No próximo Sábado, dia 28 de Janeiro, farei parte de uma mesa-redonda informal na Fundação de Serralves, no Porto, no ciclo "Cara de um gajo - conversas sobre Eduardo Batarda", por ocasião da sua exposição antológica nessa instituição, Outra vez não, Eduardo Batarda.
O convite honra-me muito, e será decididamente um prazer, devendo-se sobretudo ao ensaio sobre O Peregrino Blindado, de que havia dado conta aqui.
Estão todos convidados a esta mesa-redonda de que farei parte, e que conta com Mariana Pintos dos Santos, Pedro Proença e Pedro Serpa, tendo lugar na Biblioteca de Serralves, entre as 17h e as 19h. A entrada é gratuita. Mais informações, aqui.
Em princípio, a minha intervenção abordará algumas das incursões de de artistas da disciplina restrita das artes visuais no território da banda desenhada.
23 de janeiro de 2012
21 de janeiro de 2012
Klunk, Klaxon, Mores. Matos e Azevedo, topedro (auto-edição).
O encontro entre a poesia e a banda desenhada não é inédito, e tem uma história bastante variada e bela. E se bem que essa mesma história exija que se encontrasse uma maneira precisa de identificar o que seria a poesia, ou a poesia em banda desenhada ou a banda desenhada poética (e alguns teóricos e investigadores deste campo fizeram-no, ou tentam-no, cada qual com as suas vias, como Renato Calligaro ou Deniz Deprez), não nos referimos aqui a adaptações de poemas a este meio, número tremendo para iniciar a sua contagem, mas a trabalhos que podem ser tanto colaborações entre poetas e autores de banda desenhada como autores de banda desenhada que a empregam para criar um modo poético no seu interior. Alguns destes pontos já haviam sido abordados a propósito do livro de Luís Manuel Gaspar.
O encontro entre a filosofia e banda desenhada também não é inédito, ainda que a sua presença não seja tão marcada, e levante problemas de uma ordem bem diversa. Também aqui não nos referimos a meras adaptações de textos ou à utilização da banda desenhada como veículo de educação e simplificação sobre um determinado autor, nem de encontros criativos muito interessantes (como Logicomix) que todavia se mantêm num território espartilhado de exposição. Falamos de empregar este meio expressivo para aquilo que Foucault escreveu sobre a “actividade filosófica”, a saber, “o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo”, “a tarefa de saber como e até que ponto é possível pensar diferentemente”, ou mais dificilmente de entender, mas justíssimo, actividade que tem “o direito [de] explorar o que, no seu próprio pensamento, pode ser mudado mediante o exercício que faz de um saber que lhe é exterior”. E, finalmente, acrescenta que a forma eficaz - “o corpo vivo da filosofia” - de o fazer é o ensaio, “prova modificadora de si mesmo no jogo a verdade” (História da Sexualidade, Vol. 2). Não se tratará, portanto, de detectar qualquer momento de “mandar postas de pescada” sobre este ou aquele assunto, mas de escavar no interior de um pensamento, o que é menos imediato. Nesse sentido, talvez algumas páginas de Fabrice Neaud, as máquinas ficcionais dialogantes com Deleuze de tom Dieck e Balzer, e algumas frases (num sentido musical, que seria caro ao autor) de Baudoin se aproximem dessa tarefa.
Os dois livros que aqui trazemos à discussão cerzem ambas essas linhas. Se bem que o espaço que separa a poesia e a filosofia é, pelo menos desde Platão, um abismo, não significa tal que não se tenha arriscado a construção de pontes possíveis entre os dois regimes discursivos. É possível que estes dois livros o façam também. Passíveis de serem lidos em conjunto, não apenas por uma questão superficial dos objectos serem similares e atravessarem condições de produção próximas (exposição primeira em blogs, sequente edição em livro para um circuito limitado) é sobretudo pelas afinidades estilísticas, temáticas e filosóficas que parecem agregar que a leitura dupla se reforça. Não sendo propriamente livros conducentes ao acéfalo entretenimento ou cumprimento das fórmulas narrativas-económicas de outros títulos de maior circulação (e inerte maior “sucesso”), é possível que apenas conquistem uma fímbria reduzida de público leitor, mas creiamos que leitores que respondam à aplicação exigida pelos mesmos.
Mr. Klunk e o Senhor Klaxon. Jorge Matos e Paulo Azevedo (livros espontâneos)
Este livro é composto por pequeníssimos relatos que tanto podem ser lidos - isto é, analisados - individualmente (cada página é uma situação narrativa auto-suficiente), como nas séries agregadas (que os autores apelidam de “actos” e que são tituladas), como na sua totalidade. Dessa forma, são “poemas inconjuntos”, para citar Pessoa, que é presença clara nas histórias. Diegeticamente, tratam-se de nódulos narrativos em locais e tempos muito específicos (uma praia, as ruas de uma cidade, à noite próximos de uma taberna), em que as duas personagens - um homem que se adivinha ser um velho solitário, Mr. Klunk, e um cão falante com almejos de humanidade, Senhor Klaxon - digladiam argumentos em torno da condição humana (e canina, ambas espelhando-se de modos tão distorcidos quanto iluminadores, se nos recordarmos de “Investigações de um cão”, de Kafka, que topedro adapta no seu livro).
O resultado é uma estranha combinação do aforismo, do apólogo dialogal, e da anedota. Encontram-se naquele estranho balanço de humor de que Miguel Carneiro também faz uso com o seu Senhor Pinhão, onde a súbita clareza profunda do que é dito se anula pela brutalidade do humor contraposto, mas a primeira ainda assim deixa fazer os seus sentidos através da segunda. “Ilude-me com qualquer coisa, Klunk!”, pede Klaxon. “Dormi bem esta noite!”, responde o homem. Irrisório? Brilhante? As duas personagens são cínicos, no fundo, o que reforça ainda mais a noção canina da humanidade: recordemo-nos de que o termo é, originariamente, uma escola filosófica que aplica o apodo de “canino” (kunikos), com Antístenes e Diógenes. Klunk e Klaxon vivem ou ocupam papéis marginais da sociedade, e, por isso, utilizam essa distância para encontrar as facetas criticáveis e odiáveis nos outros, se bem que isso os impeça de serem capazes, ao mesmo tempo, de encontrar prazer em singelezas ou numa moralidade mais robusta e abrangente. Ambos ladram ao mundo, enquanto este lhes passa ao lado.
Esta natureza, digamos, política das personagens, esta distância e não-inscrição na normalidade dos modelos, é corroborada de uma maneira acabada pela parte visual do livro. Os desenhos de Jorge Matos são constituídos por um punhado de rabiscos. O termo é técnico. São aquelas linhas lançadas sobre o papel em primeiríssimo lugar para aí estabelecer o espaço, o campo, a divisão da área virgem, e onde se construirá o desenho com todos aqueles elementos que concorrerão para que ele seja visto como “final”. Não procura o artista, porém, essa finalidade. E seja a grafite, caneta ou marcador, combinando ou não essas ferramentas, tirando ou não partido de instrumentos digitais, quer a personagem humana quer o cão constituem-se sempre de modos diversos e flutuantes graças à aglomeração dessas poucas linhas. Isto poderia recordar muitos outros autores que tiram partido desta abordagem mínima (mas não “minimalista”, atenção), quer conducentes a um virtuosismo gráfico como Saul Steinberg, quer à exactidão expressiva de um Artur Varela, quer ainda à suficiência de Matt Feazel. No entanto, se há área à qual estamos aqui próximos, será aquela de uma expressividade nervosa, orgânica, impetuosa - e associada a conteúdos temáticos também irmanáveis - de um estilo que se tornou a matéria-prima de artistas como Gerald Scarfe ou Ralph Steadman, acima de quaisquer outros.
Talvez não seja por acaso que o nome da editora seja livros espontâneos. É da espontaneidade que de facto este livro parece viver, mas uma espontaneidade que obriga, pelo contrário, a uma pausa substancial na sua consideração.
Mores et al. Topedro (auto-edição)
Se o livro anterior deste autor construía uma só narrativa alongada, e de alguma densidade dramática, este segundo volume reúne também “peças” mais pequenas, e muito diferentes entre si. Uma primeira história, “Mores”, a mais longa, é um encadeamento mais ou menos solto, mais ou menos lógico, de uma série de pensamentos ou citações filosóficas - ditas pelas bocas dos mais diversos cidadãos comuns, de transeuntes a utilizadores de transportes públicos a prostitutas de rua, de mulheres às compras a polícias de trânsito - que fazem convergir ideias sobre a relação do homem com a moralidade, com uma suposta transcendência, com o papel da natureza, e daí a ligações sociais com a polis, as artes, e o corpo. Algumas das histórias que se seguem, e esta descrita, pelos intervenientes, têm aquele carácter de humor misto de que falámos a propósito do livro de Matos e Azevedo, anedotas que veiculam lições profundas ou pensamentos desconfortáveis mas necessários. Trabalhadores de obras públicas discutem a natureza da física contemporânea, e o modo como se aproximam menos das categorias empíricas e positivas de Aristóteles do que de outras mundividências, como as de Heraclito e Empédocles. Cita-se Aldous Huxley para encontrar os pomos de discórdia e as sementes de concórdia entre ciência e fé, religião e filosofia.
Estas histórias mergulham, então, em discursos abstractos, filosóficos, mas sempre procurando que ligações são possíveis de lhes dar um peso ou uma gravidade terrena, à escala humana. Procura-se menos uma transcendência absoluta e poética do que a beleza da imanência humana. Isso está reforçado no que se poderia chamar de segunda parte do livro, de um tom mais autobiográfico e mais contextualizado de forma concreta.
Como dissemos acima, há também aqui uma adaptação do conto-ensaio de Kafka, “Investigações de um cão”, que poderia ser comparada com Um mês e um dia, de Ruth Rosengarten, em termos de matéria plástica e composição estrutural, assim como da lição profunda filosófica que aproxima, na sociedade ocidental, o homem e o cão. Em termos de banda desenhada, topedro (ou Topedro), ou estará menos interessado num virtuosismo da linguagem desta área do que a possibilidade de dar a ver imagens que possam informar (aqui, “dar forma”) as palavras do escritor checo. Os desenhos são novamente construídos por breves linhas a art pen (imaginamos), depois adensadas por aguadas a pincel (a reprodução digital não permite perceber se o papel suporte é texturado, logo estas imagens parecem flutuar numa superfície anódina). Se a esmagadora maioria das estratégias de composição são simples, e até mesmo arbitrárias - e continua a empregar legendagem mecânica - , a verdade é que há um ou outro momento em que as estruturas podem ganhar um significado substancial (na história de Huxley, as aparentes divisões arbitrárias podem querer dar conta dos abismos já referidos e das tentativas de os pular).
Veja-se esta história, “O Seixo”, completa, para compreender o modo como o autor transforma a paisagem num plano a duas dimensões, cujas linhas convergentes servem para fundar a chegada a esse plano de imanência e integração na natureza.
É possível que haja quem pegue numa pedra e a deseje arremessar, por não a compreender à primeira. Não saberemos se a compreendemos ou não, mas queremos também sopesá-la.
Nota final: agradecimentos aos autores, pela oferta de ambas as publicações.
O encontro entre a filosofia e banda desenhada também não é inédito, ainda que a sua presença não seja tão marcada, e levante problemas de uma ordem bem diversa. Também aqui não nos referimos a meras adaptações de textos ou à utilização da banda desenhada como veículo de educação e simplificação sobre um determinado autor, nem de encontros criativos muito interessantes (como Logicomix) que todavia se mantêm num território espartilhado de exposição. Falamos de empregar este meio expressivo para aquilo que Foucault escreveu sobre a “actividade filosófica”, a saber, “o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo”, “a tarefa de saber como e até que ponto é possível pensar diferentemente”, ou mais dificilmente de entender, mas justíssimo, actividade que tem “o direito [de] explorar o que, no seu próprio pensamento, pode ser mudado mediante o exercício que faz de um saber que lhe é exterior”. E, finalmente, acrescenta que a forma eficaz - “o corpo vivo da filosofia” - de o fazer é o ensaio, “prova modificadora de si mesmo no jogo a verdade” (História da Sexualidade, Vol. 2). Não se tratará, portanto, de detectar qualquer momento de “mandar postas de pescada” sobre este ou aquele assunto, mas de escavar no interior de um pensamento, o que é menos imediato. Nesse sentido, talvez algumas páginas de Fabrice Neaud, as máquinas ficcionais dialogantes com Deleuze de tom Dieck e Balzer, e algumas frases (num sentido musical, que seria caro ao autor) de Baudoin se aproximem dessa tarefa.
Os dois livros que aqui trazemos à discussão cerzem ambas essas linhas. Se bem que o espaço que separa a poesia e a filosofia é, pelo menos desde Platão, um abismo, não significa tal que não se tenha arriscado a construção de pontes possíveis entre os dois regimes discursivos. É possível que estes dois livros o façam também. Passíveis de serem lidos em conjunto, não apenas por uma questão superficial dos objectos serem similares e atravessarem condições de produção próximas (exposição primeira em blogs, sequente edição em livro para um circuito limitado) é sobretudo pelas afinidades estilísticas, temáticas e filosóficas que parecem agregar que a leitura dupla se reforça. Não sendo propriamente livros conducentes ao acéfalo entretenimento ou cumprimento das fórmulas narrativas-económicas de outros títulos de maior circulação (e inerte maior “sucesso”), é possível que apenas conquistem uma fímbria reduzida de público leitor, mas creiamos que leitores que respondam à aplicação exigida pelos mesmos.
Mr. Klunk e o Senhor Klaxon. Jorge Matos e Paulo Azevedo (livros espontâneos)
Este livro é composto por pequeníssimos relatos que tanto podem ser lidos - isto é, analisados - individualmente (cada página é uma situação narrativa auto-suficiente), como nas séries agregadas (que os autores apelidam de “actos” e que são tituladas), como na sua totalidade. Dessa forma, são “poemas inconjuntos”, para citar Pessoa, que é presença clara nas histórias. Diegeticamente, tratam-se de nódulos narrativos em locais e tempos muito específicos (uma praia, as ruas de uma cidade, à noite próximos de uma taberna), em que as duas personagens - um homem que se adivinha ser um velho solitário, Mr. Klunk, e um cão falante com almejos de humanidade, Senhor Klaxon - digladiam argumentos em torno da condição humana (e canina, ambas espelhando-se de modos tão distorcidos quanto iluminadores, se nos recordarmos de “Investigações de um cão”, de Kafka, que topedro adapta no seu livro).
O resultado é uma estranha combinação do aforismo, do apólogo dialogal, e da anedota. Encontram-se naquele estranho balanço de humor de que Miguel Carneiro também faz uso com o seu Senhor Pinhão, onde a súbita clareza profunda do que é dito se anula pela brutalidade do humor contraposto, mas a primeira ainda assim deixa fazer os seus sentidos através da segunda. “Ilude-me com qualquer coisa, Klunk!”, pede Klaxon. “Dormi bem esta noite!”, responde o homem. Irrisório? Brilhante? As duas personagens são cínicos, no fundo, o que reforça ainda mais a noção canina da humanidade: recordemo-nos de que o termo é, originariamente, uma escola filosófica que aplica o apodo de “canino” (kunikos), com Antístenes e Diógenes. Klunk e Klaxon vivem ou ocupam papéis marginais da sociedade, e, por isso, utilizam essa distância para encontrar as facetas criticáveis e odiáveis nos outros, se bem que isso os impeça de serem capazes, ao mesmo tempo, de encontrar prazer em singelezas ou numa moralidade mais robusta e abrangente. Ambos ladram ao mundo, enquanto este lhes passa ao lado.
Esta natureza, digamos, política das personagens, esta distância e não-inscrição na normalidade dos modelos, é corroborada de uma maneira acabada pela parte visual do livro. Os desenhos de Jorge Matos são constituídos por um punhado de rabiscos. O termo é técnico. São aquelas linhas lançadas sobre o papel em primeiríssimo lugar para aí estabelecer o espaço, o campo, a divisão da área virgem, e onde se construirá o desenho com todos aqueles elementos que concorrerão para que ele seja visto como “final”. Não procura o artista, porém, essa finalidade. E seja a grafite, caneta ou marcador, combinando ou não essas ferramentas, tirando ou não partido de instrumentos digitais, quer a personagem humana quer o cão constituem-se sempre de modos diversos e flutuantes graças à aglomeração dessas poucas linhas. Isto poderia recordar muitos outros autores que tiram partido desta abordagem mínima (mas não “minimalista”, atenção), quer conducentes a um virtuosismo gráfico como Saul Steinberg, quer à exactidão expressiva de um Artur Varela, quer ainda à suficiência de Matt Feazel. No entanto, se há área à qual estamos aqui próximos, será aquela de uma expressividade nervosa, orgânica, impetuosa - e associada a conteúdos temáticos também irmanáveis - de um estilo que se tornou a matéria-prima de artistas como Gerald Scarfe ou Ralph Steadman, acima de quaisquer outros.
Talvez não seja por acaso que o nome da editora seja livros espontâneos. É da espontaneidade que de facto este livro parece viver, mas uma espontaneidade que obriga, pelo contrário, a uma pausa substancial na sua consideração.
Mores et al. Topedro (auto-edição)
Se o livro anterior deste autor construía uma só narrativa alongada, e de alguma densidade dramática, este segundo volume reúne também “peças” mais pequenas, e muito diferentes entre si. Uma primeira história, “Mores”, a mais longa, é um encadeamento mais ou menos solto, mais ou menos lógico, de uma série de pensamentos ou citações filosóficas - ditas pelas bocas dos mais diversos cidadãos comuns, de transeuntes a utilizadores de transportes públicos a prostitutas de rua, de mulheres às compras a polícias de trânsito - que fazem convergir ideias sobre a relação do homem com a moralidade, com uma suposta transcendência, com o papel da natureza, e daí a ligações sociais com a polis, as artes, e o corpo. Algumas das histórias que se seguem, e esta descrita, pelos intervenientes, têm aquele carácter de humor misto de que falámos a propósito do livro de Matos e Azevedo, anedotas que veiculam lições profundas ou pensamentos desconfortáveis mas necessários. Trabalhadores de obras públicas discutem a natureza da física contemporânea, e o modo como se aproximam menos das categorias empíricas e positivas de Aristóteles do que de outras mundividências, como as de Heraclito e Empédocles. Cita-se Aldous Huxley para encontrar os pomos de discórdia e as sementes de concórdia entre ciência e fé, religião e filosofia.
Estas histórias mergulham, então, em discursos abstractos, filosóficos, mas sempre procurando que ligações são possíveis de lhes dar um peso ou uma gravidade terrena, à escala humana. Procura-se menos uma transcendência absoluta e poética do que a beleza da imanência humana. Isso está reforçado no que se poderia chamar de segunda parte do livro, de um tom mais autobiográfico e mais contextualizado de forma concreta.
Como dissemos acima, há também aqui uma adaptação do conto-ensaio de Kafka, “Investigações de um cão”, que poderia ser comparada com Um mês e um dia, de Ruth Rosengarten, em termos de matéria plástica e composição estrutural, assim como da lição profunda filosófica que aproxima, na sociedade ocidental, o homem e o cão. Em termos de banda desenhada, topedro (ou Topedro), ou estará menos interessado num virtuosismo da linguagem desta área do que a possibilidade de dar a ver imagens que possam informar (aqui, “dar forma”) as palavras do escritor checo. Os desenhos são novamente construídos por breves linhas a art pen (imaginamos), depois adensadas por aguadas a pincel (a reprodução digital não permite perceber se o papel suporte é texturado, logo estas imagens parecem flutuar numa superfície anódina). Se a esmagadora maioria das estratégias de composição são simples, e até mesmo arbitrárias - e continua a empregar legendagem mecânica - , a verdade é que há um ou outro momento em que as estruturas podem ganhar um significado substancial (na história de Huxley, as aparentes divisões arbitrárias podem querer dar conta dos abismos já referidos e das tentativas de os pular).
Veja-se esta história, “O Seixo”, completa, para compreender o modo como o autor transforma a paisagem num plano a duas dimensões, cujas linhas convergentes servem para fundar a chegada a esse plano de imanência e integração na natureza.
É possível que haja quem pegue numa pedra e a deseje arremessar, por não a compreender à primeira. Não saberemos se a compreendemos ou não, mas queremos também sopesá-la.
Nota final: agradecimentos aos autores, pela oferta de ambas as publicações.
19 de janeiro de 2012
Fábricas, baldios, fé e pedras atiradas à lama. Tiago Baptista (Oficina do Cego/a9)))))
Esta publicação reúne vários trabalhos do artista Tiago Baptista, alguns dos quais foram publicados em fanzines (Cléopatra) ou outras publicações (como o jornal da Oficina do Cego). O autor é estudante de pintura, e trabalha vivamente nessa área também. Publicada esta antologia por duas associações culturais sem fins lucrativos, ligadas a áreas distintas mas irmanáveis da cultura visual, da arte contemporânea e de um certo posicionamento face à educação, circulação e discussão da cultura no país, e ainda mais agregando quer o trabalho do autor quer as características do que encontraremos no seu interior, pode dar-se o caso de que este objecto habite uma complicada fronteira tripartida entre o círculo tout court da banda desenhada, o livro de artista e outros modos de publicação independente. A cada um desses descritivos corresponderá um circuito social e económico, que se pode cruzar aqui e além, mas que tem qualificações específicas. Logo, a escolha do termo certo para o descrever lança Fábricas, baldios, fé e pedras atiradas à lama a jogos muito diferentes. Não incompatíveis, é certo (afinal, há a confluência autoral destas linhas de força), mas muitas vezes afastados.
De certa forma, Tiago Baptista não está sozinho nesta situação. Os casos mais próximos destes contornos é o trabalho partilhado de Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, mas também poderíamos arrolar um projecto de Mattia Denise que levanta questões similares. Afinal, teremos aqui bandas desenhadas que podem ser lidas descontextualizadas por completo da restante obra ou tarefas do autor? Devem ser lidas, pelo contrário, numa relação obrigatória com os temas e preocupações presentes na pintura (o barro, as relações dinheiro-arte, os discursos em torno da arte)? Podem ser lidas estas histórias (algumas) como palcos de esboço de obras futuras, ou então como locais de pensamento discursivo sobre as inquietudes que depois se expressam doutro modo, com outra matéria, nas pinturas? Não temos a veleidade de querer responder a estas perguntas, mas com elas alertar para as possibilidades múltiplas que se nos oferecem.
Se bem que seja possível, com pesquisa, aproximações jornalísticas, e um exercício de juntar pequenas informações, possamos encontrar algumas dessas respostas. Os trabalhos reunidos são algo díspares entre si, apesar de se poderem agregar alguns grupos. As primeiras peças, digamos assim, estão muito próximas de trabalhos de Sousa e Pinheiro, no sentido em que são composições visuais que tiram partido das estruturas e figurações da banda desenhada mas para criar curtos discursos - quase apetece dizer “instantâneos” - que abordam o estado das artes visuais contemporâneas em Portugal, e seus enleios com a maquinaria político-financeira, por exemplo. Outros, na mesma veia, acabam por responder a movimentos mais profundos das inquietações do artista. Outros revelam de uma cultura mais jovem, despreocupada, zine à pressa, mais anedotas súbitas que ponderado exercício.
Uma série há, deliciosa, que coloca uma personagem chamada Zé Cabeludo - há pistas para crer que se trata de um jogo de auto-ficção - que se senta numa sala de cinema com realizadores famosos, a saber, Manoel de Oliveira, François Truffaut, Andrei Tarkovski e Ingmar Bergman para verem obras-primas contemporâneas dessa arte, respectivamente Espião nas horas vagas (com Jackie Chan), Uma noite atribulada e Marmaduke! Com Bergman, apesar de estar em cena “Uma valente porcaria, com Manel Parolo e Gaja Boa” ou “Parvalhão & Parvalhona em Cenas Parvas”, acabam por desistir… Os diálogos são muito diferentes, conforme o interlocutor, consistindo nas diatribes de Zé Cabeludo contra o estado miserável do cinema comercial e o que ele implica em termos de alienação social e intelectual. O divertido está sobretudo nas reacções dos realizadores, com Tarkovski a não responder ao insistente rapaz, ou Truffaut a optar por um cigarro… Os discursos criados, seja como for, não estão longe do retrato que emerge na leitura de todas as histórias.
As figuras de Tiago Baptista têm uma espécie de falta de elegância que lhes dá um charme especial. Não se trata da elegância do traço, que possui, mas das estratégias de figuração. Elas encontram-se num balanço interessante entre a abordagem virtuosa e a caricatura, com as cabeças ligeiramente desproporcionais em relação aos esguios corpos menores e de borracha, e o autor parece inclinar-se, nas expressões, para rostos apáticos, atordoados, distraídos ou até tolos. Quer Zé Cabeludo quer uma outra personagem de óculos que surge em várias das histórias se assemelham entre si e com o autor ele-mesmo, o que aliado a informações textuais e paratextuais, nos reforça a ideia de alguma abordagem autobiográfica, mesmo que ora velada ora ficcionalizada. É isso o que fará distinguir algumas das histórias, umas simples em termos gráficos, quase catárticas, outras preenchidas por tramas densas e volumosas e abertas a esses discursos, a um só tempo, apocalípticos e integrados, virulentos e construtivos…
Há um aspecto na abordagem do autor com o qual encontramos um pequeno obstáculo de concordância. Trata-se de uma matéria abordada na história “Um dia no subúrbio”, de cinco páginas. As primeiras quatro mostram nove vinhetas (duas das quais ocupando a página inteira) de várias cenas de um qualquer - se bem que seja facilmente identificável para quem o conheça - subúrbio urbano. Os desenhos são de uma acalmia maravilhosa, mostrando ora aquelas margens entre o campo e a cidade, ora entre os baldios e as zonas densamente habitadas, pontos de passagem e do transitório quase absoluto, quase sempre sem recurso à figura humana. Ou então uma vista de uma qualquer loja, ou paragem de autocarro, mas com uma distância suficiente para lhe conseguir insuflar uma estranha aura. Ao mesmo tempo, uma legenda flutuante com texto tece comentários aparentemente de elogio a essas mesmas paragens, mas com um nítido tom irónico e que pretende ser disruptivo com as imagens: “As construções recentes convivem saudavelmente com a pontual arquitectura de cariz rural que ainda existe”, escreve-se sobre a imagem de um canto esquálido e arquitectonicamente anónimo do subúrbio, “Na periferia também há restaurantes agradáveis”, reza sobre uma imagem de um McDonald’s… Não é a primeira vez que falamos destes assuntos associando-o aos posicionamentos ético-políticos possíveis de ocorrer numa obra gráfica (fizemo-lo com um livro de Ricardo Cabral e outro de António Jorge Gonçalves). Ora, tememos que haja da parte de Tiago Baptista uma falha - de grau, entenda-se, não no gesto total - em compreender a vivência, a experiência que pode emergir das pessoas que vivem esses interstícios urbanos e o subsequente reconhecimento que deve ser tarefa do artista. Vive lá gente, afinal. Em vez de transformar o possível exercício da dérive situacionista para interrogar e fazer emergir novos processos de pensamento e criação e resposta em relação a essas paragens - que na sua suposta desolação de valores cria outros inesperados -, em vez de desenterrar “passagens secretas de uma outra espécie” (para citar o autor surrealista inglês Anthony Earnshaw), o autor opta por repetir essa distância que acaba por tipificar o intelectual e o artista em relação a esses locais. Poder-se-ia objectar que essa distância está em consonância com os posicionamentos das histórias de cinema, mas se esse elitismo nasce no seio das relações com obras de arte, sobre as quais se criarão redes de referências estéticas e hierarquias de valorização, em relação aos locais isso implica uma outra ordem de interrelacionamento humano que não pode ser escamoteado.
No entanto, esse é um aspecto de somenos, talvez, ao golo central do artista com essa pequena história, e toda a sua publicação, que é concentrar os seus esforços num objecto que passa agora a circular entre nós e, como tal, deve ser dado à leitura mais ampla possível.
Nota: como sabem, somos associados da Oficina do Cego. Valha o que valer a distância e proximidade dessa plataforma na nossa leitura do livro. A outra associação a que o autor está associado é a a9)))).
De certa forma, Tiago Baptista não está sozinho nesta situação. Os casos mais próximos destes contornos é o trabalho partilhado de Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, mas também poderíamos arrolar um projecto de Mattia Denise que levanta questões similares. Afinal, teremos aqui bandas desenhadas que podem ser lidas descontextualizadas por completo da restante obra ou tarefas do autor? Devem ser lidas, pelo contrário, numa relação obrigatória com os temas e preocupações presentes na pintura (o barro, as relações dinheiro-arte, os discursos em torno da arte)? Podem ser lidas estas histórias (algumas) como palcos de esboço de obras futuras, ou então como locais de pensamento discursivo sobre as inquietudes que depois se expressam doutro modo, com outra matéria, nas pinturas? Não temos a veleidade de querer responder a estas perguntas, mas com elas alertar para as possibilidades múltiplas que se nos oferecem.
Se bem que seja possível, com pesquisa, aproximações jornalísticas, e um exercício de juntar pequenas informações, possamos encontrar algumas dessas respostas. Os trabalhos reunidos são algo díspares entre si, apesar de se poderem agregar alguns grupos. As primeiras peças, digamos assim, estão muito próximas de trabalhos de Sousa e Pinheiro, no sentido em que são composições visuais que tiram partido das estruturas e figurações da banda desenhada mas para criar curtos discursos - quase apetece dizer “instantâneos” - que abordam o estado das artes visuais contemporâneas em Portugal, e seus enleios com a maquinaria político-financeira, por exemplo. Outros, na mesma veia, acabam por responder a movimentos mais profundos das inquietações do artista. Outros revelam de uma cultura mais jovem, despreocupada, zine à pressa, mais anedotas súbitas que ponderado exercício.
Uma série há, deliciosa, que coloca uma personagem chamada Zé Cabeludo - há pistas para crer que se trata de um jogo de auto-ficção - que se senta numa sala de cinema com realizadores famosos, a saber, Manoel de Oliveira, François Truffaut, Andrei Tarkovski e Ingmar Bergman para verem obras-primas contemporâneas dessa arte, respectivamente Espião nas horas vagas (com Jackie Chan), Uma noite atribulada e Marmaduke! Com Bergman, apesar de estar em cena “Uma valente porcaria, com Manel Parolo e Gaja Boa” ou “Parvalhão & Parvalhona em Cenas Parvas”, acabam por desistir… Os diálogos são muito diferentes, conforme o interlocutor, consistindo nas diatribes de Zé Cabeludo contra o estado miserável do cinema comercial e o que ele implica em termos de alienação social e intelectual. O divertido está sobretudo nas reacções dos realizadores, com Tarkovski a não responder ao insistente rapaz, ou Truffaut a optar por um cigarro… Os discursos criados, seja como for, não estão longe do retrato que emerge na leitura de todas as histórias.
As figuras de Tiago Baptista têm uma espécie de falta de elegância que lhes dá um charme especial. Não se trata da elegância do traço, que possui, mas das estratégias de figuração. Elas encontram-se num balanço interessante entre a abordagem virtuosa e a caricatura, com as cabeças ligeiramente desproporcionais em relação aos esguios corpos menores e de borracha, e o autor parece inclinar-se, nas expressões, para rostos apáticos, atordoados, distraídos ou até tolos. Quer Zé Cabeludo quer uma outra personagem de óculos que surge em várias das histórias se assemelham entre si e com o autor ele-mesmo, o que aliado a informações textuais e paratextuais, nos reforça a ideia de alguma abordagem autobiográfica, mesmo que ora velada ora ficcionalizada. É isso o que fará distinguir algumas das histórias, umas simples em termos gráficos, quase catárticas, outras preenchidas por tramas densas e volumosas e abertas a esses discursos, a um só tempo, apocalípticos e integrados, virulentos e construtivos…
Há um aspecto na abordagem do autor com o qual encontramos um pequeno obstáculo de concordância. Trata-se de uma matéria abordada na história “Um dia no subúrbio”, de cinco páginas. As primeiras quatro mostram nove vinhetas (duas das quais ocupando a página inteira) de várias cenas de um qualquer - se bem que seja facilmente identificável para quem o conheça - subúrbio urbano. Os desenhos são de uma acalmia maravilhosa, mostrando ora aquelas margens entre o campo e a cidade, ora entre os baldios e as zonas densamente habitadas, pontos de passagem e do transitório quase absoluto, quase sempre sem recurso à figura humana. Ou então uma vista de uma qualquer loja, ou paragem de autocarro, mas com uma distância suficiente para lhe conseguir insuflar uma estranha aura. Ao mesmo tempo, uma legenda flutuante com texto tece comentários aparentemente de elogio a essas mesmas paragens, mas com um nítido tom irónico e que pretende ser disruptivo com as imagens: “As construções recentes convivem saudavelmente com a pontual arquitectura de cariz rural que ainda existe”, escreve-se sobre a imagem de um canto esquálido e arquitectonicamente anónimo do subúrbio, “Na periferia também há restaurantes agradáveis”, reza sobre uma imagem de um McDonald’s… Não é a primeira vez que falamos destes assuntos associando-o aos posicionamentos ético-políticos possíveis de ocorrer numa obra gráfica (fizemo-lo com um livro de Ricardo Cabral e outro de António Jorge Gonçalves). Ora, tememos que haja da parte de Tiago Baptista uma falha - de grau, entenda-se, não no gesto total - em compreender a vivência, a experiência que pode emergir das pessoas que vivem esses interstícios urbanos e o subsequente reconhecimento que deve ser tarefa do artista. Vive lá gente, afinal. Em vez de transformar o possível exercício da dérive situacionista para interrogar e fazer emergir novos processos de pensamento e criação e resposta em relação a essas paragens - que na sua suposta desolação de valores cria outros inesperados -, em vez de desenterrar “passagens secretas de uma outra espécie” (para citar o autor surrealista inglês Anthony Earnshaw), o autor opta por repetir essa distância que acaba por tipificar o intelectual e o artista em relação a esses locais. Poder-se-ia objectar que essa distância está em consonância com os posicionamentos das histórias de cinema, mas se esse elitismo nasce no seio das relações com obras de arte, sobre as quais se criarão redes de referências estéticas e hierarquias de valorização, em relação aos locais isso implica uma outra ordem de interrelacionamento humano que não pode ser escamoteado.
No entanto, esse é um aspecto de somenos, talvez, ao golo central do artista com essa pequena história, e toda a sua publicação, que é concentrar os seus esforços num objecto que passa agora a circular entre nós e, como tal, deve ser dado à leitura mais ampla possível.
Nota: como sabem, somos associados da Oficina do Cego. Valha o que valer a distância e proximidade dessa plataforma na nossa leitura do livro. A outra associação a que o autor está associado é a a9)))).
18 de janeiro de 2012
Pontas Soltas. Ricardo Cabral (Asa)
Permitam-nos começar com uma impressão de infância. Vivendo em Lisboa ou nos seus subúrbios e visitando-a regularmente, havia como que um número fechado de ruas que se atravessavam, enclausuradas nas rotas dos transportes públicos ou nas escolhas constantes do carro do pai. Isso levava a que existissem ruas que viravam, ou subiam, ou desciam, mas em direcções nunca trilhadas e por isso totalmente desconhecidas, criando sempre um espaço “invisível” e que, assim, convidava à fantasia. Pontas soltas da cidade. Uma das sensações mais maravilhosas e que agora é impossível de recuperar era a de ir por uma rua nova e desconhecida, e de repente desembocar num largo familiar, numa daquelas ruas de todos os dias, num local conhecido. Vir a dar a um lugar pelo outro lado. Essa sensação trazia uma súbita nova peça no puzzle, mas ao mesmo tempo ia apagando as zonas “ocultas” ou “pontos cegos”… Outra noção que se ia formando aos poucos era a de que a cidade de Lisboa parecia assemelhar-se a uma só colina - ouvia-se que tinha sete colinas (mito que mima o de Roma, mas porque não o manter?) -, mas desconfiava-se que elas estavam todas agregadas num só cume. Ou então como uma imensa torre cujos contornos exactos estavam sempre fora de foco. A cidade era inclinada e parecia subir aqui, descer ali, convergir acolá, formando então essa ideia de que haveria um ponto central no topo da cidade a partir do qual se poderia vislumbrá-la toda. No Jardim da Estrela havia um coreto que parecia espiralar nessa direcção. Atrás dos muros do Castelo de São Jorge previa-se existir outra solução…
A capa do novo livro de Ricardo Cabral cria um vértice em que todas estas sensações se vêm unir numa massa significativa. Este é um volume que reúne toda uma série de trabalhos curtos que haviam sido publicados noutras publicações, a maior parte das quais tivemos a oportunidade de ir dando conta aqui, e, como escreve o autor no prefácio, têm mais a ver com encontros - com os locais, é certo, mas também com as pessoas ou objectos locais - do que com uma vontade de criar “retratos” exactos das cidades visitadas. Afinal, devolver olhares turísticos é o que há de mais repetido, portanto é mais fiel a uma possível experiência partilhável entre o autor e os seus leitores o moldar as observações de um quotidiano banal, mas que representado por estes instrumentos se transmuta, ou então através da combinação do que foi seleccionado, ou através mesmo de uma ficção ou fantasia. Apesar de todas elas nascerem nas páginas e nos gestos dos diários gráficos do autor, não há nunca um olhar objectivo em relação ao que vê e devolve, mas antes um esforço em captar e desenvolver, no papel, as interrelações que emergem nesses momentos.
Uma vez que já havíamos falado de algumas destas histórias, de modo breve, quando da edição de Portimão, City Stories e Lisbon Studio Mag, e muitos das leituras repetir-se-iam em relação às histórias novas, fiquemo-nos por dois breves comentários sobre as duas imagens mostradas neste espaço. A primeira é uma página arrancada da história sobre Barcelona, uma cena nocturna à porta da Sagrada Família, em que os rituais dos turistas são interrompidos por um intempestivo bêbado. Num exercício de desdobramento no próprio relato, o autor confessa a uma amiga, que vê aquela página ou ouve a história, a estranha cena da dissolução do homem ébrio no ar, cujas últimas formas recordam uns nódulos orgânicos que compunham a pintura de Moebius num projecto intitulado Quatre-vingt huit. Há aqui uma breve e turbulenta promessa da parte de Ricardo Cabral de poder encontrar na mais chã das realidades e mesquinha das circunstâncias as peças necessárias para uma fuga fantasiosa, mas ele insiste no regresso à vida diária, talvez com isso querendo demonstrar a sua preferência por se deleitar com essas mesmas simplicidades. Aliás, isso ressoaria de modo significativo no número de cenas em que surge, no interior do plano de composição, as páginas em branco dos seus blocos de desenho. Mais do que a angústia de Mallarmé, Cabral parece entender as folhas brancas como nos versos de Valéry, “que nada há de mais belo/do que o que não existe”.
Essa atitude é ainda mais bela ao perceber o modo como o autor procura variadíssimas soluções no modo como passa a integrar esses gestos diários numa narrativa mais desenvolta, como tenta transformar essas capturas quotidianas e ao acaso em elementos que ajudem no sentido de uma história. Assim, na segunda parte da história de Marselha, a incompletude das cores sobre algumas personagens na folha dupla do bloco de desenhos, que se torna depois apenas uma vinheta, e a sobreposição de linhas, permite a emergência de uma espécie de fantasmas gráficos e cromáticos. São essas figuras que nos dão a ideia do transitório e da instantânea nostalgia que se instala no presente se se o observa com a distância necessária para a captar num desenho, ou num apontamento.
Que sejam pontas soltas, exteriores a uma maior programação do esforço criativo, não haverá dúvida, mas que Ricardo Cabral cria ainda assim um fio de Ariadne em torno de cidades com os seus pontos cegos e preenchimentos fantasiosos, tampouco.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
A capa do novo livro de Ricardo Cabral cria um vértice em que todas estas sensações se vêm unir numa massa significativa. Este é um volume que reúne toda uma série de trabalhos curtos que haviam sido publicados noutras publicações, a maior parte das quais tivemos a oportunidade de ir dando conta aqui, e, como escreve o autor no prefácio, têm mais a ver com encontros - com os locais, é certo, mas também com as pessoas ou objectos locais - do que com uma vontade de criar “retratos” exactos das cidades visitadas. Afinal, devolver olhares turísticos é o que há de mais repetido, portanto é mais fiel a uma possível experiência partilhável entre o autor e os seus leitores o moldar as observações de um quotidiano banal, mas que representado por estes instrumentos se transmuta, ou então através da combinação do que foi seleccionado, ou através mesmo de uma ficção ou fantasia. Apesar de todas elas nascerem nas páginas e nos gestos dos diários gráficos do autor, não há nunca um olhar objectivo em relação ao que vê e devolve, mas antes um esforço em captar e desenvolver, no papel, as interrelações que emergem nesses momentos.
Uma vez que já havíamos falado de algumas destas histórias, de modo breve, quando da edição de Portimão, City Stories e Lisbon Studio Mag, e muitos das leituras repetir-se-iam em relação às histórias novas, fiquemo-nos por dois breves comentários sobre as duas imagens mostradas neste espaço. A primeira é uma página arrancada da história sobre Barcelona, uma cena nocturna à porta da Sagrada Família, em que os rituais dos turistas são interrompidos por um intempestivo bêbado. Num exercício de desdobramento no próprio relato, o autor confessa a uma amiga, que vê aquela página ou ouve a história, a estranha cena da dissolução do homem ébrio no ar, cujas últimas formas recordam uns nódulos orgânicos que compunham a pintura de Moebius num projecto intitulado Quatre-vingt huit. Há aqui uma breve e turbulenta promessa da parte de Ricardo Cabral de poder encontrar na mais chã das realidades e mesquinha das circunstâncias as peças necessárias para uma fuga fantasiosa, mas ele insiste no regresso à vida diária, talvez com isso querendo demonstrar a sua preferência por se deleitar com essas mesmas simplicidades. Aliás, isso ressoaria de modo significativo no número de cenas em que surge, no interior do plano de composição, as páginas em branco dos seus blocos de desenho. Mais do que a angústia de Mallarmé, Cabral parece entender as folhas brancas como nos versos de Valéry, “que nada há de mais belo/do que o que não existe”.
Essa atitude é ainda mais bela ao perceber o modo como o autor procura variadíssimas soluções no modo como passa a integrar esses gestos diários numa narrativa mais desenvolta, como tenta transformar essas capturas quotidianas e ao acaso em elementos que ajudem no sentido de uma história. Assim, na segunda parte da história de Marselha, a incompletude das cores sobre algumas personagens na folha dupla do bloco de desenhos, que se torna depois apenas uma vinheta, e a sobreposição de linhas, permite a emergência de uma espécie de fantasmas gráficos e cromáticos. São essas figuras que nos dão a ideia do transitório e da instantânea nostalgia que se instala no presente se se o observa com a distância necessária para a captar num desenho, ou num apontamento.
Que sejam pontas soltas, exteriores a uma maior programação do esforço criativo, não haverá dúvida, mas que Ricardo Cabral cria ainda assim um fio de Ariadne em torno de cidades com os seus pontos cegos e preenchimentos fantasiosos, tampouco.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
16 de janeiro de 2012
Mister Wonderful. Daniel Clowes (Pantheon)
O autor chama a esta obra de “midlife romance”, na contracapa. Em inglês, o segundo termo restringe-se a “romance de amor”, e o primeiro é o qualificativo, relacionado com “a crise dos 40” (ou dos 50 ou 60, conforme o caso). Ainda na língua inglesa, em certos círculos, fala-se, quando se procura por um parceiro na felicidade amorosa, de um “Mr. Right” (por cá é “Príncipe Encantado”)… O título é, a um só tempo, um exagero, de “certo” para “maravilhoso”, e uma ironia, já que o protagonista, Marshall, estará longe de preencher o papel adivinhado por essa palavra. Ou não?
Marshall faz parte dessa linha de personagens que Clowes tem moldado nas últimas décadas. Solitário depois de um casamento que tinha todos os ingredientes para falhar, uma vida profissional frágil, uma cada vez mais distante relação com o mundo que o rodeia e cresce em direcções que ele despreza, e mergulhado numa bílis que ora não compreende ora não domina e o cega para os seus próprios preconceitos (como todos nós), Marshall parece encontrar apenas consolação em pequenos prazeres ridículos ou então nos discursos que vai tecendo para si mesmo - e que são acedidos pelos leitores. E a mulher com quem ele inicia uma relação, Natalie, não é de todo muito diferente desse retrato clínico, se bem que a “bagagem” dela defira da dele. Em suma, e mais uma vez, surgem aqui duas personagens derrotadas pelas circunstâncias de uma vida fraca e que nada deve ao glamour da ficção, e é o embate de ambos que poderá provocar uma qualquer faísca. No entanto, o abismo da focalização, da voz, do protagonismo, vem de um ponto de dentro de Marshall.
Quando finalmente a mulher com quem havia marcado um encontro às cegas, Natalie, aparece, raramente temos acesso às palavras que ela diz, mesmo vendo os contornos e colocação dos balões de fala que lhe pertencem. Essas elocuções estão ocultas pelos pensamentos de Marshall, apresentados sob a forma de legendas narrativas. Isso diz muito das estratégias de Clowes, que afunilam, quase de modo claustrofóbico, sobre o protagonista, e ao mesmo tempo à personalidade de Marshall, a um certo grau de autocomiseração, de sentimentos paradoxais de inferioridade e superioridade e de ensimesmamento quase extremo. Isso encontra o seu acme no surgimento de uma espécie de pequeno Marshall demoníaco, avatar cartoonesco típico da consciência (e, ao mesmo tempo, não sendo impossível livrar-nos da sensação de ser uma homenagem ao Mr. Mxyzptlk de Curt Swan). E as sistemáticas interrupções de fantasias na cabeça de Marshall (idênticas àquelas feitas por Chris Ware em Jimmy Corrigan), mas num regime de representação chibi. E a autoconsciência de que ele é capaz, deslizando “na auto-depreciação no interior do meu próprio monólogo” (pg. 42). Em suma, uma personagem tão patética como a esmagadora maioria do bestiário a que Clowes nos tem habituado.
Uma ilha surge neste ensimesmamento, e toda a narrativa se altera subitamente, quando, devido a um assalto, Marshall é obrigado a tomar a iniciativa, e física, e violenta, para resolver o problema. Todo o regime narrativo se altera e passamos a “escutar” ambas as personagens num plano de igualdade. Mas é uma ilha, ilusória, e voltamos aos trilhos habituais num ápice. Essa interrupção ecoa no trilho da narrativa as tais interrupções estilísticas que Clowes faz ao regime “normal”, no trilho da imagem. É verdade que em Ice Haven o que agora se pode apelidar de “heterogeneidade gráfica” (segundo lições de Thierry Smolderen e Thierry Groensteen) era mais radical e diversa. Mas isso não nos impede de encontrar aqui “mudanças de registos gráficos [que] interpelam directamente o receptor, dificultando a função transitiva da imagem e pondo em dúvida o lugar hegemónico do relato” (como lemos num artigo intitulado “La(s) aventura(s) de la forma. La heterogeneidad gráfica como vía de experimentación en el cómic”, de Álvaro Nofuentes, apresentado em Alcalá de Henares). Não nos parecendo que a “verdade” suposta do que Marshall nos conta está colocada em questão em termos tão profundos, a utilização desses registos mais abonecados podem querer dar conta de várias coisas: o desespero de causa das fantasias de Marshall, a natureza dos tais prazeres mínimos (ele é cliente assíduo do ebay, logo coleccionador/comprador compulsivo, logo…), a inocuidade desses mesmos ensejos, etc.
Clowes consegue criar em duas ou três penadas (vinhetas, entenda-se, o que exige algum esforço bem além dessas “penadas”) um qualquer ambiente social e o modo enviesado com que nos dá a conhecer os seus elementos e habitantes através das suas personagens levam-nos, por vezes, a concordar com elas (isso não ocorre em Wilson). A sua gestão do espaço de composição - tendo em conta que este é um livro oblongo, e o número de vinhetas é diminuto - encontra-se num controlo excelente. Repare-se como, nesta prancha, numa cena de diálogo, que muitos autores medíocres ou presos a géneros determinados, pensam ser “desinteressantes”, Clowes consegue dar a ver uma rápida evolução entre a relação das personagens, tirando partindo do enquadramento e da focalização, do afastamento e aproximação das personagens, do aparente crescimento do vento que os envolve, da gestão dos silêncios das falas e equilíbrio das legendas narrativas, e do repentino “corte” que faz do casal de todo o ambiente, para que se sublinhe o estado atingido dessa relação. E, mais, da narrativa, em que apenas a atenção e entrega dos leitores ao que é dito com tão pouco faz ver por completo a alma aberta de Marshall, e assim, a promessa de uma resolução comum. Talvez não feliz, mas comum, pelo menos.
Independentemente da vida pessoal de Clowes, que não só não nos interessa como não nos deveria interessar, a sua visão das relações pessoais e amorosas, nas obras, parece ser sempre lúgubre. Ao contrário da esmagadora maioria das produções cinematográficas do mainstream, com as quais partilha muitos dos elementos, dos ambientes, das tramas narrativas de encontros e desencontros, Clowes atinge conclusões bem diversas. Quiçá tão ficcionais quanto os “happy endings”, diga-se de passagem, mas pelo menos capazes de auscultar de uma maneira mais realista e mais digna da capacidade que o ser humano tem em errar, magoar os outros e fazer-se de estúpido. Se o final de Mr. Wonderful é tão erroneamente “maravilhoso” como o seu título, ou se na verdade a “maravilha” se encontra na capacidade de crer ainda no mais profundo âmago do patético e do derrotismo, cada leitor decidirá.
Mister Wonderful foi pré-publicado episodicamente no The New York Times Magazine, o que levaria a pensarmos numa possibilidade de nova vida da banda desenhada nos jornais, não regressando a fórmulas impossíveis de repetir de um tempo supostamento “áureo” (quer da produção da banda desenhada quer do papel específico dos jornais), mas antes procurando novas maneiras de associar públicos específicos, modos contemporâneos da banda desenhada, técnicas de reprodução, edição, serialização e circulação. Recordemo-nos da experiência de Zentner e Mattotti com Le bruit du givre, de Chris Ware com The Building Stories, de Art Spiegelman e In the Shadow of No Towers.
Marshall faz parte dessa linha de personagens que Clowes tem moldado nas últimas décadas. Solitário depois de um casamento que tinha todos os ingredientes para falhar, uma vida profissional frágil, uma cada vez mais distante relação com o mundo que o rodeia e cresce em direcções que ele despreza, e mergulhado numa bílis que ora não compreende ora não domina e o cega para os seus próprios preconceitos (como todos nós), Marshall parece encontrar apenas consolação em pequenos prazeres ridículos ou então nos discursos que vai tecendo para si mesmo - e que são acedidos pelos leitores. E a mulher com quem ele inicia uma relação, Natalie, não é de todo muito diferente desse retrato clínico, se bem que a “bagagem” dela defira da dele. Em suma, e mais uma vez, surgem aqui duas personagens derrotadas pelas circunstâncias de uma vida fraca e que nada deve ao glamour da ficção, e é o embate de ambos que poderá provocar uma qualquer faísca. No entanto, o abismo da focalização, da voz, do protagonismo, vem de um ponto de dentro de Marshall.
Quando finalmente a mulher com quem havia marcado um encontro às cegas, Natalie, aparece, raramente temos acesso às palavras que ela diz, mesmo vendo os contornos e colocação dos balões de fala que lhe pertencem. Essas elocuções estão ocultas pelos pensamentos de Marshall, apresentados sob a forma de legendas narrativas. Isso diz muito das estratégias de Clowes, que afunilam, quase de modo claustrofóbico, sobre o protagonista, e ao mesmo tempo à personalidade de Marshall, a um certo grau de autocomiseração, de sentimentos paradoxais de inferioridade e superioridade e de ensimesmamento quase extremo. Isso encontra o seu acme no surgimento de uma espécie de pequeno Marshall demoníaco, avatar cartoonesco típico da consciência (e, ao mesmo tempo, não sendo impossível livrar-nos da sensação de ser uma homenagem ao Mr. Mxyzptlk de Curt Swan). E as sistemáticas interrupções de fantasias na cabeça de Marshall (idênticas àquelas feitas por Chris Ware em Jimmy Corrigan), mas num regime de representação chibi. E a autoconsciência de que ele é capaz, deslizando “na auto-depreciação no interior do meu próprio monólogo” (pg. 42). Em suma, uma personagem tão patética como a esmagadora maioria do bestiário a que Clowes nos tem habituado.
Uma ilha surge neste ensimesmamento, e toda a narrativa se altera subitamente, quando, devido a um assalto, Marshall é obrigado a tomar a iniciativa, e física, e violenta, para resolver o problema. Todo o regime narrativo se altera e passamos a “escutar” ambas as personagens num plano de igualdade. Mas é uma ilha, ilusória, e voltamos aos trilhos habituais num ápice. Essa interrupção ecoa no trilho da narrativa as tais interrupções estilísticas que Clowes faz ao regime “normal”, no trilho da imagem. É verdade que em Ice Haven o que agora se pode apelidar de “heterogeneidade gráfica” (segundo lições de Thierry Smolderen e Thierry Groensteen) era mais radical e diversa. Mas isso não nos impede de encontrar aqui “mudanças de registos gráficos [que] interpelam directamente o receptor, dificultando a função transitiva da imagem e pondo em dúvida o lugar hegemónico do relato” (como lemos num artigo intitulado “La(s) aventura(s) de la forma. La heterogeneidad gráfica como vía de experimentación en el cómic”, de Álvaro Nofuentes, apresentado em Alcalá de Henares). Não nos parecendo que a “verdade” suposta do que Marshall nos conta está colocada em questão em termos tão profundos, a utilização desses registos mais abonecados podem querer dar conta de várias coisas: o desespero de causa das fantasias de Marshall, a natureza dos tais prazeres mínimos (ele é cliente assíduo do ebay, logo coleccionador/comprador compulsivo, logo…), a inocuidade desses mesmos ensejos, etc.
Clowes consegue criar em duas ou três penadas (vinhetas, entenda-se, o que exige algum esforço bem além dessas “penadas”) um qualquer ambiente social e o modo enviesado com que nos dá a conhecer os seus elementos e habitantes através das suas personagens levam-nos, por vezes, a concordar com elas (isso não ocorre em Wilson). A sua gestão do espaço de composição - tendo em conta que este é um livro oblongo, e o número de vinhetas é diminuto - encontra-se num controlo excelente. Repare-se como, nesta prancha, numa cena de diálogo, que muitos autores medíocres ou presos a géneros determinados, pensam ser “desinteressantes”, Clowes consegue dar a ver uma rápida evolução entre a relação das personagens, tirando partindo do enquadramento e da focalização, do afastamento e aproximação das personagens, do aparente crescimento do vento que os envolve, da gestão dos silêncios das falas e equilíbrio das legendas narrativas, e do repentino “corte” que faz do casal de todo o ambiente, para que se sublinhe o estado atingido dessa relação. E, mais, da narrativa, em que apenas a atenção e entrega dos leitores ao que é dito com tão pouco faz ver por completo a alma aberta de Marshall, e assim, a promessa de uma resolução comum. Talvez não feliz, mas comum, pelo menos.
Independentemente da vida pessoal de Clowes, que não só não nos interessa como não nos deveria interessar, a sua visão das relações pessoais e amorosas, nas obras, parece ser sempre lúgubre. Ao contrário da esmagadora maioria das produções cinematográficas do mainstream, com as quais partilha muitos dos elementos, dos ambientes, das tramas narrativas de encontros e desencontros, Clowes atinge conclusões bem diversas. Quiçá tão ficcionais quanto os “happy endings”, diga-se de passagem, mas pelo menos capazes de auscultar de uma maneira mais realista e mais digna da capacidade que o ser humano tem em errar, magoar os outros e fazer-se de estúpido. Se o final de Mr. Wonderful é tão erroneamente “maravilhoso” como o seu título, ou se na verdade a “maravilha” se encontra na capacidade de crer ainda no mais profundo âmago do patético e do derrotismo, cada leitor decidirá.
Mister Wonderful foi pré-publicado episodicamente no The New York Times Magazine, o que levaria a pensarmos numa possibilidade de nova vida da banda desenhada nos jornais, não regressando a fórmulas impossíveis de repetir de um tempo supostamento “áureo” (quer da produção da banda desenhada quer do papel específico dos jornais), mas antes procurando novas maneiras de associar públicos específicos, modos contemporâneos da banda desenhada, técnicas de reprodução, edição, serialização e circulação. Recordemo-nos da experiência de Zentner e Mattotti com Le bruit du givre, de Chris Ware com The Building Stories, de Art Spiegelman e In the Shadow of No Towers.
14 de janeiro de 2012
Les Meilleurs Ennemis 1. Jean-Pierre Filiu e David B. (Futuropolis)
O título completo desta obra é Les meilleurs ennemis. Une histoire des relations entre les Étas-Unis et le Moyen-Orient. Première partie 1783-1953. É uma colaboração entre Jean-Pierre Filiu, antigo político do gabinete de Jospin e autor de algumas obras de referência sobre o Islão, o seu mundo cultural e as suas relações com o Ocidente, transmutada na linguagem gráfica de David B., querendo dizer com isto que não se trata propriamente - ou com grande probabilidade - de termos um argumento escrito por Filiu seguido de um cumprimento de David B., mas talvez de uma discussão e eleição de quais os acontecimentos importantes a explorar, quais os instrumentos expressivos possíveis de colocar à disposição dos leitores, que tipo de argumentação possa emergir do nosso confronto com o que é contado, e que estratégias seguir em termos de inclusão, exclusão e focalização desses mesmos eventos. Essa atenção para com a História é indelével e imperiosa. Ao contrário do que se costuma afirmar, naquelas frases feitas que, mais do que de senso comum, são constituídas por erros comuns, contra factos há argumentos, pois a história não é uma esfera estanque que compreende factos incólumes e inalteráveis, mas antes um processo narrativo cujos mecanismos interpretativos contribuem sobremaneira para a sua própria constituição. Não existem factos inexpugnáveis por argumentos, mas factos cujos arcobotantes são precisamente argumentos, os quais, mudados, reconstituiriam os factos (como aprendemos em lições de E. H. Carr ou David C. Harvey).
O título completo deste livro é portanto nítido no seu programa, e o que os autores cumprem é esse papel da história: colocar à frente dos olhos dos leitores uma colecção de factos de uma determinada maneira, factos esses também retratados de uma certa maneira, para que os leitores atinjam um certo grau de conhecimento. Mais, trata-se, a nosso ver, de um acto de resistência, resistência de discurso, considerando que o retrato do Islão é muitas vezes deturpado em nome de uma agenda propagandística ocidental, muitas vezes que nem sequer é entendida como tal (disfarçando-se de “objectividade”, de “civilização”, etc.). A banda desenhada não é alheia a essa propaganda, seja ela feita de modo mais ou menos disfarçado e subtil ou sem consciência (mais do que inconscientemente) seja ela feita de modo aberto e por isso não só ridícula como perigosa (como o miserável e grotesco Holy Terror de Frank Miller).
Um aspecto nada dispiciendo, da esfera social, da parte de “quem fala”, é o facto deste livro sair na nova vida da Futuropolis (no grupo Gallimard), a qual, ao ser relançada na sua junção com a Soleil, causou alguma sensação de medo e estranheza, pelas políticas aparentemente mais comerciais e massificadas dessa outra editora. No entanto, tendo em conta que o patrão da Soleil, Mourad Boudjellal, é irmão de Farid Boudjellal, autor de uma magnífica trilogia, intitulada L’Oud, (publicada nos anos 1980 precisamente na Futuropolis dos editores originais, Robial e Cestac), obra que dava voz aos árabes-argelinos na primeira pessoa, a entrega não é frágil. De certa forma, ao contrário dos medos primeiros, a aliança entre a Gallimard e a Soleil, e a dos seus editores (Boudjellal e Patrice Margotin), levou a que se criasse uma linha de produção atenta à esfera do político, numa atenção particular a novos modos de produção ou de, a palavra é justa, engajamento da parte da banda desenhada com o mundo real, amplo e diverso em que vivemos (mas que nem sempre a banda desenhada, tal como os meios de comunicação social institucionalizados, parecem querer dar a ver). O modelo, de acordo com Margotin, era a colecção Aire Libre, da Dupuis. Apesar da sua diversidade interna, editando obras como as de Debeurme, podemos dizer de certa forma que esta Futuropolis dá continuidade exacta à anterior, ainda que se pautando por novos instrumentos - por exemplo, a total abdicação de enquadramentos ficcionais, o aumento do grau informativo, a inscrição dos autores enquanto actores autobiográficos nas narrativas desenvolvidas, etc. É assim que projectos como o Les Ignorants, de Davodeau e Richard Leroy, a biografia de Pierre Goldman por Emmanuel Moynot, ou as edições de Sacco e de uma obra colectiva intitulada Immigrants, cotejam este esforço de Filiu e David B.
Como se afirmou acima, Les meilleurs ennemis é uma “colecção de factos”, e essa palavra não é utilizada sem importância. É que este livro apresenta-se menos como uma narrativa habitual, com a costumeira fluidez diegética e a integração de todos os elementos visuais e estruturais na história do que como uma série de pontos (há uma excepção notável, que abordaremos mais à frente). Não sendo sequente, é consequente. Há aqui uma opção por apresentar cada vinheta como uma frase separada. São muitas as pranchas que apresentam três vinhetas horizontais, como se se tratassem de placas, de clichés no sentido fotográfico, de lâminas individuais. Há outros métodos de paginação, é certo (como esta dupla prancha acima cuja leitura pode ser dupla ou transversal, em termos da acção), mas todas as vinhetas apresentam-se como pequenas unidades quase autónomas. Seria difícil, por exemplo, aplicar o apertado descritor das transições de vinhetas de Scott McCloud sem exercer alguma violência em relação à semântica do livro (e que diz mais dos mecanismos analíticos de McCloud do que de uma suposta falha no livro). Pensamos que a ideia de colocar essas orações-vinhetas de modo contínuo mas individual terá a ver com uma estratégia de querer “deixar falar os factos por si”, mas, como vimos, estes, ao serem apresentados de uma determinada maneira, levam a uma imediata leitura (ou pelo menos a um afunilamento específico das possibilidades de interpretação e reacção). O aparente “apagamento” do discurso do narrador leva a que se tome uma atitude de abertura para com a complexa rede interpessoal, intercultural, que está aqui em jogo, sem que se tome partido quer por um quer pelo outro “lado” (pois o próprio título implica dois “lados”).
Há um outro factor que aumenta a individualidade das vinhetas. David B. é um autor que se presta muito à utilização de metáforas visuais. A definição deste conceito é algo flutuante entre os seus teóricos, mas nós inclinamo-nos por a compreender, na banda desenhada, como quando integrada no programa narrativo e representacional. Todavia, neste caso particular é como se o autor exacerbasse essa sua característica e a desligasse dessa continuidade e fluidez narrativa para a concentrar nessas prestações fragmentárias, em staccato, reificadas. A razão é óbvia. Uma vez que há o desejo de criar um discurso relativamente sucinto e célere de uma história com mais de duzentos anos, é mais eficaz fazer acompanhar as breves exposições textuais com imagens que possam concatenar em si mesmas várias valências semânticas do que optar por uma mais literal figuração dos intervenientes. Além do mais, essas imagens ganham dessa forma uma potência política mais contundente.
Na verdade, como corolário dessa leitura estará uma associação quase directa deste trabalho de David B. a uma tradição antiga do cartoon político, sobretudo aquela associada à caricatura política britânica do século XVIII - mais do que a francesa do XIX. Nomes como os de Gilray, Rowlandson, Bunbury, e outros, surgem nesse arrolar, e as estratégias visuais daqueles ressurgem nas do autor francês num contexto artístico diferente. Encontramos, naqueles e neste, por exemplo, a utilização de escalas diferenciadas entre as personagens, não como sinal de fantasia, mas de valorização actancial na cena. Encontramos fusões entre os corpos dos intervenientes, ou dos corpos e vários objectos (é recorrente os turbantes confundirem-se com globos, cruzados por navios, mote que surge na capa), de maneira a dar a ver uma concatenação de gestos, ou de impactos políticos, ou a transformação de um dado acontecimento num modelo que ecoaria pela história. Há assim tanto construções visuais que apelam para a metonímia como para a metáfora.
A associação a esses desenvolvimentos abriria uma outra via de discussão, que seria a aproximação das estratégias visuais deste autor com aquelas de muitas das caricaturas de personagens afectas ao mundo cultural do Médio Oriente nos tempos mais recentes e que têm levado a conflitos declarados e violentos (os casos paradigmáticos sendo as caricaturas do Jyllands-Posten e o affaire Charia Hebdo). Conflitos que, diga-se de passagem, são atribuíveis de parte a parte num diálogo de surdos culturais, e que parecem encontrar a sua defesa pobre e de vistas curtas em conceitos tais como o do “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington, bastas vezes citado, e ora descontexualizado e não se apercebendo da violência que exerce ora compreendendo-a e aceitando-a como “natural”. Todavia, essa é uma maneira tendenciosa de ver as coisas. “O inferno são os outros”, é certo, mas quem os demonizou, quem os tornou em demónios, podem muito bem ter sido “nós mesmos”: a história do Irão recente é, por exemplo, um caso gritante de como companhias privadas, aliadas aos Estados-clientes, iam moldando e se imiscuindo na política interna de um país para defenderem interesses capitalistas (olhar para o Irão agora desligando-nos da sua história é um acto de má-fé e ignorância; o mesmo se diria de todo o Médio Oriente, de certos países na Ásia, da América do Sul de esquerda, da “África” negra, subjugada a uma só história singular - mas falsa - de pobreza, fome e guerras intestinas). Em parte, é para isso que Les meilleurs ennemis contribui, não se eximindo das responsabilidades que cabem aos franceses, mesmo não estando eles no centro das atenções (curiosamente, Portugal está afastado mesmo dos figurantes desta história, já que o nosso Império Colonial acidental não apenas lidou com outros Outros, como a questão muçulmana era tão-somente vista como resistência se não perigo em relação ao domínio português, mas eventualmente num grau reduzido, e não faz parte sequer dos nossos mitos, contemporâneos!, da suposta coexistência entre os povos que o integravam).
A maneira como os autores apelam para os textos da Epopeia de Gilgamesh para abrirem a sua narrativa aponta a um só tempo para a possibilidade de se poder falar em constantes culturais na história da humanidade, como na de sublinhar especificidades de uma área do mundo. Mas essa segunda opção pode tornar-se, ela mesma, um problema, se for tomada demasiado à letra. Quer dizer, mesmo tendo em conta que os autores tentam ser equilibrados nos seus retratos dos povos antagónicos, precisamente por os seus leitores (nós, para já) se inscreverem mais claramente no campo “ocidental”, pode levar a que o tratamento dos muçulmanos ou dos árabes pareça algo deficitário e sucinto demais. Afinal de contas, mas é possível que falemos do interior da nossa própria ignorância somente, quão imediata é a compreensão do feudo que existe entre xiitas e sunitas, a intricada novela palaciana tecida ao longo de séculos de paxás, sultões e emirados, pequenas dinastias breves e famílias reais enraizadas? Todos esses aspectos são abordados e explicados, mas a falta da familiaridade leva a que o tratamento idêntico dado às “partes”, mas num contexto mais familiarizado com uma delas, possa incorrer em novos desequilíbrios. Para sermos claros: a obra é equilibrada em si, mas a sua circulação é feita junto a públicos cujas condições podem ser desequilibradas. A leitura não é por isso desprovida de escolhos.
Seja como for, a forma judiciosa (e explícita) com que os autores fazem tecer as citações de Gilgamesh com os novos actores internacionais, leva a que se reconsiderem todas aquelas frases feitas em torno da história, desde a que a sapiência dos homens impedem os erros de se repetirem, ou que ela não volta a passar pelas mesmas águas, ou que há uma qualquer objectividade possível de lavrar… E a lição final desta relação de inimizade longa , de quase dois séculos, tem um denominador comum: o comércio. Sempre, o comércio, o capital, os interesses privados. E não foi preciso esperar pelo advento do uso industrializado, na passagem da 1ª Guerra Mundial, do petróleo e seus derivados, se bem que este tenha vindo a tornar acerbas as relações e os actos. Daqueles estandartes dourados da democracia, da liberdade, da autodeterminação dos povos e da concórdia universal, nem sombras. Entendido esse comércio de maneiras diferentes e antagónicas por cada parte, vemos como se encaixam variadíssimas questões: territoriais, de esferas de influência, de tratados económicos e de circulação de bens, de acumulação de capitais, de relações comerciais e de transformação infraestruturais, de relações particulares e tingidas por princípios xenófobos (do anti-semitismo ao anti-islamismo, à supremacia ocidental de todos os paladares ao desabrido - mas historicamente apoiado - fundamentalismo religioso).
Quando dissemos atrás que há uma inscrição da parte dos leitores (os portugueses?) no mundo ocidental, isso não quer dizer que se o faça acriticamente, atenção! Bem pelo contrário, e juntando-se aos autores do catálogo da Futuropolis citados, ou de outros quadrantes, estes são livros que contribuem para a aprendizagem e uma nova discursividade. Estamos muito longe do entretenimento com estes livros.
Mais, quando se falou de árabes e muçulmanos, não se pretendia dizer que estes termos são sinónimos nem que são permutáveis, e são mesmo perigosos como descritores “transparentes” (pense-se em, ou melhor, com, Bhabha, Spivak, Agamben), mas utilizamos estas palavras por facilidade (esperamos que não com facilitismo) para nos referirmos a esse complexo cultural abordado no livro…
Haverá, porventura, uma crítica mais visível às políticas dos Estados Unidos (potência que os autores entendem como herdeira, mas transformadora profunda, dos regimes coloniais anteriores), é certo, mas a razão para isso é que usualmente as suas justificações, e aquelas dos seus aliados (Portugal, graças a Durão Barroso, não se pode dirimir das suas responsabilidades), são contornadas por uma propaganda que se esconde a si mesma. O nosso discurso parece ser o mais correcto contra a violência dos outros, e talvez seja isso o que choca - esperemos que o faça - ao sabermos de que violência nós somos capazes. Isso pode surgir nas fotografias de Abu Ghraib contrastadas com uma estela suméria (no livro), mais uma vez destacando a universalidade da violência. Mas também poderia surgir, e surge, no júbilo das palavras de Condoleezza Rice face à morte de Kadhafi (não no livro), e que poderia ser contrastado por sua vez com aquele verso homérico, dito por Ulisses à ama Euricleia, depois dele mesmo ter morto os pretendentes de Penélope: “É coisa ímpia o regozijo sobranceiro sobre os cadáveres dos mortos”. Les meilleurs ennemis, à sua maneira, cria um gesto contra essa impiedade e essa sobranceira.
Acima indicámos que, face à estrutura fragmentária do livro, havia uma notável (quase) excepção. O único momento em que o discurso parece mudar de regime, para apresentar duas páginas (94-95) mais habituais, é o episódio em que os grupos de pressão americanos e britânicos se encontram com a princesa Ahsraf Pahlavi, irmã gémea do Shah do Irão, Mohammad Reza Pahlavi, em 1953, na Côte d’Azur. O propósito é convencê-la a pressionar o irmão, “un minable”, a apoiar o derrube (com o apoio de vários esbirros, incluindo o jovem mullah Khomeini) do governo de Mossadegh, que havia nacionalizado a indústria do petróleo . Para além da irmã sentir que o poder estaria melhor nas mãos dela, a persuasão dos ocidentais é conseguida através da oferta de uma mala, supostamente com uma soma avultada - que não nos é dada a ver - e um belíssimo casaco de peles. Não nos podemos deixar de interrogar o porquê da libertação desta cena em particular, aparentemente tão menos importante que outros acontecimentos ao longo desta história, do regime fragmentário (na verdade, a queda de Mossadegh é assim tratada parcialmente nas páginas seguintes, e teremos de ler o segundo volume para nos apercebemos do programa global). Tratar-se-á de uma espécie de intervalo para mostrar, de novo, o único papel à mulher nesta história: a de seduzida e sedutora? Mas há outra coisa que revelaria de uma leitura tão pessoal da nossa parte, tão abusadora e perigosa, mesmo insustentável, em relação à obra e aos autores que não nos atrevemos a dizê-la senão em enigma. Os acontecimentos retratados coincidem com aqueles aventados noutras obras, sem dúvida, inclusive de banda desenhada, uma das quais bastamente discutida. Haverá aqui uma ironia velada na representação, um reflexo enviesado? Para bom entendedor…
Nota final: agradecimentos ao Frederico Duarte, pelo empréstimo do livro.
O título completo deste livro é portanto nítido no seu programa, e o que os autores cumprem é esse papel da história: colocar à frente dos olhos dos leitores uma colecção de factos de uma determinada maneira, factos esses também retratados de uma certa maneira, para que os leitores atinjam um certo grau de conhecimento. Mais, trata-se, a nosso ver, de um acto de resistência, resistência de discurso, considerando que o retrato do Islão é muitas vezes deturpado em nome de uma agenda propagandística ocidental, muitas vezes que nem sequer é entendida como tal (disfarçando-se de “objectividade”, de “civilização”, etc.). A banda desenhada não é alheia a essa propaganda, seja ela feita de modo mais ou menos disfarçado e subtil ou sem consciência (mais do que inconscientemente) seja ela feita de modo aberto e por isso não só ridícula como perigosa (como o miserável e grotesco Holy Terror de Frank Miller).
Um aspecto nada dispiciendo, da esfera social, da parte de “quem fala”, é o facto deste livro sair na nova vida da Futuropolis (no grupo Gallimard), a qual, ao ser relançada na sua junção com a Soleil, causou alguma sensação de medo e estranheza, pelas políticas aparentemente mais comerciais e massificadas dessa outra editora. No entanto, tendo em conta que o patrão da Soleil, Mourad Boudjellal, é irmão de Farid Boudjellal, autor de uma magnífica trilogia, intitulada L’Oud, (publicada nos anos 1980 precisamente na Futuropolis dos editores originais, Robial e Cestac), obra que dava voz aos árabes-argelinos na primeira pessoa, a entrega não é frágil. De certa forma, ao contrário dos medos primeiros, a aliança entre a Gallimard e a Soleil, e a dos seus editores (Boudjellal e Patrice Margotin), levou a que se criasse uma linha de produção atenta à esfera do político, numa atenção particular a novos modos de produção ou de, a palavra é justa, engajamento da parte da banda desenhada com o mundo real, amplo e diverso em que vivemos (mas que nem sempre a banda desenhada, tal como os meios de comunicação social institucionalizados, parecem querer dar a ver). O modelo, de acordo com Margotin, era a colecção Aire Libre, da Dupuis. Apesar da sua diversidade interna, editando obras como as de Debeurme, podemos dizer de certa forma que esta Futuropolis dá continuidade exacta à anterior, ainda que se pautando por novos instrumentos - por exemplo, a total abdicação de enquadramentos ficcionais, o aumento do grau informativo, a inscrição dos autores enquanto actores autobiográficos nas narrativas desenvolvidas, etc. É assim que projectos como o Les Ignorants, de Davodeau e Richard Leroy, a biografia de Pierre Goldman por Emmanuel Moynot, ou as edições de Sacco e de uma obra colectiva intitulada Immigrants, cotejam este esforço de Filiu e David B.
Como se afirmou acima, Les meilleurs ennemis é uma “colecção de factos”, e essa palavra não é utilizada sem importância. É que este livro apresenta-se menos como uma narrativa habitual, com a costumeira fluidez diegética e a integração de todos os elementos visuais e estruturais na história do que como uma série de pontos (há uma excepção notável, que abordaremos mais à frente). Não sendo sequente, é consequente. Há aqui uma opção por apresentar cada vinheta como uma frase separada. São muitas as pranchas que apresentam três vinhetas horizontais, como se se tratassem de placas, de clichés no sentido fotográfico, de lâminas individuais. Há outros métodos de paginação, é certo (como esta dupla prancha acima cuja leitura pode ser dupla ou transversal, em termos da acção), mas todas as vinhetas apresentam-se como pequenas unidades quase autónomas. Seria difícil, por exemplo, aplicar o apertado descritor das transições de vinhetas de Scott McCloud sem exercer alguma violência em relação à semântica do livro (e que diz mais dos mecanismos analíticos de McCloud do que de uma suposta falha no livro). Pensamos que a ideia de colocar essas orações-vinhetas de modo contínuo mas individual terá a ver com uma estratégia de querer “deixar falar os factos por si”, mas, como vimos, estes, ao serem apresentados de uma determinada maneira, levam a uma imediata leitura (ou pelo menos a um afunilamento específico das possibilidades de interpretação e reacção). O aparente “apagamento” do discurso do narrador leva a que se tome uma atitude de abertura para com a complexa rede interpessoal, intercultural, que está aqui em jogo, sem que se tome partido quer por um quer pelo outro “lado” (pois o próprio título implica dois “lados”).
Há um outro factor que aumenta a individualidade das vinhetas. David B. é um autor que se presta muito à utilização de metáforas visuais. A definição deste conceito é algo flutuante entre os seus teóricos, mas nós inclinamo-nos por a compreender, na banda desenhada, como quando integrada no programa narrativo e representacional. Todavia, neste caso particular é como se o autor exacerbasse essa sua característica e a desligasse dessa continuidade e fluidez narrativa para a concentrar nessas prestações fragmentárias, em staccato, reificadas. A razão é óbvia. Uma vez que há o desejo de criar um discurso relativamente sucinto e célere de uma história com mais de duzentos anos, é mais eficaz fazer acompanhar as breves exposições textuais com imagens que possam concatenar em si mesmas várias valências semânticas do que optar por uma mais literal figuração dos intervenientes. Além do mais, essas imagens ganham dessa forma uma potência política mais contundente.
Na verdade, como corolário dessa leitura estará uma associação quase directa deste trabalho de David B. a uma tradição antiga do cartoon político, sobretudo aquela associada à caricatura política britânica do século XVIII - mais do que a francesa do XIX. Nomes como os de Gilray, Rowlandson, Bunbury, e outros, surgem nesse arrolar, e as estratégias visuais daqueles ressurgem nas do autor francês num contexto artístico diferente. Encontramos, naqueles e neste, por exemplo, a utilização de escalas diferenciadas entre as personagens, não como sinal de fantasia, mas de valorização actancial na cena. Encontramos fusões entre os corpos dos intervenientes, ou dos corpos e vários objectos (é recorrente os turbantes confundirem-se com globos, cruzados por navios, mote que surge na capa), de maneira a dar a ver uma concatenação de gestos, ou de impactos políticos, ou a transformação de um dado acontecimento num modelo que ecoaria pela história. Há assim tanto construções visuais que apelam para a metonímia como para a metáfora.
A associação a esses desenvolvimentos abriria uma outra via de discussão, que seria a aproximação das estratégias visuais deste autor com aquelas de muitas das caricaturas de personagens afectas ao mundo cultural do Médio Oriente nos tempos mais recentes e que têm levado a conflitos declarados e violentos (os casos paradigmáticos sendo as caricaturas do Jyllands-Posten e o affaire Charia Hebdo). Conflitos que, diga-se de passagem, são atribuíveis de parte a parte num diálogo de surdos culturais, e que parecem encontrar a sua defesa pobre e de vistas curtas em conceitos tais como o do “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington, bastas vezes citado, e ora descontexualizado e não se apercebendo da violência que exerce ora compreendendo-a e aceitando-a como “natural”. Todavia, essa é uma maneira tendenciosa de ver as coisas. “O inferno são os outros”, é certo, mas quem os demonizou, quem os tornou em demónios, podem muito bem ter sido “nós mesmos”: a história do Irão recente é, por exemplo, um caso gritante de como companhias privadas, aliadas aos Estados-clientes, iam moldando e se imiscuindo na política interna de um país para defenderem interesses capitalistas (olhar para o Irão agora desligando-nos da sua história é um acto de má-fé e ignorância; o mesmo se diria de todo o Médio Oriente, de certos países na Ásia, da América do Sul de esquerda, da “África” negra, subjugada a uma só história singular - mas falsa - de pobreza, fome e guerras intestinas). Em parte, é para isso que Les meilleurs ennemis contribui, não se eximindo das responsabilidades que cabem aos franceses, mesmo não estando eles no centro das atenções (curiosamente, Portugal está afastado mesmo dos figurantes desta história, já que o nosso Império Colonial acidental não apenas lidou com outros Outros, como a questão muçulmana era tão-somente vista como resistência se não perigo em relação ao domínio português, mas eventualmente num grau reduzido, e não faz parte sequer dos nossos mitos, contemporâneos!, da suposta coexistência entre os povos que o integravam).
A maneira como os autores apelam para os textos da Epopeia de Gilgamesh para abrirem a sua narrativa aponta a um só tempo para a possibilidade de se poder falar em constantes culturais na história da humanidade, como na de sublinhar especificidades de uma área do mundo. Mas essa segunda opção pode tornar-se, ela mesma, um problema, se for tomada demasiado à letra. Quer dizer, mesmo tendo em conta que os autores tentam ser equilibrados nos seus retratos dos povos antagónicos, precisamente por os seus leitores (nós, para já) se inscreverem mais claramente no campo “ocidental”, pode levar a que o tratamento dos muçulmanos ou dos árabes pareça algo deficitário e sucinto demais. Afinal de contas, mas é possível que falemos do interior da nossa própria ignorância somente, quão imediata é a compreensão do feudo que existe entre xiitas e sunitas, a intricada novela palaciana tecida ao longo de séculos de paxás, sultões e emirados, pequenas dinastias breves e famílias reais enraizadas? Todos esses aspectos são abordados e explicados, mas a falta da familiaridade leva a que o tratamento idêntico dado às “partes”, mas num contexto mais familiarizado com uma delas, possa incorrer em novos desequilíbrios. Para sermos claros: a obra é equilibrada em si, mas a sua circulação é feita junto a públicos cujas condições podem ser desequilibradas. A leitura não é por isso desprovida de escolhos.
Seja como for, a forma judiciosa (e explícita) com que os autores fazem tecer as citações de Gilgamesh com os novos actores internacionais, leva a que se reconsiderem todas aquelas frases feitas em torno da história, desde a que a sapiência dos homens impedem os erros de se repetirem, ou que ela não volta a passar pelas mesmas águas, ou que há uma qualquer objectividade possível de lavrar… E a lição final desta relação de inimizade longa , de quase dois séculos, tem um denominador comum: o comércio. Sempre, o comércio, o capital, os interesses privados. E não foi preciso esperar pelo advento do uso industrializado, na passagem da 1ª Guerra Mundial, do petróleo e seus derivados, se bem que este tenha vindo a tornar acerbas as relações e os actos. Daqueles estandartes dourados da democracia, da liberdade, da autodeterminação dos povos e da concórdia universal, nem sombras. Entendido esse comércio de maneiras diferentes e antagónicas por cada parte, vemos como se encaixam variadíssimas questões: territoriais, de esferas de influência, de tratados económicos e de circulação de bens, de acumulação de capitais, de relações comerciais e de transformação infraestruturais, de relações particulares e tingidas por princípios xenófobos (do anti-semitismo ao anti-islamismo, à supremacia ocidental de todos os paladares ao desabrido - mas historicamente apoiado - fundamentalismo religioso).
Quando dissemos atrás que há uma inscrição da parte dos leitores (os portugueses?) no mundo ocidental, isso não quer dizer que se o faça acriticamente, atenção! Bem pelo contrário, e juntando-se aos autores do catálogo da Futuropolis citados, ou de outros quadrantes, estes são livros que contribuem para a aprendizagem e uma nova discursividade. Estamos muito longe do entretenimento com estes livros.
Mais, quando se falou de árabes e muçulmanos, não se pretendia dizer que estes termos são sinónimos nem que são permutáveis, e são mesmo perigosos como descritores “transparentes” (pense-se em, ou melhor, com, Bhabha, Spivak, Agamben), mas utilizamos estas palavras por facilidade (esperamos que não com facilitismo) para nos referirmos a esse complexo cultural abordado no livro…
Haverá, porventura, uma crítica mais visível às políticas dos Estados Unidos (potência que os autores entendem como herdeira, mas transformadora profunda, dos regimes coloniais anteriores), é certo, mas a razão para isso é que usualmente as suas justificações, e aquelas dos seus aliados (Portugal, graças a Durão Barroso, não se pode dirimir das suas responsabilidades), são contornadas por uma propaganda que se esconde a si mesma. O nosso discurso parece ser o mais correcto contra a violência dos outros, e talvez seja isso o que choca - esperemos que o faça - ao sabermos de que violência nós somos capazes. Isso pode surgir nas fotografias de Abu Ghraib contrastadas com uma estela suméria (no livro), mais uma vez destacando a universalidade da violência. Mas também poderia surgir, e surge, no júbilo das palavras de Condoleezza Rice face à morte de Kadhafi (não no livro), e que poderia ser contrastado por sua vez com aquele verso homérico, dito por Ulisses à ama Euricleia, depois dele mesmo ter morto os pretendentes de Penélope: “É coisa ímpia o regozijo sobranceiro sobre os cadáveres dos mortos”. Les meilleurs ennemis, à sua maneira, cria um gesto contra essa impiedade e essa sobranceira.
Acima indicámos que, face à estrutura fragmentária do livro, havia uma notável (quase) excepção. O único momento em que o discurso parece mudar de regime, para apresentar duas páginas (94-95) mais habituais, é o episódio em que os grupos de pressão americanos e britânicos se encontram com a princesa Ahsraf Pahlavi, irmã gémea do Shah do Irão, Mohammad Reza Pahlavi, em 1953, na Côte d’Azur. O propósito é convencê-la a pressionar o irmão, “un minable”, a apoiar o derrube (com o apoio de vários esbirros, incluindo o jovem mullah Khomeini) do governo de Mossadegh, que havia nacionalizado a indústria do petróleo . Para além da irmã sentir que o poder estaria melhor nas mãos dela, a persuasão dos ocidentais é conseguida através da oferta de uma mala, supostamente com uma soma avultada - que não nos é dada a ver - e um belíssimo casaco de peles. Não nos podemos deixar de interrogar o porquê da libertação desta cena em particular, aparentemente tão menos importante que outros acontecimentos ao longo desta história, do regime fragmentário (na verdade, a queda de Mossadegh é assim tratada parcialmente nas páginas seguintes, e teremos de ler o segundo volume para nos apercebemos do programa global). Tratar-se-á de uma espécie de intervalo para mostrar, de novo, o único papel à mulher nesta história: a de seduzida e sedutora? Mas há outra coisa que revelaria de uma leitura tão pessoal da nossa parte, tão abusadora e perigosa, mesmo insustentável, em relação à obra e aos autores que não nos atrevemos a dizê-la senão em enigma. Os acontecimentos retratados coincidem com aqueles aventados noutras obras, sem dúvida, inclusive de banda desenhada, uma das quais bastamente discutida. Haverá aqui uma ironia velada na representação, um reflexo enviesado? Para bom entendedor…
Nota final: agradecimentos ao Frederico Duarte, pelo empréstimo do livro.
12 de janeiro de 2012
A Ermida. Rui Lacas (Polvo)
Esta obrinha de Rui Lacas teve origem num jornal ou boletim (ou misto de ambos), associado ao projecto Travessa da Ermida, intitulado Efeméride. Pelas suas características físicas, permitia que as imagens de Lacas tivessem um espaço amplo para se mostrarem, e a sua reedição (com material inédito adicional) num formato três vezes menor, transforma significativamente a mesma. É que, onde num jornal grande, numa paginação que raramente escapa da vinheta única ocupando toda a página, ou duas vinhetas ora horizontais ora verticais, dá-nos a ver planos grandes das linhas e manchas, e o próprio acto físico de folhear a observar leva-nos a uma proximidade a essas imagens, a uma imersão mais íntima, que não se repetirá neste formato menor. Transforma-se toda a matéria numa outra fruição do texto (este entendido como a equação holística entre a história, as imagens, a estruturação, as cores, etc.).
A história é simples, curta e singela. Uma breve sinopse quase que a esgotaria: nessa travessa de Belém, é incumbida ao padre que toma conta da Igreja de Nossa Senhora da Conceição a tarefa de guardar uma caixa de jóias, aparentemente do rei. Estas são misteriosamente roubadas, e igualmente em mistério devolvidas, passando por um sonho de um milagre, ou talvez milagre mesmo. Outro acontecimento interrompe o arco dessa acção, porém, com a chegada súbita da República, e o fim das jóias é transformado.
Como explica Catarina da Ponte no prólogo, e o próprio projecto da Travessa deixa claro, o “mote” dado a Rui Lacas consistiria no cruzamento diegético de três elementos que compõe o núcleo cultural desse ponto de encontro: o local de culto, as jóias e o vinho, tudo associado a ramos explorados contemporaneamente. Assim sendo, desconhecemos (haveria de se perguntar ao autor) se esta história se baseia num folclore local, num boato beato guardado, ou se é da lavra total do autor. Em todo o caso, ela encaixa-se na perfeição na possível história, na tradição local e no projecto específico com que se associa.
Não há espaço para grandes desenvolvimentos, nem nos parece que seja esse o desejo do autor. Não se procura explicitar a história pessoal do padre, explorar que tipo de relações ele estabelece com a população local de um modo complexo, apresentar individualmente as personagens que se cruzam, nem sequer dar voz a todas elas… A Ermida não é um exercício psicológico narrativo, a que Rui Lacas já se entregou com A Filha do Caranguejo, por exemplo (também da Polvo). No entanto, não estamos aqui naquele território mais leve que o autor também explorou em Asteroid Fighters ou nas curtas de City Stories. É algo que se encontrará a meio nessa rede de relações de complexidade narrativa e construção psicológica das personagens. Com duas ou três vinhetas, uma expressão facial e corporal e a proximidade com as personagens que a circundam, rapidamente Lacas consegue tornar distinta a personalidade deste mesmo padre.
O trabalho do autor, em termos visuais, tem aqui uma destreza mais consensual do que conseguira em Merci, Patron! As condições e circunstâncias de trabalho também terão levado a esse resultado, mas há em A Ermida uma plasticidade redonda, um paciente e equilibrado jogo de linhas e áreas brancas, um inteligente uso da pinceladas de segunda cor para o volume, as sombras e o apoio na construção das expressões das personagens que torna este um gesto de excelência deste autor, o que não o impede, ainda assim, de produzir uma obra muito clara nos seus propósitos e figurações. Queremos com isto dizer que Lacas mostra aqui uma inscrição muito justa numa abordagem clássica da banda desenhada - o uso dos elementos formais específicos da comunicabilidade deste meio, o grau de simplificação e hipérbole nas expressões, entre outros atributos - mas garantindo-lhe um certo ambiente contemporâneo - pela liberdade das linhas, o tipo de investigação rítmica, a não-resolução completa da narrativa, etc. Há até mesmo oportunidade de introduzir no livrinho uma espécie de homenagem a outras obras de banda desenhada, ora com o banquete final com as gentes locais (o emprego do valor das jóias, redistribuídas em alegrais simples e talvez universais) ora com a partida do padre como um solitário em direcção ao pôr-do-sol.
A cena fulcral do livro, um sonho com a Virgem Maria e o Menino Jesus, ainda que não mergulhando totalmente em opções surrealistas e absurdas, apresenta as figuras santas numa escala monumental em relação ao padre que torna essa mesma cena algo estranha-familiar (unheimlich) e é ela que acaba por aglutinar toda a trama, todos os acontecimentos, todos os sentimentos da história. Apagando assim o sentido de “ermo”, tornando-o num local de comunidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
A história é simples, curta e singela. Uma breve sinopse quase que a esgotaria: nessa travessa de Belém, é incumbida ao padre que toma conta da Igreja de Nossa Senhora da Conceição a tarefa de guardar uma caixa de jóias, aparentemente do rei. Estas são misteriosamente roubadas, e igualmente em mistério devolvidas, passando por um sonho de um milagre, ou talvez milagre mesmo. Outro acontecimento interrompe o arco dessa acção, porém, com a chegada súbita da República, e o fim das jóias é transformado.
Como explica Catarina da Ponte no prólogo, e o próprio projecto da Travessa deixa claro, o “mote” dado a Rui Lacas consistiria no cruzamento diegético de três elementos que compõe o núcleo cultural desse ponto de encontro: o local de culto, as jóias e o vinho, tudo associado a ramos explorados contemporaneamente. Assim sendo, desconhecemos (haveria de se perguntar ao autor) se esta história se baseia num folclore local, num boato beato guardado, ou se é da lavra total do autor. Em todo o caso, ela encaixa-se na perfeição na possível história, na tradição local e no projecto específico com que se associa.
Não há espaço para grandes desenvolvimentos, nem nos parece que seja esse o desejo do autor. Não se procura explicitar a história pessoal do padre, explorar que tipo de relações ele estabelece com a população local de um modo complexo, apresentar individualmente as personagens que se cruzam, nem sequer dar voz a todas elas… A Ermida não é um exercício psicológico narrativo, a que Rui Lacas já se entregou com A Filha do Caranguejo, por exemplo (também da Polvo). No entanto, não estamos aqui naquele território mais leve que o autor também explorou em Asteroid Fighters ou nas curtas de City Stories. É algo que se encontrará a meio nessa rede de relações de complexidade narrativa e construção psicológica das personagens. Com duas ou três vinhetas, uma expressão facial e corporal e a proximidade com as personagens que a circundam, rapidamente Lacas consegue tornar distinta a personalidade deste mesmo padre.
O trabalho do autor, em termos visuais, tem aqui uma destreza mais consensual do que conseguira em Merci, Patron! As condições e circunstâncias de trabalho também terão levado a esse resultado, mas há em A Ermida uma plasticidade redonda, um paciente e equilibrado jogo de linhas e áreas brancas, um inteligente uso da pinceladas de segunda cor para o volume, as sombras e o apoio na construção das expressões das personagens que torna este um gesto de excelência deste autor, o que não o impede, ainda assim, de produzir uma obra muito clara nos seus propósitos e figurações. Queremos com isto dizer que Lacas mostra aqui uma inscrição muito justa numa abordagem clássica da banda desenhada - o uso dos elementos formais específicos da comunicabilidade deste meio, o grau de simplificação e hipérbole nas expressões, entre outros atributos - mas garantindo-lhe um certo ambiente contemporâneo - pela liberdade das linhas, o tipo de investigação rítmica, a não-resolução completa da narrativa, etc. Há até mesmo oportunidade de introduzir no livrinho uma espécie de homenagem a outras obras de banda desenhada, ora com o banquete final com as gentes locais (o emprego do valor das jóias, redistribuídas em alegrais simples e talvez universais) ora com a partida do padre como um solitário em direcção ao pôr-do-sol.
A cena fulcral do livro, um sonho com a Virgem Maria e o Menino Jesus, ainda que não mergulhando totalmente em opções surrealistas e absurdas, apresenta as figuras santas numa escala monumental em relação ao padre que torna essa mesma cena algo estranha-familiar (unheimlich) e é ela que acaba por aglutinar toda a trama, todos os acontecimentos, todos os sentimentos da história. Apagando assim o sentido de “ermo”, tornando-o num local de comunidade.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
11 de janeiro de 2012
Nueva York Trazo a Trazo. Robinson (Electa)
Versão espanhola da recente edição de New York Line by Line, por sua vez reedição de uma obra de 1967 simplesmente intitulada New York, esta é uma colecção de desenhos de um ilustrador alemão cujo nome era Werner Kruse e que assinava como Robinson (há uma pequena nota biográfica no final do volume pelo filho). Trata-se tão-somente de uma colecção heteróclita de desenhos representando cenas panorâmicas da cidade, a partir de vistas no topo de arranha-céus ou de uma qualquer esquina de uma famosa rua da cidade, ou então trata-se de uma breve proximidade a uma fachada, uma loja, um interior, uma cena passada num jardim. O resultado é uma dessas obras que, presumivelmente, dizemos nós, não sem alguma soberba, será mais comentada e amada por praticantes das disciplinas envolvidas ou envolventes do que por um público mais generalizado. Robinson parece ser um daqueles autores a que se dá o nome de “cartoonist’s cartoonist”, querendo com isso apontar para autores mais famosos entre os profissionais de um métier do que do “grande público”. A soberba a que nos referíamos estará no facto de isso soar como uma espécie de grupo fechado, cujo quadro de conhecimento não é aberto mas exige um qualquer ritual ou pelo menos uma senha… mas isso não é de todo verdade, já que os livros existem, circulam, citam-se, e reproduzem-se pelos canais possíveis. Se estes são reduzidos porque a esmagadora maioria deles estão entupidos pelas mesmas referências de sempre, é uma outra ordem de problemas.
Apesar de não podermos dizer que Robinson-Kruse tenha podido deixar uma marca na história da ilustração norte-americana - pela simples razão de não circular nesse circuito - há algo porém nestes desenhos que, página a página, nos fazem recordar muitos autores desse mundo, sejam eles americanos ou estrangeiros que tenham ali construído a sua carreira. Parte da razão disso tem a ver com o trabalho de linha. Seria exigida uma cultura tremenda da história das marcas gráficas, que não temos, para poder fazer um historial dos avanços e recuos da presença desta ou daquela atitude na marcação de linhas nestas disciplinas, mas arriscar-nos-íamos a dizer que o advento do desenho a linha, sem mais apoios, e procurando soluções de simplicidade e leveza, é algo de muito moderno, numa primeira fase graças aos ilustradores europeus das décadas de 1910-1920 (Emmérico Nunes, Otto Dix, Karl Arnold) e depois nos Estados Unidos, pela década de 1960, com Al Hirschfeld e Saul Steinberg. Aliás, é com estes dois autores, o primeiro o “rei da linha” e o segundo que levou a “linha a passear”, que as afinidades com o autor alemão nos parecem fortíssimas e se fundam precisamente nessas ideia de que a linha é, em si mesma, marca expressiva o suficiente.
No prólogo, escrito por Matteo Pericoli, ele mesmo autor de uma fabulosa obra dedicada à cidade de N.Y., Manhattan Unfurled (e que seria celebremente empregue como capa do álbum-tributo To the 5 Buroughs dos Beastie Boys) - e com a qual as associações são óbvias -, escreve uma coisa muito curiosa. Diz ele, parafraseamos, que a linha não existe no mundo real mas que é antes um processo criativo que não “representa a realidade em si, mas deseja contá-la”. A linha como contadora. Não apenas contorna os objectos, como no gesto amante da rapariga de Corinto, mas conta a figura, transmuta-a em algo de transmissível, uma história.
A verdade é que as imagens de Robinson não podem somente ser descritas como… “descrições”. Não são - não é jamais possível sê-lo - retratos fiéis, representações exactas, devoluções prístinas, efeitos de realidade. São sempre relatos: do que se viu, de como se viu, do que se deseja contar. Nalguns casos, há mesmo estranhas histórias em potência, como esta imagem nos jardins do MoMA. Não é apenas a distribuição dos objectos no plano de composição, e o equilíbrio exacto entre as manchas negras e as figuras a finas linhas, ou o modo como as diagonais das janelas, das fachadas e do tanque de água se correspondem. São as arestas das esculturas de Calder e de Boccioni contrastando com as linhas suaves das outras peças e dos visitantes, são as tramas escuras de todas as estátuas contrastando com as áreas brancas dos visitantes. São os ecos internos entre os pares de pássaros e o homem olhando a mulher que olha a estátua de um homem de perna dobrada que a olha a ela. É a interposição, entre esse homem e essa mulher de uma outra escultura, de uma família (promessa? potência? expectativa normativa?) de Henry Moore. É a outra mulher, ao fundo, petite, observando de cabeça inclinada para o robusto corpo feminino da escultura de Lachaise. É o director ou curador observando a cena de uma janela, numa posição tão privilegiada quanto a nossa, que também observamos.
O sentido de composição do ilustrador é apuradíssimo, e por vezes atinge um grau de densidade quase impossível, que torna ainda mais maravilhoso o facto destes serem desenhos a linha. É possível que no nosso tempo, afectado e pejado de toda a sorte de instrumentos gráficos digitais que permitem manipulações das imagens de uma variedade assombrosa, que parte da produção de Robinson, e a sua valorização, passe quase desapercebida. De certa forma, é um fenómeno idêntico ao de novos espectadores das animações dos irmãos Whitney ou de Jules Engel não compreenderem o alcance desses projectos, depois da existência doméstica das visualizações do Windows Media Player… É a dessensibilização cultural por excesso.
Quase todas as imagens que vimos nos tocavam as cordas da reminiscência. Vemos uma linha e é como se fosse uma corda de uma lira, é como se essas cordas, de Robinson, tangessem do mesmo modo que outras cordas de outros autores, anteriores ou posteriores, mas com os quais criamos as nossas próprias linhas de passeios…
Um dos desenhos mostra uma freira a atravessar o parque Bryant, com algumas das meninas do colégio. É irresistível essa imagem de uma Nova Iorque transfigurada por uma ilusão de inocência, segurança outonal, e um certo grau (aos nossos olhos, de hoje) de estranheza. Mas é irresistível ainda mais não o comparar com um livro ilustrado de 1939, um dos vencedores Caldecott, o Madeline de Bemelmans. Ou com o trabalho de Sempé em Nova Iorque, com as suas figurinhas isoladas na imensidão desta cidade, tão perfeitamente expressas nas suas composições, e nesta igualmente.
A atenção que Robinson dá a cenas de pormenor, à fachada de uma loja, à profusão de cartazes e sinais encontrados num canto, numa taberna, num interior, e até mesmo o trabalho de aguada que dá para criar volume, densidade e ambiente aos seus desenhos, são por demais próximos aos do poeta da decadência urbana de Nova Iorque, Ben Katchor.
Uma brevíssima colecção de semáforos, sinais de trânsito e de informação, placas com nomes de ruas, parquímetros, sinais do metro e candeeiros de rua, dispostos lado a lado como numa absurda exposição de suspeitos, ou num catálogo de equipamento urbano, faz lembrar muitas das composições de Steinberg, cujo trabalho de catalogação do mundo é por demais conhecida. Aliás, uma outra imagem, anamórfica, de um mundo cosmopolita-provinciano visto a partir do topo do Empire State Building tem um eco numa das mais famosas capas para a New Yorker do artista romeno-americano, que mostrava o mundo inteiro a partir de uma janela da 5ª Avenida. (A perspectiva olho-de-peixe poderá lembrar-nos ainda centenas de outras imagens similares, como duas belíssimas de Ricardo Cabral, já aqui comentadas brevemente).
Com paisagens a abarrotar de gente ou quase desérticas, de uma máxima intimidade ou num afastamento quase divino, atencioso para com a mais discreta das esquinas ou deslumbrado com a imensidão majestosa da Grande Maçã, as imagens de Robinson são de uma delicadeza desarmante, sobretudo se tivermos em conta que, apesar de tudo, a escala humana nunca abandona estas imagens. Nem que seja pela presença da própria linha, que não deixa jamais de fazer adivinhar que esteve, ou está, uma mão por ali.
Nota final: Agradecimentos a Sérgio Bruno Pires, pelo empréstimo do livro.
Apesar de não podermos dizer que Robinson-Kruse tenha podido deixar uma marca na história da ilustração norte-americana - pela simples razão de não circular nesse circuito - há algo porém nestes desenhos que, página a página, nos fazem recordar muitos autores desse mundo, sejam eles americanos ou estrangeiros que tenham ali construído a sua carreira. Parte da razão disso tem a ver com o trabalho de linha. Seria exigida uma cultura tremenda da história das marcas gráficas, que não temos, para poder fazer um historial dos avanços e recuos da presença desta ou daquela atitude na marcação de linhas nestas disciplinas, mas arriscar-nos-íamos a dizer que o advento do desenho a linha, sem mais apoios, e procurando soluções de simplicidade e leveza, é algo de muito moderno, numa primeira fase graças aos ilustradores europeus das décadas de 1910-1920 (Emmérico Nunes, Otto Dix, Karl Arnold) e depois nos Estados Unidos, pela década de 1960, com Al Hirschfeld e Saul Steinberg. Aliás, é com estes dois autores, o primeiro o “rei da linha” e o segundo que levou a “linha a passear”, que as afinidades com o autor alemão nos parecem fortíssimas e se fundam precisamente nessas ideia de que a linha é, em si mesma, marca expressiva o suficiente.
No prólogo, escrito por Matteo Pericoli, ele mesmo autor de uma fabulosa obra dedicada à cidade de N.Y., Manhattan Unfurled (e que seria celebremente empregue como capa do álbum-tributo To the 5 Buroughs dos Beastie Boys) - e com a qual as associações são óbvias -, escreve uma coisa muito curiosa. Diz ele, parafraseamos, que a linha não existe no mundo real mas que é antes um processo criativo que não “representa a realidade em si, mas deseja contá-la”. A linha como contadora. Não apenas contorna os objectos, como no gesto amante da rapariga de Corinto, mas conta a figura, transmuta-a em algo de transmissível, uma história.
A verdade é que as imagens de Robinson não podem somente ser descritas como… “descrições”. Não são - não é jamais possível sê-lo - retratos fiéis, representações exactas, devoluções prístinas, efeitos de realidade. São sempre relatos: do que se viu, de como se viu, do que se deseja contar. Nalguns casos, há mesmo estranhas histórias em potência, como esta imagem nos jardins do MoMA. Não é apenas a distribuição dos objectos no plano de composição, e o equilíbrio exacto entre as manchas negras e as figuras a finas linhas, ou o modo como as diagonais das janelas, das fachadas e do tanque de água se correspondem. São as arestas das esculturas de Calder e de Boccioni contrastando com as linhas suaves das outras peças e dos visitantes, são as tramas escuras de todas as estátuas contrastando com as áreas brancas dos visitantes. São os ecos internos entre os pares de pássaros e o homem olhando a mulher que olha a estátua de um homem de perna dobrada que a olha a ela. É a interposição, entre esse homem e essa mulher de uma outra escultura, de uma família (promessa? potência? expectativa normativa?) de Henry Moore. É a outra mulher, ao fundo, petite, observando de cabeça inclinada para o robusto corpo feminino da escultura de Lachaise. É o director ou curador observando a cena de uma janela, numa posição tão privilegiada quanto a nossa, que também observamos.
O sentido de composição do ilustrador é apuradíssimo, e por vezes atinge um grau de densidade quase impossível, que torna ainda mais maravilhoso o facto destes serem desenhos a linha. É possível que no nosso tempo, afectado e pejado de toda a sorte de instrumentos gráficos digitais que permitem manipulações das imagens de uma variedade assombrosa, que parte da produção de Robinson, e a sua valorização, passe quase desapercebida. De certa forma, é um fenómeno idêntico ao de novos espectadores das animações dos irmãos Whitney ou de Jules Engel não compreenderem o alcance desses projectos, depois da existência doméstica das visualizações do Windows Media Player… É a dessensibilização cultural por excesso.
Quase todas as imagens que vimos nos tocavam as cordas da reminiscência. Vemos uma linha e é como se fosse uma corda de uma lira, é como se essas cordas, de Robinson, tangessem do mesmo modo que outras cordas de outros autores, anteriores ou posteriores, mas com os quais criamos as nossas próprias linhas de passeios…
Um dos desenhos mostra uma freira a atravessar o parque Bryant, com algumas das meninas do colégio. É irresistível essa imagem de uma Nova Iorque transfigurada por uma ilusão de inocência, segurança outonal, e um certo grau (aos nossos olhos, de hoje) de estranheza. Mas é irresistível ainda mais não o comparar com um livro ilustrado de 1939, um dos vencedores Caldecott, o Madeline de Bemelmans. Ou com o trabalho de Sempé em Nova Iorque, com as suas figurinhas isoladas na imensidão desta cidade, tão perfeitamente expressas nas suas composições, e nesta igualmente.
A atenção que Robinson dá a cenas de pormenor, à fachada de uma loja, à profusão de cartazes e sinais encontrados num canto, numa taberna, num interior, e até mesmo o trabalho de aguada que dá para criar volume, densidade e ambiente aos seus desenhos, são por demais próximos aos do poeta da decadência urbana de Nova Iorque, Ben Katchor.
Uma brevíssima colecção de semáforos, sinais de trânsito e de informação, placas com nomes de ruas, parquímetros, sinais do metro e candeeiros de rua, dispostos lado a lado como numa absurda exposição de suspeitos, ou num catálogo de equipamento urbano, faz lembrar muitas das composições de Steinberg, cujo trabalho de catalogação do mundo é por demais conhecida. Aliás, uma outra imagem, anamórfica, de um mundo cosmopolita-provinciano visto a partir do topo do Empire State Building tem um eco numa das mais famosas capas para a New Yorker do artista romeno-americano, que mostrava o mundo inteiro a partir de uma janela da 5ª Avenida. (A perspectiva olho-de-peixe poderá lembrar-nos ainda centenas de outras imagens similares, como duas belíssimas de Ricardo Cabral, já aqui comentadas brevemente).
Com paisagens a abarrotar de gente ou quase desérticas, de uma máxima intimidade ou num afastamento quase divino, atencioso para com a mais discreta das esquinas ou deslumbrado com a imensidão majestosa da Grande Maçã, as imagens de Robinson são de uma delicadeza desarmante, sobretudo se tivermos em conta que, apesar de tudo, a escala humana nunca abandona estas imagens. Nem que seja pela presença da própria linha, que não deixa jamais de fazer adivinhar que esteve, ou está, uma mão por ali.
Nota final: Agradecimentos a Sérgio Bruno Pires, pelo empréstimo do livro.
6 de janeiro de 2012
Boring Europa. AAVV (Chili Com Carne)
Neste livro, transgenérico, há dois momentos que se unem pelas suas semelhanças e discordâncias, ponto de encontro esse que serve como pedra-de-toque para compreender o gesto de Boring Europa. Na banda desenhada incluída de Aleksandar Zograf, um dos membros da Tour europeia dos membros da Associação Chili Com Carne, a Chili Sauce around Boring Europa, Ghuna X, diz, “agora não existem fronteiras na Europa, e é muito mais fácil viajar mas a maior parte das pessoas ainda não viaja muito, estão presas pelas fronteiras que têm nas cabeças…” (pg. 65). Na banda desenhada de um dos outros autores sérvios, Dzaizku Volodya, este é convidado por Marcos Farrajota a se juntar à tour até Berlin. Volodya pensa “pensei sobre isto durante uns momentos. Agora que temos estes novos passaportes biométricos na Sérvia, e já não são precisos vistos, podemos decidir se viajamos ou não numa questão de minutos…”. Curiosamente, acaba por não aceitar, por estar “ocupado nestes últimos dias”. (Mais)
Agencia de viajes Lemming. José Carlos Fernandes (Astiberri)
Quando esta série de tiras de jornal começaram a ser publicadas, a Julho de 2005, demos rápida conta delas, e associámo-las ao suposto (mas falso) suicídio dos lemmings, não esperávamos que o “abrupto precipício sobre o mar” correspondesse de alguma maneira ao abandono do autor do círculo de criação da banda desenhada. As razões para isso serão múltiplas, e não nos cabe a nós imaginá-las, mas esperar que haja oportunidade pública para as entender. Parte delas, porém, serão o fraco desenvolvimento da cena em Portugal, a sua variedade e recepção, a sua saúde e capacidade de sobrevivência extra-muros, muros esses de uma província muito circunscrita… Ficam apenas os votos de que possa ainda assim surgir novas obras ou pelo menos novas colecções, em português, da obra deste autor. Mas, por agora, a edição em livro dessas tiras, em língua espanhola, está garantida pela Astiberri.
Uma vez que não acompanhámos fielmente a sua publicação diária, parte do prazer e forma de recepção intervalada que lhe estaria associada perdeu-se, ainda que o tempo da diegese se associe aos meses de Julho e Agosto e procure mimar-lhe os lentos movimentos. E, na verdade, a sua leitura em forma de livro não deixa transparecer essa mesma segmentação de uma maneira líquida. Cada uma das tiras corresponderá a uma página - deste livro oblongo, o que seria meia-página num formato mais clássico - mas estas não são fechadas sobre si mesmas: não têm títulos individuais, como as mini-histórias d’A Pior Banda, nem sequer se pautam por um evento ou ideia concentrada. Bem pelo contrário, há uma fluidez contínua de página para página, e tudo estrutura uma trama coesa. A Agência oferece dois tours: “Dez mil horas de ‘jet lag’” e “O síndrome da classe turística”. Em ambos os casos, um homem chamado Zoloft (como sempre em JC Fernandes, o nome não é inocente nas suas associações intertextuais) entra numa agência de viagens, a Lemming, na qual é atendido por um funcionário. Este procede imediatamente à apresentação dos vários programas, pacotes, promoções, tours organizados, conselhos de aventuras, e dicas mais obscuras. A escolha é estrondosa: são apresentados e descritos a Zoloft mais de vinte destinos possíveis. Todos eles recusados…
Há um exercício curioso, imaginativo, que serve para refrear os apetites dos mais gulosos (funcionando apenas ora com os de têmpera mais férrea ora aqueles cuja imaginação tem um pé demasiado fincado no soma): ao entrar-se numa pastelaria, degustam-se todos os bolos ou iguarias visíveis nos expositores ou fotografias e, assim, ficar “cheio” ou até mesmo “mal disposto” com a mistura, optando-se ora pelo jejum ora por algo menos nocivo à saúde. De certa forma, este desvio pela metáfora do comensal é também apresentada pelo autor em relação a Zoloft, que “degusta” todas as paragens que lhe são apresentadas, e todas recusa… Essa degustação ganha corpo por o narrador visual nos dar acesso directo a essas mesmas cidades, onde se desenrolam as cenas descritas, ou testemunhamos a visita de outros tantos turistas.
As cidades podem estar cobertas de museus, apetece dizer “do acessório e do irrelevante”, ou em projectos artísticos levados ao extremo (Duchamp e os Becher estão presentes nessas referências), ou da banalidade, ou de personagens de pouca importância, ou são antes marcadas por uma arquitectura descontrolada desta ou daquela forma, ou por comportamentos obsessivos e estranhos, ora por inércias inultrapassáveis, mas sempre, sempre, para enfatizar uma qualquer dimensão angustiante da existência humana. As referências na construção destas tiras continuam a ser aquelas que mais classicamente parecem informar esta produção de José Carlos Fernandes: Ben Katchor e Italo Calvino, o primeiro pelas estruturas, o derisório mas impassível humor, as associações a um só tempo absurdas e aparentemente insípidas, a presença de uma classe de personagens cujo vigor físico e moral parece ter desvanecido há muito, o segundo pela maneira poética de explorar cartografias imaginárias e conducentes a estranhos momentos de magia na mais banal das realidades, na maneira como devolvem uma atenção redobrada para os comportamentos dos nossos concidadãos ou os nossos mesmos, e para os elementos que compõem o nosso próprio mundo, afinal tão absurdo quanto aquele ficcionado.
Fernandes utiliza, de modo subtil, quase secundário às histórias e ao humor que cria, uma maneira de pensar a sociedade em que nos inserimos e é quase por distracção que vamos escutando as suas lições. Não se trata apenas de referências directas, quiçá até de menor impacte (como a apresentação do “Ogre do Funchal” numa das prisões de Baltováquia), mas antes de considerações mais vastas, dadas pelo funcionário da Lemming. Como por exemplo, quando critica aqueles que “confundem a igualdade de direitos civis com o leito de Procusto da mediocridade” (pg. 38), ou a muito bem observada estupidez de utilizar um cliché como “cidade de contrastes” para descrever qualquer local… A discussão de todos os actos embrulhados no de viajar são também matéria de discussão e humor. Há quem queira distanciar-se dos “turistas” apelidando-se de “viajante”, mas carrega o Lonely Planet (talvez um dos mais patetas nomes para um guia de viagens, já que, por um lado, viaja-se usualmente para contactar pessoas, por outro, porque esse guia leva a que se repitam as mesmas rotas), há quem aprecie o chegar, instalar-se e contactar o outro lado mas deteste o acto da deslocação em si, há quem veja nos aeroportos ou outros terminais locais de encontros fortuitos, interessantes ou como um palco de antropologia instantânea, há quem veja nos mesmos uma terrível angústia e espera, etc. Acima de tudo, porém, deveria estar o entendimento que a viagem não significa nada em si mesma, uma vez que pode constituir-se num privilégio burguês e acessível apenas numa economia de mercado, como pode ser uma terrível pena imposta (o exílio, a emigração económica, etc.). No entanto, sejam qual forem as opções, algumas terão de ser tomadas, coisa que Zoloft não faz. “Tomar decisões pode ser aterrador”, diz o funcionário da Lemming (pg. 61). Mas no final da segunda história, Zoloft diz o seguinte: “…esse [seu] aperfeiçoamento acaba por ser contraproducente. As suas descrições são tão vivas que depois de as ouvir já não tenho vontade de visitar esses lugares” (pg. 133). De certa forma, e retornando ao Calvino de As Cidades Invisíveis, ou melhor ainda, à fonte do livro do autor italiano, esta frase estrutura a suposta relação entre as viagens de Marco Polo e o eventual verdadeiro autor desse relato (Il Milione), Rustichello da Pisa. Se é contado de uma forma tão maravilhosa, porque destruir essa mesma maravilha com a realidade?
Se tal for útil a alguém, e se não errámos, eis uma lista das cidades indicadas: Zamith, Sloth, Bezanio, Dulia, Pesto, Baltovaquia, Prizerv, Piltz, Manzil, Gallupi, Mandel, Pródromos, Kwinz, Yakov, Rizopotâmia, Maquei, Hrabal (onda acabarão os textos do lerbd), Nanopykos, Kostej, Gibil, e mesmo que através de sonhos, Citronóvý, Kohlzaad e Sliz. A elas acrescentam-se outras classes estranhas de actividades, como a do turismo nuclear, que o autor, numa nota, mostra existir na realidade, a do Flying Gourmet, ou a de comprar um Atlas constituído por uma colecção de discos (em vinil, claro) com os hinos de todas as nações do mundo, incluindo Vanuatu, Nauru e Antígua (antes que perguntem, são na verdade países reais do nosso mundo).
Nota: as citações são minhas traduções do espanhol e poderão não corresponder ao português original.
Uma vez que não acompanhámos fielmente a sua publicação diária, parte do prazer e forma de recepção intervalada que lhe estaria associada perdeu-se, ainda que o tempo da diegese se associe aos meses de Julho e Agosto e procure mimar-lhe os lentos movimentos. E, na verdade, a sua leitura em forma de livro não deixa transparecer essa mesma segmentação de uma maneira líquida. Cada uma das tiras corresponderá a uma página - deste livro oblongo, o que seria meia-página num formato mais clássico - mas estas não são fechadas sobre si mesmas: não têm títulos individuais, como as mini-histórias d’A Pior Banda, nem sequer se pautam por um evento ou ideia concentrada. Bem pelo contrário, há uma fluidez contínua de página para página, e tudo estrutura uma trama coesa. A Agência oferece dois tours: “Dez mil horas de ‘jet lag’” e “O síndrome da classe turística”. Em ambos os casos, um homem chamado Zoloft (como sempre em JC Fernandes, o nome não é inocente nas suas associações intertextuais) entra numa agência de viagens, a Lemming, na qual é atendido por um funcionário. Este procede imediatamente à apresentação dos vários programas, pacotes, promoções, tours organizados, conselhos de aventuras, e dicas mais obscuras. A escolha é estrondosa: são apresentados e descritos a Zoloft mais de vinte destinos possíveis. Todos eles recusados…
Há um exercício curioso, imaginativo, que serve para refrear os apetites dos mais gulosos (funcionando apenas ora com os de têmpera mais férrea ora aqueles cuja imaginação tem um pé demasiado fincado no soma): ao entrar-se numa pastelaria, degustam-se todos os bolos ou iguarias visíveis nos expositores ou fotografias e, assim, ficar “cheio” ou até mesmo “mal disposto” com a mistura, optando-se ora pelo jejum ora por algo menos nocivo à saúde. De certa forma, este desvio pela metáfora do comensal é também apresentada pelo autor em relação a Zoloft, que “degusta” todas as paragens que lhe são apresentadas, e todas recusa… Essa degustação ganha corpo por o narrador visual nos dar acesso directo a essas mesmas cidades, onde se desenrolam as cenas descritas, ou testemunhamos a visita de outros tantos turistas.
As cidades podem estar cobertas de museus, apetece dizer “do acessório e do irrelevante”, ou em projectos artísticos levados ao extremo (Duchamp e os Becher estão presentes nessas referências), ou da banalidade, ou de personagens de pouca importância, ou são antes marcadas por uma arquitectura descontrolada desta ou daquela forma, ou por comportamentos obsessivos e estranhos, ora por inércias inultrapassáveis, mas sempre, sempre, para enfatizar uma qualquer dimensão angustiante da existência humana. As referências na construção destas tiras continuam a ser aquelas que mais classicamente parecem informar esta produção de José Carlos Fernandes: Ben Katchor e Italo Calvino, o primeiro pelas estruturas, o derisório mas impassível humor, as associações a um só tempo absurdas e aparentemente insípidas, a presença de uma classe de personagens cujo vigor físico e moral parece ter desvanecido há muito, o segundo pela maneira poética de explorar cartografias imaginárias e conducentes a estranhos momentos de magia na mais banal das realidades, na maneira como devolvem uma atenção redobrada para os comportamentos dos nossos concidadãos ou os nossos mesmos, e para os elementos que compõem o nosso próprio mundo, afinal tão absurdo quanto aquele ficcionado.
Fernandes utiliza, de modo subtil, quase secundário às histórias e ao humor que cria, uma maneira de pensar a sociedade em que nos inserimos e é quase por distracção que vamos escutando as suas lições. Não se trata apenas de referências directas, quiçá até de menor impacte (como a apresentação do “Ogre do Funchal” numa das prisões de Baltováquia), mas antes de considerações mais vastas, dadas pelo funcionário da Lemming. Como por exemplo, quando critica aqueles que “confundem a igualdade de direitos civis com o leito de Procusto da mediocridade” (pg. 38), ou a muito bem observada estupidez de utilizar um cliché como “cidade de contrastes” para descrever qualquer local… A discussão de todos os actos embrulhados no de viajar são também matéria de discussão e humor. Há quem queira distanciar-se dos “turistas” apelidando-se de “viajante”, mas carrega o Lonely Planet (talvez um dos mais patetas nomes para um guia de viagens, já que, por um lado, viaja-se usualmente para contactar pessoas, por outro, porque esse guia leva a que se repitam as mesmas rotas), há quem aprecie o chegar, instalar-se e contactar o outro lado mas deteste o acto da deslocação em si, há quem veja nos aeroportos ou outros terminais locais de encontros fortuitos, interessantes ou como um palco de antropologia instantânea, há quem veja nos mesmos uma terrível angústia e espera, etc. Acima de tudo, porém, deveria estar o entendimento que a viagem não significa nada em si mesma, uma vez que pode constituir-se num privilégio burguês e acessível apenas numa economia de mercado, como pode ser uma terrível pena imposta (o exílio, a emigração económica, etc.). No entanto, sejam qual forem as opções, algumas terão de ser tomadas, coisa que Zoloft não faz. “Tomar decisões pode ser aterrador”, diz o funcionário da Lemming (pg. 61). Mas no final da segunda história, Zoloft diz o seguinte: “…esse [seu] aperfeiçoamento acaba por ser contraproducente. As suas descrições são tão vivas que depois de as ouvir já não tenho vontade de visitar esses lugares” (pg. 133). De certa forma, e retornando ao Calvino de As Cidades Invisíveis, ou melhor ainda, à fonte do livro do autor italiano, esta frase estrutura a suposta relação entre as viagens de Marco Polo e o eventual verdadeiro autor desse relato (Il Milione), Rustichello da Pisa. Se é contado de uma forma tão maravilhosa, porque destruir essa mesma maravilha com a realidade?
Se tal for útil a alguém, e se não errámos, eis uma lista das cidades indicadas: Zamith, Sloth, Bezanio, Dulia, Pesto, Baltovaquia, Prizerv, Piltz, Manzil, Gallupi, Mandel, Pródromos, Kwinz, Yakov, Rizopotâmia, Maquei, Hrabal (onda acabarão os textos do lerbd), Nanopykos, Kostej, Gibil, e mesmo que através de sonhos, Citronóvý, Kohlzaad e Sliz. A elas acrescentam-se outras classes estranhas de actividades, como a do turismo nuclear, que o autor, numa nota, mostra existir na realidade, a do Flying Gourmet, ou a de comprar um Atlas constituído por uma colecção de discos (em vinil, claro) com os hinos de todas as nações do mundo, incluindo Vanuatu, Nauru e Antígua (antes que perguntem, são na verdade países reais do nosso mundo).
Nota: as citações são minhas traduções do espanhol e poderão não corresponder ao português original.