezes, é pelos não-ditos que essa textura é cerzida. Nesta página ao lado, por exemplo, Polina readquire a força e o humor para contactar de novo o seu namorado, mas a breve simetria entre as três vinhetas em que essa força é recuperada e as três seguintes de uma derrota total, interrompendo-se com uma cena diferente onde reside a razão dessa tremenda desilusão, mostra como esse ritmo e esse tom é perseguido.
Ao contrário das vivíssimas cores expressivas de Le goût du chlore e Dans mes yeux, este livro é constituído por linhas a pretos simples, pinceladas a tinta-da-china aparentemente, sobre fundos cinzentos ou o branco do papel. Se bem que existam soberbas e detalhadas representações do interior de teatros ou de cantos de cidades, a esmagadora maioria das vinhetas mostra simplesmente fundos vazios e os corpos das personagens. E mesmo estas são reduzidas por vezes a uma espécie de representação caligráfica. Isso não significa que não haja forma de tirar todo o partido da expressividade possível. Nesta prancha Polina destaca-se das demais colegas por uma diferença na cor do cabelo, a presença e fascínio de Bojinski sente-se pela sua ocupação do espaço e a relação que estabelece com o olhar da protagonista, o movimento de espaço a espaço é construído pelo isolamento das figuras no centro das vinhetas e dos pormenores espaciais, o “rasto” do olhar e o transporte a que ele obriga modelado na última imagem, com Polina “acima” das demais bailarinas jovens… O desenho não é empregue por Vivès como o andaime de uma reconstrução sistemática posterior (como na indústria norte-americana ou na produção clássica franco-belga): ele dança por moto próprio com as personagens, e os espaços, e os ritmos que eles lançam.
O centro nevrálgico desta novela é a relação entre a pupila e o mentor, Polina e Bojinski. A dança - seja clássica seja contemporânea - uma vez que usa o corpo humano como a sua ferramenta principal, e corpos moldados de acordo com vários princípios de uma beleza largamente aceite - elegância, falta de gravidade, um carácter élfico, um domínio total do si, o apagamento da “máquina” a favor do “espírito” -, tem sempre um carácter sexual forte, mas que não tem necessariamente que passar pela sua expressão de tom mais baixo. Bojinski, para ensinar Polina os pequenos gestos, as importantes exactidões, o mais correcto dos pormenores, apoia as suas mãos no pequeno corpo dela. Todavia, este gesto tem mais a ver com o mestre que toca no barro para deixar o seu cunho do que qualquer interpretação básica sexual a que se possa chegar. É uma sexualidade mais profunda, espiritual. (e é aí que Vivès se ligaria mais depressa a The Red Shoes, magistral nesse tratamento da tensão entre Vicky e Lermontov, do que Black Swan, cuja expressão sexual é mais básica e explícita). Essa tensão, essas associações são exploradas em Polina, sobretudo na peça (dueto) que Polina e o seu namorado ensaiam, chegando mesmo a falarem de “fazer amor em público”. Quando ensaiam no quarto, poder-se-ia ler esses gestos como de uma sedução ou mesmo de consumação passional. Contudo, é por essa razão que essa expressão terá uma força mais limitada, ao passo que a relação de professor-aluna, de dois entendimentos da dança que apenas se desencontram por décadas, é a mais duradoura, e cerne do livro. Na fase final, no reencontro de Polina e Bojinski, há um momento magnífico, uma espécie de desmascaramento dos filtros que Polina havia cultivado ao longo do tempo (ou talvez desde sempre), e é como se a magia se desfizesse aos olhos dela, e aos nossos. Mas retorna. E é esse um outro gesto tocante que contribui, com os outros, para que este livro de Vivès seja uma rara e comovente história de amor.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Uma eventual oposição - nem que apenas sirva o propósito da argumentação presente - entre formas artísticas é aquela entre, por um lado, as artes da performatividade, do gesto ou da projecção gráfica, e, por outro, as das marcas, da inscrição, da encarnação gráfica. As primeiras são aquelas que se executam através do corpo, sendo os seus próprios movimentos aquilo que compõem os elementos a ler, mas os quais não deixam marcas duradouras, não deixam marcas gráficas propriamente ditas - apesar das didascálicas, das notações musicais e das tentativas em construir notações de dança. As segundas são aquelas que se executam nos resultados dos movimentos do corpo empregando instrumentos de marcação, desde materiais riscadores, pictóricos, escultóricos, moldadores, de escrita, etc. Historicamente verificaram-se muitos momentos de encontro (há quem queira mesmo ver na origem do gesto artístico actividades humanas nas quais ainda não havia qualquer diferenciação), a evolução levou inevitavelmente a uma contínua categorização e compartimentação de cada disciplina. É nesse sentido que não encontramos grandes linhas em comum que unam a dança e o desenho, seja este entendido de uma forma restrita (disciplinar) ou mais ampla (aplicado, interdisciplinar, a banda desenhada, etc.).
Se bem que possamos encontrar nas origens da banda desenhada moderna vários momentos em que o seu desenho tentava captar a dinâmica e a beleza da dança (mormente daquela elegância somente atingida pelo ballet clássico), foram raros os momentos porém em que encontrámos um diálogo mais poético e sensível (e mais os de sátira ou humor visual). Discutivelmente, um dos momentos altos desse encontro é aquele que é conseguido por Edmond Baudoin, um artista o qual tem tentado sempre transformar o (seu) desenho num instrumento de captura de modos e momentos de beleza usualmente efémeros.
Bastien Vivès parece ser um autor com um contínuo interesse pelo corpo humano, sobretudo na forma como ele se transforma num meio de comunicação nele mesmo, sem a necessidade de se associar à comunicação verbal. Apesar de Polina ter uma estrutura narrativa mais clássica do que os dois últimos livros, não deixa de empregar toda uma série de desvios criativos que sublinham essa sua visão do corpo. Este não é um livro somente sobre a dança, ou sobre uma bailarina, mas que dança ele mesmo com a sua matéria. Muitas das cenas são mostradas num fundo preto e com as mínimas linhas e manchas a branco, de forma a contrastar com o restante livro, mas como maneira também de destacar uma impressão diáfana e breve que se opera nos palcos, um relâmpago que o autor tenta assim representar.
O ballet clássico é, como dissemos atrás, uma arte de elegância, quase maximal, conforme a nossa formação, conhecimento e sensibilidade para ela (confessemos aqui que não pertencemos a esse número de cognescenti). O que vemos é a beleza, mas de perto, de muito perto, essa beleza só é atingida através de um domínio doloroso dos corpos, moldados senão torturados por anos de esforçada dedicação (qualquer documentário sobre as academias russas mostra isso). Alguma da dança contemporânea explora de forma directa e central precisamente esse esforço e essa dor, senão parte dessa “falsidade”, o que se explica por muitos dos seus conceitos de “impossibilidade de comunicar”, “impossibilidade de dançar” muito presentes em alguns coreógrafos contemporâneos portugueses (com excepções). Se bem que agora um novo fôlego tenha sido trazido pelo recente filme Black Swan, a possível aliança entre a magnificência do resultado artístico e a maldição que a sua entrega representa teve um seu tratamento anterior na ficção incomparável em The Red Shoes, de Michael Powell (por seu lado, baseado parcialmente no conto de Andersen). E Polina tem uma ligação mais forte com essa obra-prima cinematográfica - pelo lado da divisão da vontade da protagonista, das decisões necessárias mas que se anulam mutuamente, das relações que se constroem e desfazem em nome dessas mesmas decisões - do que com o filme de Aronofsky - mais inclinado a explorar as armadilhas que o ser humano lança no interior de si mesmo.
O livro de Vivès conta a história de Polina Oulinov, uma jovem bailarina russa que acompanhamos desde os 6 anos, na sua primeira audição séria, junto a um mítico professor, o exigente Bojinski, os seus anos de aprendizagem numa academia, as primeiras peças, o primeiro desafio criativo, a primeira fuga “em frente” e posicionamento face ao trabalho do ballet clássico, o confronto com a dança contemporânea e as outras vias de expressão que permite, o seu crescimento enquanto indivíduo, e, como dita o equilíbrio da narrativa, o retorno, desenlace e anagnórise. Mas a beleza de Polina está no percurso, não na mera sinopse, na trama; está no modo como Vivès mistura a matéria da dança representada e a do seu desenho. As mais das vezes, é pelos não-ditos que essa textura é cerzida. Nesta página ao lado, por exemplo, Polina readquire a força e o humor para contactar de novo o seu namorado, mas a breve simetria entre as três vinhetas em que essa força é recuperada e as três seguintes de uma derrota total, interrompendo-se com uma cena diferente onde reside a razão dessa tremenda desilusão, mostra como esse ritmo e esse tom é perseguido.
Ao contrário das vivíssimas cores expressivas de Le goût du chlore e Dans mes yeux, este livro é constituído por linhas a pretos simples, pinceladas a tinta-da-china aparentemente, sobre fundos cinzentos ou o branco do papel. Se bem que existam soberbas e detalhadas representações do interior de teatros ou de cantos de cidades, a esmagadora maioria das vinhetas mostra simplesmente fundos vazios e os corpos das personagens. E mesmo estas são reduzidas por vezes a uma espécie de representação caligráfica. Isso não significa que não haja forma de tirar todo o partido da expressividade possível. Nesta prancha Polina destaca-se das demais colegas por uma diferença na cor do cabelo, a presença e fascínio de Bojinski sente-se pela sua ocupação do espaço e a relação que estabelece com o olhar da protagonista, o movimento de espaço a espaço é construído pelo isolamento das figuras no centro das vinhetas e dos pormenores espaciais, o “rasto” do olhar e o transporte a que ele obriga modelado na última imagem, com Polina “acima” das demais bailarinas jovens… O desenho não é empregue por Vivès como o andaime de uma reconstrução sistemática posterior (como na indústria norte-americana ou na produção clássica franco-belga): ele dança por moto próprio com as personagens, e os espaços, e os ritmos que eles lançam.
O centro nevrálgico desta novela é a relação entre a pupila e o mentor, Polina e Bojinski. A dança - seja clássica seja contemporânea - uma vez que usa o corpo humano como a sua ferramenta principal, e corpos moldados de acordo com vários princípios de uma beleza largamente aceite - elegância, falta de gravidade, um carácter élfico, um domínio total do si, o apagamento da “máquina” a favor do “espírito” -, tem sempre um carácter sexual forte, mas que não tem necessariamente que passar pela sua expressão de tom mais baixo. Bojinski, para ensinar Polina os pequenos gestos, as importantes exactidões, o mais correcto dos pormenores, apoia as suas mãos no pequeno corpo dela. Todavia, este gesto tem mais a ver com o mestre que toca no barro para deixar o seu cunho do que qualquer interpretação básica sexual a que se possa chegar. É uma sexualidade mais profunda, espiritual. (e é aí que Vivès se ligaria mais depressa a The Red Shoes, magistral nesse tratamento da tensão entre Vicky e Lermontov, do que Black Swan, cuja expressão sexual é mais básica e explícita). Essa tensão, essas associações são exploradas em Polina, sobretudo na peça (dueto) que Polina e o seu namorado ensaiam, chegando mesmo a falarem de “fazer amor em público”. Quando ensaiam no quarto, poder-se-ia ler esses gestos como de uma sedução ou mesmo de consumação passional. Contudo, é por essa razão que essa expressão terá uma força mais limitada, ao passo que a relação de professor-aluna, de dois entendimentos da dança que apenas se desencontram por décadas, é a mais duradoura, e cerne do livro. Na fase final, no reencontro de Polina e Bojinski, há um momento magnífico, uma espécie de desmascaramento dos filtros que Polina havia cultivado ao longo do tempo (ou talvez desde sempre), e é como se a magia se desfizesse aos olhos dela, e aos nossos. Mas retorna. E é esse um outro gesto tocante que contribui, com os outros, para que este livro de Vivès seja uma rara e comovente história de amor.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.